Resquícios da ditadura

Restos mortais de comandante da ALN são trasladados

Depois de mais de 30 anos do assassinato do pernambucano Luiz José da Cunha, conhecido como Comandante Crioulo, por agentes do DOI-Codi, os restos mortais do militante, encontrados no cemitério de Perus, foram entregues à sua família
Fernanda Sucupira
 06/09/2006

No dia 13 de julho de 1973, o pernambucano Luiz José da Cunha, conhecido como Comandante Crioulo, foi preso numa emboscada e assassinado por agentes do DOI-Codi na cidade de São Paulo. As fotos do corpo mostram que a causa da morte foram as tortura sofridas por ele. Cunha era comandante nacional da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização de esquerda, fundada no fim da década de 60 por ativistas como Carlos Marighella, que adotou a luta armada como forma de resistência à ditadura militar. Sua ossada foi encontrada no cemitério clandestino de Perus, em 1991, onde ele havia sido enterrado como indigente, mas sem a presença do crânio. Por conta disso, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos iniciou uma longa jornada, com contribuição fundamental do Ministério Público Federal (MPF), até que, em junho deste ano, um exame de DNA finalmente identificou que aquela era a ossada de Crioulo.

Só na última sexta-feira (1), após mais de 15 anos da abertura da vala onde ele estava, a viúva Amparo Araújo recebeu os restos mortais de seu marido, num ato ecumênico na Catedral da Sé, em São Paulo, para enterrá-lo no sábado (2). “Eu me comprometi com a mãe dele que, tão logo fosse possível, eu o levaria para ficar ao lado dela, lá em Recife. Hoje estou cumprindo esse compromisso. Quero agradecer ao Estado brasileiro por este momento porque as feridas que o Estado causa às pessoas, aos cidadãos, só ele pode reparar. Agora estou concluindo a morte do Crioulo, que já faz mais de trinta anos, já que a minha filha se casa neste mês, começando uma nova vida”, declarou Amparo, durante o ato inter-religioso de traslado dos restos mortais, que reuniu familiares de mortos e desaparecidos políticos, parlamentares, representantes do governo federal e de entidades de direitos humanos, entre outros.

Além do corpo do comandante da ANL ter sido ocultado, o atestado de óbito informava que sua cor era “branca”, dificultando a identificação de Cunha. “Fomos tomados de uma triste surpresa quando seu crânio não foi encontrado. Talvez os inimigos temessem a sua cabeça, a cabeça de um negro intelectual. Crioulo, agora a sua cor também foi resgatada. De todas as formas tentaram ocultar a verdade dos fatos que envolveram sua morte, como também apagar a participação do povo negro na luta por democracia em nosso país. Mas foram muitos os militantes negros que derramaram seu sangue”, disse Amelinha Telles, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Segundo ela, para esclarecer os fatos e circunstâncias em que ocorreram esses assassinatos – e outras brutais violações de direitos humanos – e garantir que todos tenham direito a um sepultamento digno, como Cunha teve, é fundamental que sejam abertos os arquivos da ditadura militar.

O Procurador Regional da República, Marlon Alberto Weichert, um dos responsáveis pela identificação de Crioulo, também afirmou que não existem mais razões jurídicas, sociais ou políticas para o sigilo dos arquivos militares. “Não se trata de rever, revisar ou proclamar vencedores. Mas sim de abrir, dar transparência, expor, iluminar. Não haverá real superação das violências que, de parte a parte, caracterizam os períodos de exceção, enquanto inexistir a abertura plena dos arquivos que permitiriam conhecer, efetivamente, os fatos vividos. Impossível o amadurecimento sem o conhecimento. O país precisa conhecer a verdade, seja ela bela ou não. A cultura do segredo traz muitos prejuízos. Utiliza-se o Estado para preservar – ou promover – biografias, impedindo-se com isso o exercício responsável da cidadania, o aperfeiçoamento das instituições e a maturidade política”, defendeu o representante do MPF, durante o ato.

