Carta de Açailândia

 20/11/2006

Reunidos na 2ª Conferência Interparticipativa sobre Trabalho Escravo e Superexploração em Fazendas e Carvoarias, mais de 200 pessoas – entre militantes de movimentos sociais, representantes de instituições do poder público e de entidades da sociedade civil e especialistas sobre o tema, vindos de 11 estados – avaliamos a situação do combate ao trabalho escravo após quase quatro anos de execução do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.

Constatamos que:

· Apesar de mais de 16 mil trabalhadores terem sido libertados nesses últimos quatro anos, continuam sendo registradas denúncias envolvendo cerca de oito mil pessoas submetidas à condição de escravos anualmente – mais da metade delas permanecendo sem fiscalização;

· Apesar dos esforços da sociedade civil, do poder público e de organizações internacionais, trabalhadores continuam sendo transformados em instrumentos descartáveis no campo;

· A estrutura fundiária extremamente concentrada e a falta de alternativas de desenvolvimento em locais de baixa renda mantêm reservas de mão-de-obra que garantem constante disponibilidade de força de trabalho barata para grandes propriedades rurais e carvoarias;

· Trabalho escravo tem sido constantemente empregado para o desmatamento de vegetação nativa, visando à expansão do agronegócio e do carvoejamento;

· O latifúndio monocultor e exportador se utiliza da superexploração do trabalho e de mão-de-obra escrava para aumentar sua capacidade de competição nos mercados nacional e internacional;

· A terceirização das atividades agrícolas, pecuárias, de extração vegetal e carvoejamento, praticada por empresários para fugir das responsabilidades legais, tem reforçado a precarização das relações do trabalho, culminando na prática da servidão por dívida;

· Políticos, muitos de expressão nacional, defendem os interesses dos que exploram trabalhadores no campo. Com isso, importantes leis contra o trabalho escravo não conseguem ser aprovadas nas assembléias estaduais e no Congresso e ações de prevenção e repressão não são implantadas nos governos municipais, estaduais e federal;

· São raríssimos os casos de condenação penal pelo crime de trabalho escravo, mostrando uma ausência de comprometimento de importantes setores da justiça brasileira e uma omissão das mais altas cortes do país sobre o assunto;

· Prisões, ameaças de morte e assassinatos de lideranças rurais e membros de movimentos sociais que lutam para combater esse crime são constantes e, muitas vezes, permanecem impunes.

Esses fatos demonstram que, apesar da previsão otimista do poder público há quatro anos, o Brasil ainda está distante de erradicar o trabalho escravo. Com base nisso, elaboramos novas propostas que esperamos possam resultar em compromisso da sociedade e do Estado, no sentido de abolir um crime contra os direitos humanos que envergonha a todos nós.

Propomos:

A) NA ÁREA DE REPRESSÃO

Fiscalizar todas as denúncias de trabalho escravo de forma rápida e eficiente –
Para isso, é necessário que o governo federal garanta recursos humanos e financeiros suficientes para melhorar a fiscalização do trabalho. Como a incidência de mão-de-obra escrava está vinculada com a ocorrência de outros crimes, como ambientais, previdenciários e fiscais, é fundamental uma maior e melhor participação de órgãos como o Ibama, INSS e o Ministério Público Federal na fiscalização.

Punir efetivamente os infratores – O Supremo Tribunal Federal precisa decidir urgentemente a competência para o julgamento dos crimes de trabalho escravo. Os movimentos sociais reivindicam que a Justiça Federal seja a responsável para julgar. O Ministério Público Federal deve voltar a apresentar denúncias contra os proprietários flagrados com trabalho escravo. O Congresso Nacional deve também aprovar o projeto de lei que prevê o aumento da pena mínima de dois a quatro anos, impedindo a concessão de penas alternativas a escravagistas.

Melhorar as condições de acesso das vítimas à Justiça do Trabalho – Intensificar, com recursos públicos, os programas de assessoria jurídica popular e efetivar a interiorização da Justiça do Trabalho através da implantação de novas varas trabalhistas em regiões de incidência de trabalho escravo e de aliciamento.

Reprimir a terceirização ilegal que leva à escravidão e garante a impunidade – Configurada a prática ilegal da terceirização, o tomador de serviços deve ser responsabilizado pelo vínculo empregatício, sendo assim responsabilizado pela prática de trabalho escravo eventualmente flagrada no fornecedor. Os movimentos sociais reivindicam ser consultados antes de que se firme novo termo de ajustamento de conduta entre o Ministério Público do Trabalho e a Associação das Siderúrgicas do Carajás.

