SP, seis meses depois

BOs de mortes causadas por policiais em maio são ficção, diz perito

Equipe do perito Ricardo Molina vê contradição entre os BOs e os laudos necrópsicos, que indicam execução nas ações policiais realizadas durante a primeira onda de ataques do PCC em São Paulo
Por Beatriz Camargo
 23/11/2006

Dentre as 492 mortes que ocorreram no Estado de São Paulo durante a primeira onda de ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC), entre 12 e 21 de maio, 124 delas – 89 só no município de São Paulo – são assumidas pela polícia como "resistência seguida de morte". Entretanto, após concluir um cruzamento de dados dos laudos necrópsicos com os Boletins de Ocorrência dos casos, uma equipe liderada pelo perito Ricardo Molina não encontrou convergência entre as informações: enquanto os laudos mostram muitos tiros em regiões letais, inclusive no topo do crânio – cerca de 70% dos casos foram classificados pelo perito como execução – todos os Boletins de Ocorrência (BOs) descrevem situações de confronto e tiros dados em movimento. "Os BOs falam sempre a mesma coisa, como se um tivesse sido copiado do outro", diz Molina. Segundo ele, há uma "historinha padrão": sempre existe perseguição, seguida de uma troca de tiros nunca iniciada pelos policias. "Mas, quando olhamos os laudos, vemos quatro tiros na cabeça, o que não bate com a descrição", relata. "Os BOs são totalmente fictícios, Histórias da Carochinha."

A equipe já havia verificado, em análise feita anteriormente, indícios de execução nos laudos necrópsicos devido à alta letalidade dos disparos: grande quantidade de balas por corpo e grande concentração delas em regiões vitais, como cabeça, tórax e peito. Esses dados também foram apontados pelo Conselho Regional de Medicina (Cremesp), que recolheu e analisou os laudos necrópsicos em 23 unidades do Instituto Médico Legal do Estado tendo, posteriormente, os encaminhado à Comissão Especial Independente encarregada de acompanhar as investigações das mortes do período, ainda no fim de maio.

Molina é ex-professor da Unicamp e integra a Comissão, composta por Ministério Público Federal, Ouvidoria da Polícia de SP, Defensoria Pública do Estado de SP, Conselho Nacional de Defesa da Pessoa Humana (Condepe) e entidades de defesa dos direitos humanos. O perito cita como exemplo o trecho de um BO classificado como "resistência seguida de morte": "Desceram [do carro] quatro indivíduos usando touca fortemente armados e iniciaram troca de tiros(…) Durante a fuga os marginais foram baleados". Entretanto, um dos laudos necrópsicos associados ao caso descreve um corpo com sete tiros: quatro na cabeça – sendo um deles no topo do crânio -, um no abdômen, um na perna e um no braço. "Impossível dar quatro tiros na cabeça de uma pessoa em movimento. Se ela toma uma bala na cabeça, não fica em pé. Esses tiros não foram dados à distância."

De acordo com a equipe de Molina, os policiais deram 439 disparos nesses 124 casos. "Se foi troca de tiros, supõe-se que outros atiraram também. Mas as ações terminam sempre com todos mortos do outro lado e nenhum policial ferido", explica o perito. Para ele, em alguns casos as contradições entre BO e laudo necrópsico são suficientes para levar a investigações, mesmo sem testemunhas.

A Secretaria de Segurança Pública (SSP) considera que, dos 124 casos, apenas 92 estão realmente ligados ao PCC. Informa ainda que as investigações por parte da polícia já foram concluídas e que os processos estão na Justiça, sob responsabilidade do Ministério Público Estadual. Segundo o MP, pelo menos três casos ocorridos na capital já foram arquivados porque os promotores concluíram que "a polícia agiu no estrito cumprimento da lei" e que a situação teria sido mesmo de confronto. Os demais processos na capital seguem sendo investigados e ainda não há dados sobre o interior do estado.

