Trinta dias de trabalho intenso em alto-mar, poucas horas de sono e alimentação escassa, servida em intervalos que chegavam a 12 horas entre cada refeição. Sem água potável nos barcos, pescadores chineses e brasileiros divididos em 19 embarcações utilizavam água salgada para tomar banho. Nos alojamentos precários, camas sem colchão e instalações elétricas expostas.
As condições degradantes de trabalho enfrentadas por esses pescadores foram descritas com detalhes no processo que em 2004 o Ministério Público do Trabalho moveu contra a Ocean Star Pescados Ltda. As embarcações estavam a serviço da empresa para fazer a pesca de atum no litoral pernambucano. O estado está em quarto lugar entre os principais exportadores de pescado do país. Em 2004, as vendas de Pernambuco faturaram cerca de 38,5 milhões de dólares e representaram 6% das exportações brasileiras do setor.
Após a ação judicial, a Ocean Star encerrou suas atividades no país e, desde o primeiro semestre deste ano, não possui mais licença para atuar em águas brasileiras.
Para a advogada da empresa, Aurilene Acioly, houve "excessos" no processo trabalhista. "Fizemos algumas alterações, mas um barco não é como uma casa. Não é possível fazer certas reformas sob pena de comprometer a navegabilidade do barco. O Ministério Público pediu para instalar pias, arrumar alguma coisa em relação aos alojamentos, mas a visão estava equivocada. Aquele não era um barco de lazer, era um barco de trabalho", argumenta a advogada. "Reclamaram da comida, mas os chineses adoram pé de galinha", complementa.
O pescador Cláudio Ananias de Souza relatou, em depoimento à Procuradoria Regional do Trabalho, em outubro de 2004, os principais problemas enfrentados nas embarcações. "No barco não havia qualquer medicamento. Não havia qualquer condição de higiene no preparo da alimentação, principalmente pelo fato da cozinha ser perto do banheiro e dos alimentos serem preparados no chão", relatou. "Às 6 da manhã acordava e já iniciava o trabalho de colocação do espinhel (anzol) na água, sendo que aproximadamente às 8h tomava o café da manhã, que consistia em um macarrão instantâneo temperado com pimenta, óleo e vinagre", narrou o pescador.
A ação de fiscalização da Delegacia Regional do Trabalho de Pernambuco concluiu na época que as embarcações, que levavam a bandeira panamenha, não ofereciam segurança aos trabalhadores. Além disso, os empregados chineses não possuíam contrato de trabalho e a Ocean Star não estava cumprindo a lei que exige a contratação de uma cota de dois terços de tripulantes brasileiros.
Depois de receber a denúncia do Sindicato dos Pescadores Profissionais e Artesanais nos Estados de Pernambuco e Paraíba e constatar as más condições a bordo, o Ministério Público decidiu mover uma ação civil pública contra a empresa. "Pode-se concluir que a tripulação da embarcação ´Chung Kuo 287´ é submetida a condições precárias de trabalho e alojamento, tornando a vida a bordo insuportável a qualquer ser humano", afirmava a ação.
A Justiça do Trabalho exigiu da Ocean Star melhorias nos alojamentos e na alimentação, concessão de intervalos para descanso e repouso de no mínimo onze horas consecutivas, contratação de dois terços de tripulantes brasileiros e regularização dos contratos de trabalho dos empregados estrangeiros. Também exigiu que a empresa parasse de jogar lixo no mar, como plásticos, vidros, latas, embalagens de madeira e de metal e resíduos sólidos.
Chefe da Delegacia Regional do Trabalho de Pernambuco na época, o auditor fiscal Paulo Mendes conta que os pescadores chineses trabalhavam há dois anos nessas embarcações. "Eles haviam estado no Panamá, antes de trabalharem no litoral brasileiro. Desembarcavam por apenas três dias e já seguiam".
