Arte secular maranhense é uma das grandes atrações turísticas do estado |
Tema de estudos acadêmicos das mais diversas escolas científicas e nacionalidades, o bumba-meu-boi foi considerado pelo escritor Mário de Andrade (1893-1945) uma das manifestações folclóricas mais originais do Brasil. Fruto da mestiçagem negra, índia e branca, essa brincadeira secular impera no Maranhão durante as festas juninas. Canto e dança sincronizam-se na movimentação de personagens coloridos, num verdadeiro diálogo entre tempos remotos e contemporâneos.
Antes de virar ícone da identidade maranhense, o folguedo do bumba-meu-boi enfrentou pelo menos cem anos de restrições. Chegou a ser proibido de 1861 a 1868 e, até meados do século 20, encontrou limites geográficos estabelecidos pelas autoridades de São Luís, então considerada a "Atenas Brasileira". Os grupos, geralmente de áreas rurais e suburbanas, eram impedidos de entrar no perímetro central. Caso desobedecessem, os "boieiros" corriam risco de prisão. Pessoas abastadas tachavam a brincadeira de "indecente", "grotesca", "ruidosa", "diversão de escravos, devendo, portanto, permanecer longe dos olhos das famílias tradicionais". A partir da década de 1960, porém, o bumba-meu-boi passou a vencer barreiras e atravessar as linhas do João Paulo, bairro popular próximo ao centro. O deslumbramento provocado no presidente João Goulart ao presenciar uma apresentação durante uma visita a São Luís favoreceu essa aceitação. Há quem mencione também a crescente conscientização dos "brincantes", pois antigamente as turmas da ilha – ou "batalhões", como ainda são denominados – brigavam muito entre si.
Até meados do século 20, o folguedo era mantido longe das áreas centrais |
Já em 1937, o texto de um projeto organizado por Mário de Andrade, visando à criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), incluía a preservação das obras de cunho popular. No entanto, foi somente cinco décadas mais tarde, com base nos princípios de conservação dos bens de natureza material e imaterial, que o governo maranhense instituiu – mais precisamente em dezembro de 1990 – a lei nº 5.082. Tal medida colocou em destaque o bumba-meu-boi no incremento do turismo no estado, ao lado de atrações naturais, como o Parque dos Lençóis Maranhenses, e dos inúmeros conjuntos arquitetônicos tombados por iniciativa de órgãos nacionais e internacionais.
O fato é que o governo maranhense vê o turismo como uma alternativa para melhorar o quadro socioeconômico do estado, que ocupa a última posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) brasileiro. Por essa razão vêm crescendo os recursos oficiais destinados às atrações apresentadas durante as festas juninas, entre elas o bumba-meu-boi. "O objetivo de um investimento público dessa natureza é ao mesmo tempo propiciar atrativos culturais para o turista e oferecer lazer ao cidadão. As pessoas começam a ter orgulho de suas raízes, das tradições", afirma Antônio Padilha, secretário de Cultura do estado.
Pesquisadores afirmam que fama pode tirar espontaneidade da brincadeira |
Nos últimos anos, multiplicaram-se os grupos de bumba-meu-boi, totalizando 250 cadastros na Secretaria de Cultura do Maranhão. Isso sem falar nas demais manifestações folclóricas, como tambor-de-crioula, cacuriá, quadrilhas, danças portuguesas, do lelê, do boiadeiro, entre outras, também presentes nas festividades. Por outro lado, o fato de o governo financiar as apresentações dos grupos com cachês e estimular o folclore por meio de programações variadas, espaços culturais, eventos e museus fez surgir um questionamento a respeito das possíveis transformações na forma de "brincar o boi". Pesquisadores afirmam que, em grande parte, o folguedo deixou de ser espontâneo, tornando-se dependente e estandardizado. "Antes de sair do limbo, o bumba-meu-boi era uma manifestação de resistência. Mas ao longo do tempo vem sendo cada vez mais utilizado para manter o status quo. Na época de São João, há uma inflação de fotos de políticos ao lado de brincantes nos jornais", denuncia João de Deus Vieira Barros, professor da Universidade Federal do Maranhão.