Segundo Weichert, a figura do desaparecido traz a incerteza, a insegurança e a injustiça, e paradoxalmente permite a esperança. Essa complexidade de sentimentos, diz ele, sempre foi campo propício para o exercício da crueldade. “Infelizmente, passados aproximadamente trinta anos do auge da repressão militar, ainda hoje o poder público parece cruel, protegendo e defendendo a ocultação em detrimento da paz que poderia ser devolvida às famílias. Privilegia-se o silêncio como forma de proteção aos agressores, em detrimento da moral, do decoro, da honestidade, da dignidade, em suma, da justiça”, completa o procurador.

De acordo com a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, a ditadura militar deixou um rastro de aproximadamente quatrocentos mortos e desaparecidos, na sua maioria jovens que dedicaram suas vidas à construção de uma sociedade justa, fraterna e solidária. Desse total, apenas três pessoas tiveram resgatados seus restos mortais antes de Crioulo: Luiz Eurico Terreira Lisboa, assassinado em São Paulo, em 2 de setembro de 1972; Denis Casimiro, assassinado em abril de 1971, em São Paulo; e Maria Lúcia Petit, morta em 16 de junho de 1972, na região do Araguaia.

“Esse ato é muito importante porque registra a continuidade de um trabalho histórico que se arrasta por mais de vinte anos e que seguirá adiante nos próximos anos. Marca a continuidade da organização, do trabalho, da pressão, dos vários grupos defensores de direitos humanos, da Comissão de Mortos e Desaparecidos daqui de São Paulo, do Grupo Tortura Nunca Mais, no sentido de levar adiante o trabalho, para localizar os corpos, fazer a identificação genética e fazer escavações sempre que houver indícios seguros”, afirmou o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República.

Em relação às críticas sobre a demora nesse processo, Vannuchi justifica que tal lentidão ocorre porque o Estado é burocrático e não basta ter vontade política para fazer as coisas. Em segundo lugar, diz, existe a própria delicadeza evidente do tema. Ele afirma que não é verdade que o Brasil tenha aberto menos arquivos da repressão política do que Argentina, Chile e Uruguai. “Os que estão abertos à visitação pública lá são os arquivos das comissões que ouviram depoimentos de familiares, que trouxeram notícias de jornal e documentos que eles tinham. Nenhum arquivo da repressão política foi aberto nesses países como foi no Brasil”, argumenta o ministro.

“Muito antes do governo Lula, foram abertos os arquivos estaduais do DOPS de estados como São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná, Minas Gerais e Ceará. Agora no governo Lula, em dezembro do ano passado, foram abertos os arquivos da Abin [Agência Brasileira de Inteligência] e a imprensa com má vontade disse que nesses arquivos não tem nada, sem investigá-los antes, sem ir lá. Todos os jornais disseram que não tinha registro. Mas registros de papel dizendo vai lá e mate o Marighella nunca existiram. Nunca houve documentos montando uma operação e dize
ndo “fulano está sendo torturado, prossiga a sessão de tortura por mais três dias”, os criminosos não fazem ata das suas reuniões. Os arquivos já abertos têm um acervo enorme de dados que vão ajudar o trabalho da Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos agora”, acredita Vannuchi.

Neste mês, a Comissão Especial da SEDH começa uma nova etapa de seu trabalho iniciado em 1995. Há mais de uma década seus integrantes vêm analisando casos de mortos e desaparecidos políticos e fornecendo reparação moral e indenização financeira à família das vítimas. Ainda em setembro, devem começar a coletar sangue dos familiares de mortos e desaparecidos para constituir um banco de DNA, com o perfil genético de cada um deles, que será armazenado eletronicamente, para a aguardar o desfecho dos trabalhos em curso de investigação e localização das ossadas e poder identificá-las. Depois disso, provavelmente já no início de 2007, a comissão vai colher depoimentos oficiais de qualquer pessoa que tenha informações ou indícios de possíveis sítios de localização dos mortos e desaparecidos, sejam os familiares das vítimas, os sobreviventes ou eventuais ex-agentes dos órgãos de repressão que queiram depor.

Fernanda Sucupira é membro da ONG Repórter Brasil.

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