Legalização do aborto

Para feministas, ofensiva conservadora marca a postura dos candidatos

Às vésperas das eleições, nenhum candidato à presidência se manifestou explicitamente favorável à legalização do aborto. Descriminalização continuará difícil em função da nova bancada da Câmara, que deve ser mais conservadora e com maior presença religiosa
Fernanda Sucupira
 28/09/2006

Movimentos de mulheres e feministas de diversas partes do Brasil realizam, nesta quinta-feira (28), manifestações, vigílias, debates e lançamentos de livros, entre outras atividades, para marcar o Dia de Luta pela Legalização do Aborto na América Latina e no Caribe. Às vésperas das eleições, no entanto, as feministas lamentam que nenhum candidato à presidência tenha se manifestado explicitamente favorável à legalização da interrupção da gravidez indesejada, o que historicamente vem sendo defendido por esses movimentos. Segundo elas, uma ofensiva conservadora, encabeçada por setores da hierarquia da igreja católica, vem marcando o processo eleitoral em relação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e outras questões, como a união civil entre pessoas do mesmo sexo.

Enquanto Geraldo Alckmin (PSDB) e Heloísa Helena (PSOL) apresentam uma postura bastante conservadora, contrária ao aborto em qualquer situação, alegando motivos religiosos, Lula (PT) e Cristóvam Buarque (PDT) costumam ser vagos quando questionados sobre esse tema. Nesta quarta-feira (27), Lula lançou em Brasília o caderno temático "Compromisso com as Mulheres", que fala das linhas a serem adotadas num segundo governo. No item que trata de direitos reprodutivos, o documento diz que “o Estado e a legislação brasileira devem garantir o direito de decisão das mulheres sobre suas vidas e seus corpos. Para isso, é essencial promover as condições para o exercício da autonomia”. Por mais que fique claro que se está falando de aborto, o texto não traz esta palavra.

“Em qualquer eleição, os candidatos evitam se expor de forma clara e direta quando favoráveis à descriminalização do aborto ou indecisos, por este ser considerado um tema muito polêmico. Eles ficam em cima do muro, só tangenciando o assunto porque preferem se proteger de possível reação do eleitorado ou do uso que as forças conservadoras podem fazer disso”, avalia Gilberta Soares, coordenadora das Jornadas pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, que reúnem 13 articulações políticas de âmbito nacional e 28 organizações feministas.

“Nas eleições é sempre complicado tratar desse tema, mas a atual campanha apresenta alguns agravantes em relação às anteriores”, completa a coordenadora da Marcha Mundial das Mulheres, Nalu Faria. Ela se refere, entre outras coisas, à "Campanha Brasil sem Aborto", organizada pela Frente Parlamentar em Defesa da Vida em parceria com a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Os integrantes da campanha distribuíram questionários aos candidatos para saber a posição deles sobre o aborto e outros temas e, a partir das respostas, orientam os católicos a não votar naqueles que defendem medidas como a descriminalização do aborto.

Alguns candidatos estão sendo atacados de forma contundente por sua atuação. É o caso da deputada federal Jandira Feghalli (PC do B), candidata ao Senado pelo Rio de Janeiro, uma exceção entre os políticos por defender abertamente o fim da punição às mulheres que praticam o aborto e a garantia da realização desse procedimento, em determinadas condições, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, o anteprojeto de lei que propõe a descriminalização do aborto, elaborado por uma Comissão Tripartite criada pelo governo federal, com representantes do Executivo federal, do Poder Legislativo e da sociedade civil, foi incorporado pela deputada a um projeto de lei sobre o assunto do qual ela é relatora.

Por esse motivo, e por Jandira ser uma grande defensora dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, a Frente Carioca pela Vida, com o apoio da Arquidiocese Católica do Rio de Janeiro, começou a distribuir panfletos nas paróquias católicas afirmando que o projeto de lei apresenta a "interrupção da gravidez como método contraceptivo" e desvalorizando o trabalho da deputada na Câmara para que não votem nela. “Considero uma verdadeira chantagem política sobre os candidatos e seus fiéis utilizar o espaço da igreja para veicular uma carta para impedir o acesso democrático de candidatos a espaços de poder”, afirma a cientista política Télia Negrão, secretária executiva da Rede Feminista de Saúde. “Cada um tem o direito a ter suas convicções, mas não queremos dialogar com dogmas e sim com posições políticas fundamentadas, para que seja possível argumentar e debater”, acrescenta.

Para a coordenadora da Marcha Mundial das Mulheres, o discurso conservador não só é retrógrado como também agressivo com as mulheres e não reconhece a existência de uma situação complexa em relação ao aborto, grande parte feita em situação perigosa, com risco de morte ou seqüelas. “Anticoncepcionais e educação diminuem o número de abortos, mas não eliminam a gravidez indesejada. Há um conjunto de elementos opressores sobre a mulher, o padrão da sexualidade é muito mais definido pelos homens. Elas muitas vezes não têm total autonomia sobre quando e como a relação sexual ocorre. Existe uma hipocrisia nessa crítica contundente”, afirma Nalu.

Outro sinal do conservadorismo da atual eleição, que vem sendo duramente criticado pelas feministas, é a postura da candidata Heloísa Helena. Pela primeira vez, uma mulher do campo da esquerda está entre os principais candidatos à presidência da República e ela se afirma explicitamente contrária ao aborto, o que, para elas, significa que a principal protagonista feminina no processo eleitoral não reconhece a realidade de saúde das mulheres brasileiras.