Origem
A mística do boi está presente em várias civilizações, tomando a forma de crenças e tradições. Segundo a professora Albelita Cardoso, autora da tese de mestrado "Vocabulário do Bumba-Meu-Boi do Maranhão: Abordagem Lexicográfica e Terminológica", muitos povos celebram essa milenar relação entre o homem e o boi por meio de rituais. Assim, esse animal foi considerado sagrado em vários locais, como Grécia, Egito, Caldéia, Creta, Cartago; possui estátuas nos templos xintoístas; representa o frio na China; é oferecido em sacrifício na África do Norte; participa de festas religiosas em templos católicos de Portugal; acompanha procissões na Itália… Em terras brasileiras, a mistura das tradições européias, ameríndias e africanas gerou a brincadeira do bumba-meu-boi, que se espalhou de norte a sul do país, ganhando nomes diferentes e traços regionais, mas com o boi sempre no papel central.
No Maranhão, os personagens do folguedo são inspirados num antigo auto pastoril, cuja encenação é ambientada em uma fazenda imaginária, onde Catirina – mulher do vaqueiro Pai Francisco – está grávida e diz ao marido que deseja comer a língua do melhor boi do patrão. Mesmo sabendo que provavelmente será punido, Chico prefere roubar o animal a correr o risco – segundo uma superstição popular – de ver seu filho nascer com problemas. Satisfaz o desejo da esposa, mas logo o patrão sente a falta do boi e pede explicações aos rapazes (funcionários de confiança), que não conseguem encontrar o animal. Ele manda à sua procura os índios – mateiros experientes -, exigindo, também, a presença do negro Chico. À frente do patrão, o vaqueiro é obrigado a confessar o crime e dizer onde deixou o boi. São chamados os "doutores" (pajés, curandeiros), que ressuscitam o animal
com mezinhas (remédios caseiros). O boi, então, "urra", e todos ficam alegres. Chico é perdoado, e o episódio termina em festa. Essa é apenas uma das versões, pois o enredo ganhou variantes, à medida que foi sendo transmitido oralmente de uma geração para outra.
Gado acompanha população sertaneja desde as primeiras jornadas que penetraram no sertão (Foto: Adriano Capelo) |
Alguns pesquisadores vislumbram origens do auto do bumba-meu-boi no Monólogo do Vaqueiro (1502), de Gil Vicente, representado em Portugal para comemorar o nascimento do príncipe dom João. Isso porque, nos primeiros tempos do Brasil Colônia, os jesuítas portugueses já organizavam brincadeiras e teatros "boieiros" para auxiliar a catequese. As primeiras cabeças de gado a chegar ao Brasil, em meados do século 16, vieram das ilhas de Cabo Verde. Pisaram o solo do agreste pernambucano e da orla do recôncavo baiano, espalhando-se depois em busca de novos pastos ao longo do rio São Francisco. Nas longas jornadas desbravadoras, vaqueiros e animais penetraram o sertão, ocupando-o quase todo ao fim de três séculos. Com isso, a população sertaneja – a chamada civilização do couro – viveu literalmente do gado: na alimentação, no transporte, no vestuário, na força de trabalho e até nos remédios. Dessa convivência também nasceriam grandes histórias e mitos envolvendo hábeis vaqueiros e touros indomáveis. Foi, no entanto, no final do século 18 que o bumba-meu-boi incorporou-se à cultura maranhense, em pleno auge da economia algodoeira.
Albelita Cardoso afirma que a primeira menção ao folguedo, em registro impresso, data de janeiro de 1840, num artigo pejorativo do padre Miguel do Sacramento Lopes Gama: "Talvez se explique essa apreciação pelo fato de que a brincadeira terminava com um sacerdote sendo chicoteado pelo negro, o que caracterizava verdadeiro desrespeito à Igreja". Esse episódio exemplifica o antigo caráter crítico dos autos de bumba-meu-boi, que satirizavam determinadas figuras do poder, de senhores a sacerdotes. Por isso, o auto também é conhecido como comédia. Todavia, "hoje não existe mais essa representação. A explicação dada pelas pessoas é que o público começou a achar cansativo", afirma Albelita. O auto, tradicionalmente apresentado no meio das brincadeiras, durava de uma a três horas.
Atualmente, os grupos são contratados para dançar em locais e tempo determinados. No período junino, os lugares para apresentação são denominados "arraiais" (espaços rodeados de barracas que vendem comidas e bebidas típicas). Quanto mais pontos visitados pelos brincantes durante a noite, maior será o cachê. É como um trabalho autônomo, ou seja, a tradição foi adaptada a um princípio comercial. Para grande parte dos folcloristas, isso de certa forma deturpa os costumes, reduzindo a brincadeira a um "show turístico".