Segundo Mendes, os órgãos de fiscalização no estado chegaram a receber críticas pela ação contra a Ocean Star devido à influência econômica da empresa no setor pesqueiro. "Houve pressão de todo tipo, incluindo a interferência de deputados federais em favor da empresa, como Paulo Rubem Santiago (PT) e Pedro Correa (PP). Eles procuraram o Ministério do Trabalho para tratar do assunto. Além do próprio Sindicato dos Pescadores de Pernambuco que deixou de apoiar a ação." As assessorias de Santiago e Correa foram procuradas pela reportagem, mas não se pronunciaram.
O auditor afirma que é comum encontrar situações degradantes de trabalho em alto-mar, mas considera insuficiente o poder de fiscalização dos órgãos brasileiros. "Por serem estrangeiras, às vezes a atuação das autoridades brasileiras nessas empresas fica um pouco limitada. Além disso, temos um contingente pequeno, existe pouca denúncia e a logística é cara para realizar as ações." Apesar da decisão judicial favorável ao Ministério Público, Mendes lamenta que a empresa tenha retirado os barcos do porto de Recife ao encerrar suas atividades. "Da mesma forma que praticaram os crimes ambientais aqui, eles estão praticando em outros países", avalia.
Maus-tratos
No processo judicial, o Ministério Público utilizou os relatos feitos por observadores de bordo sobre as condições de trabalho nos barcos. Esses observadores são treinados pela Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca – órgão ligado à Presidência da República – para acompanhar a atividade da embarcação e o cumprimento das normas ambientais e trabalhistas.
Em um dos relatos, o observador de bordo registrou atos de violência física contra alguns pescadores. "Uma questão importante foi a ocorrência de abuso de poder e violência por parte do capitão para com os tripulantes estrangeiros, especialmente o cozinheiro que era agredido sem motivo aparente ou justificável, por três vezes ele foi alvo deste excesso", narrou Emerson Correia Marques, que acompanhou a rotina no Chung Kuo 283 durante um mês.
O relatório apresentado por outro observador afirmava que as más instalações do barco poderiam inclusive comprometer a qualidade do pescado. "A embarcação não dispõe de barris para acondicionamento dos combustíveis, e todo o combustível é colocado em urnas da embarcação (…) Não se lavava a urna adequadamente, e percebeu-se que mesmo durante o processo de acondicionamento do pescado, esta água ainda possuía resíduos de óleo diesel. Isto sem dúvidas pode ocasionar problemas à qualidade final do produto", escreveu Cezar Augusto Freire Fernandes, que observou o trabalho na embarcação Chung Kuo 222.
Pouco tempo
Em resp
osta à ausência de contratos de trabalho dos pescadores chineses, a empresa recorreu da ação movida pelo Ministério Público argumentando que os empregados estrangeiros deveriam ter sido registrados pela empresa de quem ela havia alugado os barcos, a Gilontas Ocean Panamá S/A. A Ocean Star alegou ainda que o prazo de 30 dias estipulado pela Justiça não era suficiente para contratar os pescadores brasileiros e alcançar a cota exigida pela lei. A Justiça do Trabalho, porém, não aceitou os argumentos apresentados pela empresa.
A Justiça também havia determinado à Ocean Star que fizesse melhorias nos alojamentos, oferecesse alimentação balanceada e água potável a bordo, entre outras medidas, no prazo de 60 dias. A empresa recorreu da decisão afirmando que o tempo concedido era insuficiente para melhorar as instalações das embarcações. Também alegou que já havia interrompido o lançamento de lixo ao mar. No recurso, a Ocean Star argumentou que as medidas prejudicavam a empresa e poderiam inclusive provocar a ruptura da cadeia produtiva no país.
Contudo, o Tribunal Regional do Trabalho não aceitou esses argumentos e manteve a aplicação das multas, caso a empresa não adequasse as condições dos barcos às normas brasileiras. Com isso, ela encerrou suas atividades e não teve sua licença renovada.