Segundo Gilberta, Heloísa Helena se coloca como feminista em alguns momentos, mas é conservadora. “É a primeira mulher que disputa no cenário como candidata com visibilidade, como mulher, como esquerda, mas o discurso dela em relação às mulheres é conservador, com argumentos religiosos. Ela diz que se for eleita vai governar o país como ela cuida da casa e dos filhos, apela para o papel tradicional de mulher e de mãe, apesar de ter feito uma ascensão política ao mundo público”, avalia a coordenadora das Jornadas pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro.

Alckmin, por sua vez, a quem é atribuída uma ligação com a Opus Dei, braço ainda mais conservador da igreja católica, também tem uma posição bastante dogmática. Ele não apenas é contra a descriminalização do aborto, como também é contrário ao planejamento familiar, ao uso de preservativos, etc.

A posição do candidato Lula é considerada a “menos pior” entre os quatro principais candidatos. Apesar de se dizer pessoalmente contrário à legalização do aborto, afirma que é preciso garantir a saúde da mulher, com planejamento famil
iar e atendimento adequado.

“O governo Lula fez avanços muito importantes na área da saúde da mulher, como a distribuição da contracepção de emergência, a chamada pílula do dia seguinte; a portaria que deixou de condicionar ao boletim de ocorrência o atendimento do aborto em caso de violência sexual; a norma técnica de humanização do atendimento ao aborto feito de forma clandestina; o trabalho do Ministério da Saúde para implementar novos serviços de aborto legal no país; e o próprio trabalho da comissão tripartite, já que foi a primeira vez que um governo brasileiro criou uma comissão para discutir a legalização do aborto”, exemplifica Dulce Xavier, coordenadora de comunicação da ONG Católicas pelo Direito de Decidir. Segundo ela, o governo Lula teve comprometimento com essas questões tidas como polêmicas, ainda que não as defenda abertamente no período eleitoral e tenha cedido a algumas pressões durante seu mandato.

Descriminalização
O candidato à reeleição presidencial vem sendo criticado por não fazer em seus discursos referência ao projeto de lei da revisão da legislação restritiva e punitiva sobre o aborto, uma ação de seu próprio governo, enviado ao Congresso Nacional nas comemorações do dia 28 de setembro do ano passado. A proposta foi entregue à Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara dos Deputados, e não saiu mais de lá até hoje. O documento lançado em Brasília fala em “mudanças na legislação”.

Movimentos de mulheres reclamam que o presidente Lula não levou o projeto como estava previsto inicialmente, o que não deu a ele a força política necessária. Além disso, afirmam que o governo não fez nenhum esforço para o projeto andar e avaliam que no próximo mandato a tramitação pode ser ainda mais complicada. “O governo teve uma postura corajosa em discutir a legislação ultrapassada, mas a pressão da igreja foi importante. Uma nova gestão com o presidente Lula continuará sendo difícil nesse sentido ainda mais porque o legislativo deve ter uma presença religiosa mais forte e a nova bancada da Câmara deverá ser mais conservadora”, acredita Dulce.

A Comissão Tripartite foi criada pelo governo federal em abril como uma das ações previstas no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, resultado da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, realizada em 2004. O processo da Conferência contou, no total, com a participação de mais de 120 mil mulheres espalhadas pelo país, somando-se à versão nacional as plenárias municipais, regionais e estaduais. A revisão da legislação que prevê medidas punitivas contra as mulheres que se submetam a abortos também está prevista em tratados internacionais ratificados pelo governo brasileiro.

A proposta da comissão tripartite prevê a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação para qualquer mulher e até a 20ª semana quando a gravidez resultar de violência sexual. Nos casos em que houver risco à vida da gestante ou má-formação fetal, o prazo para interrupção da gravidez pode ser fixado por um médico. Quando a gestante tiver menos de 18 anos, os pais ou responsáveis legais também precisam consentir com o aborto. Se houver discordância entre eles, fica a cargo do Ministério Público a decisão final. A proposta determina que a interrupção da gravidez nunca poderá ser feita sem o consentimento da gestante. Ela prevê ainda que o acesso aos procedimentos para o aborto terá que ser garantido não só pelo Sistema Único de Saúde (SUS) como também pelos planos de saúde, que ficariam obrigados a cobrir os custos com o aborto, independentemente do tipo de plano e sem a necessidade de cumprimento do período de carência.

Estima-se que a cada ano ocorram de 750 mil a 1 milhão de abortos clandestinos no Brasil. Em média, 240 mil mulheres são internadas pelo SUS vítimas de abortos inseguros, e essa é a quarta causa de morte materna no país. As organizações feministas querem que o aborto deixe de ser visto como crime e pecado para passar a ser encarado como um direito da mulher, uma questão de saúde pública e de justiça social, já que mulheres com recursos financeiros fazem aborto seguro em clínicas clandestinas e quem sofre em procedimentos arriscados são as mulheres de grupos vulneráveis, pobres, negras e jovens, principalmente. Elas defendem que seja utilizado como o último recurso e que a legalização do aborto venha acompanhada de medidas preventivas como a educação sexual e o acesso a meios de contracepção. Atualmente, O Código Penal ainda vigente, de 1940, considera o aborto crime, exceto quando se trata de perigo de vida para a gestante ou quando a gravidez é resultante de estupro.

Fernanda Sucupira é membro da ONG Repórter Brasil.

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