Festa cíclica
Antes da brincadeira, instrumentos de percussão são esquentados na fogueira |
Quando um grupo de bumba-meu-boi chega ao local de apresentação, dá-se início à seqüência tradicional. Ao descer do ônibus, eles se reúnem, ajeitam as indumentárias (fantasias) e esquentam numa fogueira os instrumentos de percussão – normalmente revestidos com pele de cabra, cutia ou cobra -, enquanto o "amo" (cantador) puxa as primeiras toadas. Essa passagem é intitulada "guarnicê". O "miolo" (brincante que fica embaixo da armação do boi) começa a fazer suas evoluções e rodopios. Depois, na direção do arraial, cantam o "lá-vai", anunciando que o boi está a caminho. Cada grupo de personagens toma sua posição, e o amo puxa a terceira passagem: o "chegou", que notifica a presença do boi. A seguir, nas "toadas de cordão", em tema livre, o cantador improvisa, saúda o público e homenageia personalidades. Se fosse há 30 anos, após o "chegou" seria apresentado o auto. Porém, hoje poucos o fazem, optando então por pular para a quinta passagem, a do "urrou", que significaria na comédia o renascimento (ou cura) do boi. Finalizam o espetáculo os versos da "despedida". Essa forma comum, dividida em seis passagens e sem a dramatização do auto, é chamada "meia-lua".
Existe também um ciclo anual dos grupos de bumba-meu-boi: a "boiada tradicional". No Sábado de Aleluia, iniciam-se os ensaios no "rebanho" (dentro do barracão). Por volta do dia de Santo Antônio (13 de junho), os brincantes partem para o "ensaio redondo", que conclui essa fase, na qual todos devem estar preparados. No dia 23 de junho, véspera de São João, ocorre o "batismo do boi". Nessa ocasião, o novo couro do boi (revestimento da armação, feito de tecido preto de cetim ou veludo, bordado com miçangas, vidrilhos, canutilhos e lantejoulas) é mostrado à comunidade e, diante de um altar, ocorre seu batismo simbólico, com padrinho e madrinha. A partir do dia seguinte, até 30 de junho (dia de São Marçal), são feitas as demonstrações públicas nos largos ou arraiais, patrocinadas pelos governos municipal e estadual, com apoio da iniciativa privada. Há, também, no dia 29 de junho, uma procissão marítima em homenagem a São Pedro. Os grupos dirigem-se à igreja localizada no bairro da Madre Deus, e fazem reverência ao santo que é padroeiro dos pescadores.
Há mais de 70 anos, no dia 30 de junho, ocorre um encontro dos bois do sotaque de matraca (existem cinco "sotaques" ou estilos de bumba-meu-boi no Maranhão: matraca, zabumba, costa-de-mão, baixada e orquestra) no bairro de João Paulo, lembrando os tempos de proibição. Esse evento coincide com o fim da programação oficial. Para finalizar o ciclo, é celebrada a "morte do boi", cuja prática é definida segundo o calendário particular de cada grupo. Geralmente ocorre no período de julho a novembro. "O boi é o único ser vivente que tem festa em sua morte. Num misto de alegria e tristeza, a morte significa que a ‘boiada' daquele ano foi bem-sucedida", comenta Maria Michol, superintendente de Cultura Popular da Secretaria de Estado da Cultura. O ritual dura uma semana. Ergue-se o "mourão" (tronco de árvore enfeitado com papel de seda, fincado no chão, perto da sede do grupo), cujos galhos servem de suporte para doces e lembrancinhas. O "boi" fica preso ao mourão, fingem cortar seu "couro" com um facão e o "sangue" jorra – ou seja, um bal
de cheio de vinho é colocado embaixo dele, para ser compartilhado entre a comunidade.
Os custos da "morte" são bem altos. Em 2005, por exemplo, a Sociedade Junina Turma de São João Batista, grupo de sotaque da baixada, gastou mais de R$ 9 mil na celebração da morte do seu boi Paz do Brasil. Essas despesas com eventos e materiais forçam os grupos a juntar "capim" (base financeira). Com isso, sugere-se outra interpretação a respeito da atualidade do bumba-meu-boi no Maranhão: o capital adquirido nos arraiais oficiais acaba sendo empregado nos folguedos que acontecem dentro da comunidade. Em outras palavras, o "boi-espetáculo" ou "boi-para-turista-ver" financia o "boi-doméstico" ou "boi-de-raiz".