Embora as mortes de maio completem nesta semana seis meses, sem que ninguém dos crimes possivelmente associados a confltos entre PCC e policiais tenha ido a julgamento, a SSP considera que o andamento dos processos é normal. "O problema é que, mesmo depois desse tempo todo, nós não sabemos direito o que aconteceu", declara Rose Nogueira, presidente do Conselho Nacional de Defesa da Pessoa Humana (Condepe). O órgão pretende analisar também os casos já arquivados, para certificar que não houve negligência na apuração.

Indenização
Pelo menos dois casos confirmam as análises de Molina de que houve abuso de uso da força e execuções nas ações policiais. A primeira ação de indenização de famílias que perderam seus parentes no período deve ser concluída até o final de novembro, desmentindo o BO que narrava "resistência seguida de morte". Um segundo processo, com as mesmas características, depende da disponibilidade do juiz em ouvir a testemunha oficialmente, o que deve acontecer até o fim do ano, de acordo com previsões da Defensoria Pública do Estado de SP. "Os culpados já estão identificados, portanto poderão ser julgados criminalmente", esclarece o subdefensor público Pedro Giberti. Para ele, muitos outros casos também não foram resistências seguidas de morte, "mas, para provar, é preciso testemunhas". Ele estima que os dois casos serão emblemáticos, como os únicos levados até o fim.

Giberti lembra, todavia, que a indenização é um processo cível, independente do processo criminal. "Provado o dano – morte ou lesão corporal – e que ele foi cometido por um agente público, já basta para entrar com a ação indenizatória contra o Estado. O que não quer dizer que haverá condenação criminal", esclarece. Ele usa como exemplo o caso de quatro amigos que estavam conversando em uma praça pública quando foram abordados pela PM e levados na viatura. Horas depois, os jovens apareceram mortos em lugares diferentes, e nos seus BOs dizia "resistência seguida de morte". "Não se sabe quem foi o autor do crime, mas a polícia levou os rapazes, então está claro que a responsabilidade é do Estado."

A Defensoria, que atende famílias que não podem pagar por um advogado para processar o Estado, cuida atualmente de dez casos ocorridos de 12 a 21 de maio, que envolvem 21 vítimas (16 mortes e cinco sobreviventes). Dentre elas, há um policial e dois agentes penitenciários. Em outros cinco casos, inclusive nos dois quase concluídos, as famílias atribuem a morte de seus parentes a uma "ação violenta e injustificável de policiais". Segundo o subdefensor, das 18 vítimas que não eram agentes do Estado, algumas tinham antecedentes criminais, mas não existem informações de que fossem ligadas ao PCC.

O Estado já garantiu indenização aos familiares de seus agentes mortos em serviço durante todo o período dos ataques. Uma lei, promulgada ontem, garantiu a indenização também a agentes de folga que foram mortos por pessoas supostam
ente ligadas ao PCC.

Extermínio
Outras 87 mortes das 492 registradas entre 12 e 21 de maio são de extermínio, ou seja, crimes de autoria desconhecida, com muitos tiros no mesmo corpo, dados de cima para baixo e de trás para frente. Estas mortes estão sendo investigadas pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) – como todas as outras do período – e pelas Corregedorias da PM e Civil. Segundo Ouvidoria da Polícia de SP, que acompanha especialmente esses casos, existem testemunhas, mas nenhuma que contribua para identificar a autoria dos crimes.

Há 11 casos em que testemunhas declararam suspeitar do envolvimento de policiais, mas até agora não foi encontrada nenhuma prova nesse sentido. Um exemplo é uma situação ocorrida na Vila Gustavo, Zona Norte da capital paulista. Uma moto com duas pessoas encapuzadas passou em frente a um lava-rápido atirando, matando quatro pessoas. Ao ir à Delegacia, pessoas que presenciaram o crime viram motos parecidas com a do homicídio estacionadas no pátio. De acordo com a Ouvidoria, a resolução de casos sem autoria demora no mínimo dois anos para que se chegue a alguma conclusão.