Com 34 anos de fundação, a Turma de São João Batista, do amo Apolônio Melônio, tem 168 componentes. Melônio, aposentado da estiva, já viveu quase oito décadas de folguedo. "Fui eu quem trouxe o sotaque da baixada para São Luís. O primeiro grupo daqui, eu fundei em 1945", lembra. O sotaque da baixada (região litorânea do norte do estado) tem os cazumbás como diferencial mais nítido: são personagens mascarados que, na mística popular, simbolizam a fusão do espírito de homens e animais. A função deles é interagir com os demais integrantes do folguedo e a platéia. Atualmente, Melônio e sua esposa, Nadir Olga Cruz, buscam patrocinadores para oficinas de confecção de materiais do bumba-meu-boi, a ser realizadas no bairro da Liberdade, sede do grupo.
Promessa
João Pimenta guardou dinheiro durante oito anos para levar um bumba-meu-boi até a igreja de Cururupu. Foi o pagamento da promessa que fez pela recuperação de seu filho, baleado |
"Olhei para o pôr-do-sol e falei para São João do Cururupu que, se meu filho não morresse e não ficasse aleijado, eu iria pagar uma promessa lá dentro da igreja matriz." Essas foram as palavras de João Pimenta na porta do hospital público Socorrão, quando soube que seu filho, João José, havia levado cinco tiros. "Quem tirou a chuteira do pé e o meião dele fui eu", lembra, emocionado. João Pimenta nasceu em Cururupu, interior do Maranhão, cidade que é berço de um dos estilos mais antigos do bumba-meu-boi: o sotaque costa-de-mão. Diz-se que, nas senzalas, em virtude de os negros ficarem com as mãos calejadas do trabalho, à noite só podiam marcar o ritmo com a parte de trás, ou costa, da mão. "Pandeiro, se tocado com a palma da mão, não solta a voz, fica mudo, é bolacha", diz Pimenta.
O pai de Pimenta já brincava bumba-meu-boi entre um intervalo e outro da atividade na roça. Logo a influência despertou interesse no rapaz, que em 1950 fundou seu primeiro boi. Depois, abandonou a vara de pescar, o machado e a espingarda, e foi para São Luís trabalhar como estivador/arrumador. Levou, além de dez pandeiros, a armação do boi, mas precisou vendê-la assim que chegou. Mais tarde, fundou o Boi Bairro Novo, que hoje congrega 80 brincantes. A devoção a São João também veio como herança dos pais. Antigamente, muitos bois eram colocados na rua por conta de promessa. A explicação para isso está numa lenda popular. Segundo essa história, São João tinha um boizinho de estimação muito carinhoso e saltitante. Certa vez, São Pedro pediu-o emprestado para animar sua festa, e ele fez tanto sucesso que São Marçal também o solicitou para sua comemoração. Porém, como a comida terminou, resolveram matar o boizinho: essa perda deixou São João muito triste, o que acabou levando as pessoas a ofertarem bois ao santo.
João José, filho de Pimenta, sobreviveu. Saiu do hospital na manhã do dia seguinte e estava totalmente recuperado após duas semanas. Pimenta precisou de oito anos para juntar os R$ 3 mil da promessa e poder levar seu grupo de bumba-meu-boi até a igreja de Cururupu, que não visitava havia 25 anos. Atualmente, o estilo costa-de-mão é o menos difundido no Maranhão: não tem nem dez grupos. A caipora – um personagem de dois a três metros de altura que lembra os "bonecões" de carnaval e está relacionado à lenda de um índio que atacava os caçadores na floresta – é marcante nesse sotaque.
Foi devido a uma promessa, também, que Therezinha Jansen, proprietária do Boi da Fé em Deus, recebeu o grupo das mãos do antigo fundador, Laurentino Araújo. O boi era tão bem-feito que virou expressão: "Está mais enfeitado que o boi do Laurentino". Ele era estivador no cais da Praia Grande, e às vezes subia as escadas da Contadoria Geral do Estado, onde Therezinha trabalhava, para conversar com ela. Certo dia, ele lhe pediu que fosse madrinha da brincadeira. Ela relutou, por não saber nada de boi – a não ser dos que seu pai, que além de marchand era dono de fazenda, comercializava -, mas acabou aceitando. Quinze anos depois, uma semana antes do falecimento de Araújo – acometido de tuberculose -, veio o segundo pedido: "Só vou morrer tranqüilo se a senhora aceitar ficar com o boi. A brincadeira tem esse nome, mas é séria". Desde então, Therezinha está à frente do Boi da Fé em Deus, sotaque de zabumba, estilo que vem da região de Guimarães, norte da ilha de São Luís.