Ainda no período de 12 a 21 de maio, ocorreram 49 mortes de agentes do Estado – entre policiais e funcionários de penitenciárias -, causadas por pessoas supostamente ligadas ao PCC. Os 232 homicídios restantes são crimes comuns e estão dentro da faixa média de mortes por trimestre, de acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública da SP.

Impunidade
O perito Molina defende que as entidades envolvidas nas investigações devem apresentar resultados para não pairar uma sensação de impunidade. "A sociedade espera uma resposta, inclusive a comunidade internacional. Se três ou quatro casos forem levados até o fim, já muda a situação. Mas se fica só nas estatísticas, não resolve nada." Ele argumenta que, se alguns culpados forem julgados, novas testemunhas podem aparecer, contribuindo para a resolução de outros casos.

Por outro lado, o Diretor de ensino da Polícia Militar de SP, coronel Raugeston Benedito Bizarria Dias, discorda que tenha havido abusos por parte de PMs nas ações que se seguiram aos ataques do PCC, e nega que haja impunidade. Ele justifica que nenhuma conclusão pode ser tirada antes do encerramento das investigações. "É indiscutível que houve um aumento da letalidade, decorrente do momento atípico da sociedade."

Bizarria também nega veementemente que policiais tiveram a intenção de vingar os colegas mortos por integrantes da facção criminosa. "O policial não é um vingador da sociedade." Sua percepção é a de que o crime em si motivou a resposta, que foi "pensada" e não resultado de ações intempestivas. "A maioria dos casos de mortes foram em confrontos diretos, com testemunhas", ressalta.

Entretanto, de acordo com a Defensoria Pública do Estado de SP, os pedidos de indenização moral para as famílias de vítimas de agentes do Estado e muitos dos inquéritos em andamento têm esbarrado na ausência de testemunhas das mortes. O subdefensor Giberti explica que a proteção oferecida pelo Estado é ineficiente e que, muitas vezes, quem viu o crime tem medo de testemunhar contra um policial porque ele continua fazendo a ronda daquela comunidade. "A pessoa não se sente protegida. Então ela acha melhor calar."

Para Giberti, as denúncias anônimas feitas à Ouvidoria da PM contribuem para as investigações, na medida em que confirmam desconfianças e chamam a atenção para certos casos. No entanto, elas não correspondem a uma prova no processo criminal. "Algumas denúncias têm uma riqueza de detalhes, com relação a local e horário, que seria impossível a pessoa ter inventado."

Maus policiais
Ainda que contrarie a tese de excesso do uso da força por parte de policiais nas mortes ocorridas em maio, o coronel Bizarria afirma que, caso fique comprovado que houve violações dos direitos humanos, os agentes envolvidos serão afastados. Em 2005, mais de 400 policiais deixaram suas funções por desvio de conduta na PM do Estado de São Paulo – grande parte deles pelo excesso do uso da força. "Hoje não há histórico de excesso da aplicação de força que não esteja sendo investigado", afirma. Recentemente, a SSP instituiu a "Via Rápida", um mecanismo que permite afastar um policial das ruas e demiti-lo em seis meses. Antes, segundo a Secretaria, o processo demorava cerca de três anos.

Bizarria admite que o abuso de poder pode existir por parte de maus policiais. "Em tudo que é desvio de comportamento humano não dá para ter 100% de controle", argumenta. "O que define um bom policial é o melhor perfil para uma certa atuação. Podem haver agentes despreparados nas ruas, e realmente existem, mas eles passarão por um processo de recuperação". O coronel lembra ainda que fatos marcantes – como o que ficou conhecido como Massacre do Carandiru, em 1992, no qual pelo menos 111 presos foram mortos pela PM paulista – contribuem para repensar os métodos da corporação. Mas ela, na sua opinião, não sai de nenhum desses casos desprestigiada. "O Carandiru e outros episódios não têm a ver com a instituição, mas com pessoas. A instituição é muito maior do que esses episódios", defende.

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