Therezinha destaca que seu envolvimento não é só com a brincadeira: também requer empenho social na comunidade. "Nosso grupo é formado por pessoas humildes, que trabalham como pedreiro, pintor, e que hoje têm um serviço e amanhã não. Converso com as crianças, brinco, mas digo que cultura não é futuro, mas sim o que elas vão aprender na escola. Por isso, se não quiser estudar, não quero no boi", explica ela.
Batalhões pesados
Os bois de matraca, sotaque característico da ilha de São Luís, arrastam multidões. Onde quer que se apresentem, sempre há centenas ou até milhares de brincantes. Basta ter um par de "matracas" (pedaço de madeira rústica, cujo atrito acompanha o ritmo), um "pandeirão" ou um "tambor-onça" (espécie de cuíca que imita o urro do boi) e prestar atenção ao apito coordenador do amo. "Existe um companheirismo muito grande entre as pessoas durante a festa. De repente, você não sabe tocar o instrumento e o colega ao lado ensina", afirma José Inaldo Ferreira, presidente da Associação Folclórica e Beneficente do Bumba-meu-Boi da Maioba, grupo que existe há mais de cem anos no bairro da Maioba, zona rural da ilha.
É comum haver rivalidade entre os bois de matraca, já que acabam servindo de identificação para os membros de suas comunidades. Duelos poéticos, ou "toadas de pique", são bastante apreci
ados pelos brincantes. Porém, as diferenças são resolvidas apenas nos versos, e não em brigas como acontecia no passado. Para identificar um grupo de matraca, basta observar os "caboclos de pena" – personagens exclusivos desse sotaque -, que parecem trazer todas as cores do Maranhão na indumentária.
Bois de orquestra utilizam, além da percussão, instrumentos de corda e metais, como cavaquinho e saxofone |
Contudo, os que mais vêm crescendo são os bois de orquestra, sotaque dos municípios de Axixá e Rosário. O estilo, mais alegre e romântico, nasceu de uma fusão casual entre instrumentos de sopro e batuque. Conta-se que um maestro levou seu conjunto para tocar numa residência na cidade de Rosário, porém, às portas da casa, soube que a esposa do contratante havia falecido. Desistiu da apresentação, mas, antes de ir embora, parou numa barraca à beira da estrada. Por volta das oito horas da noite, perto dali começou o ensaio de um grupo de bumba-meu-boi e, ao ouvir a batucada, o maestro acompanhou a música, soprando seu pistom. Daí em diante, os bois da região passaram a utilizar o naipe de metais (trombone, trompete, saxofone, pistom, clarinete), instrumentos de corda (cavaquinho, violão, banjo) e percussão: "Quando saiu, foi lindo demais. Todo mundo gostou", lembra Donato de Paiva Alves, amo do boi de Axixá.
Nos últimos anos, os bois de orquestra têm sido criticados pelos folcloristas maranhenses. Eles alegam que os padrões estéticos adotados pela maioria dos grupos são inspirados nas escolas de samba do Rio de Janeiro e nos bois de Parintins (AM), porque selecionam as "índias" e "índios" a partir de atributos físicos. Essa crítica é estendida aos grupos alternativos (de teatro, dança), que são agremiações sem estilo específico: reproduzem e reinterpretam danças populares. Os participantes desses grupos, porém, não concordam com esse parecer. "Não utilizo o critério da beleza. O talento artístico não está na simples aparência, mas dentro da pessoa", afirma o diretor artístico e fundador da Cia. Barrica, José Pereira Godão.
Com 21 anos de existência, a Cia. Barrica "surgiu como uma forma de integrar a experiência e a paixão pelas artes populares de uma geração de novos artistas do Madre Deus, bairro de São Luís com destacada tradição cultural". O nome Barrica deriva do Boi Tonel, antigo bloco que costumava cantar sambas e marchinhas nas noites juninas. Os integrantes traziam um pequeno boi de flandres, no formato de tonel, em cuja boca havia uma abertura para os brincantes sugarem o néctar de cachaça que preenchia seu corpo. Já o Barrica foi idealizado como boizinho de mão, coberto por fios de palha de buriti e suspenso numa vareta. Com seu reduzido porte físico, pode participar sem dificuldade de diversos eventos culturais. Hoje, a Cia. Barrica é uma das mais requisitadas do estado. Segundo Godão, o maior atrativo do grupo é o fato de poder apresentar o espetáculo em qualquer canto do mundo, em qualquer tipo de espaço: "Para isso, no entanto, à frente da questão profissional e econômica, precisamos sempre colocar o prazer do exercício da atividade cultural e artística".