Tornar o trabalho escravo um mau negócio – Estabelecer em lei os mecanismos de funcionamento da "lista suja", garantindo que a vedação de contratos e financiamento públicos tenha abrangência nacional. Identificar e divulgar as cadeias produtivas das propriedades que utilizaram trabalho escravo.

Afirmar a função social da terra – Realizar uma campanha nacional pela aprovação da proposta de emenda constitucional que prevê o confisco de terras em que trabalho escravo for encontrado. O Supremo Tribunal Federal deve se pronunciar sem mais demora sobre o caso da desapropriação da fazenda Cabaceiras, no Pará, abrindo caminho a outras desapropriações pelo descumprimento da função social da propriedade. De imediato, enquanto isso não acontece, deve-se priorizar a retomada de terras griladas e a desapropriação dos imóveis improdutivos em que trabalho escravo for encontrado.

B) NA ÁREA DE PREVENÇÃO:

Centrar esforços para a construção de um Plano Nacional de Prevenção ao Trabalho Escravo. Haja visto que o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo não trouxe ações efetivas na área de prevenção, é necessário que os movimentos sociais, entidades da sociedade civil e poder público elaborem metas a serem cumpridas em um curto espaço de tempo para impedir que trabalhadores rurais continuem a se tornar escravos. Entre outras medidas, esse plano deve contemplar:

a) Afirmar a realização de uma ampla reforma agrária como base indispensável para a construção de um outro modelo de desenvolvimento no campo, includente e sustentável. Priorizar a reforma agrária em municípios de origem, de aliciamento, e de resgate de trabalhadores escravizados

b) Educação e
qualificação para os trabalhadores nas áreas de alto risco de aliciamento –
O poder público deve priorizar programas educacionais e de qualificação profissional que permitam aos trabalhadores rurais exercerem efetivamente a sua cidadania. Esses programas, que começam com o processo de erradicação do analfabetismo no campo, devem ser adaptados às várias realidades. Ao mesmo tempo, é fundamental que o tema do trabalho escravo seja incluído nos currículos escolares como tema transversal.

c) Apoio aos trabalhadores em situação de risco – O movimento social e as instituições públicas devem construir uma rede de atendimento qualificada, garantindo o cadastramento desses trabalhadores e sua inclusão efetiva nas políticas públicas afins. Para isso, é fundamental que as informações das várias instituições sejam compartilhadas em um banco de dados público, com acesso aberto.

d) Apoiar o movimento sindical na elaboração de acordos e convenções coletivos em benefício dos trabalhadores do setor do agronegócio e das carvoarias – Em especial, a elaboração de uma convenção coletiva nacional para o setor canavieiro.

e) Efetivar a implantação de agências locais do Sistema Nacional de Emprego (Sine) nos municípios de aliciamento.

f) Garantir a formalização dos empregos nas fazendas e carvoarias

C) NA ÁREA DE INSERÇÃO À CIDADANIA E GERAÇÃO DE ALTERNATIVAS

Apoiar o trabalhador no processo de rompimento do ciclo que leva à escravidão – Além do pagamento de três meses de salário-desemprego e da – prometida, porém, ainda não implantada – inclusão no Programa Bolsa-Família, prever mecanismos específicos de apoio financeiro aos trabalhadores resgatados da escravidão, tais quais: a) salário social de inserção; b) linhas específicas de financiamento para projetos de inserção pessoais ou coletivos.

Criar ou disponibilizar políticas públicas municipais, estaduais e federais para inserir o trabalhador – Inclui a implantação de centros de referência de assistência social nos municípios e o planejamento, de forma integrada, do atendimento aos trabalhadores pelos órgaos públicos competentes. O poder público deve disponibilizar recursos para a acolhida e a hospedagem de trabalhadores denunciantes ou resgatados até a efetiva fiscalização e o retorno aos seus locais de origem.

Fomentar a geração local de empregos – A Secretaria Nacional de Economia Solidária e seus equivalentes estaduais devem privilegiar o apoio a iniciativas de geração de emprego e renda voltadas às regiões com altos índices de aliciamento para o trabalho escravo.

Garantir recursos suficientes para atender as demandas de projetos de geração de emprego e renda – Pedimos que o Codefat destine parte de seus recursos para a capacitação de trabalhadores rurais e para financiar projetos de geração de emprego e renda, com ênfase nas regiões de aliciamento.

Os participantes da II Conferência:

– assumem todas essas propostas como compromissos pessoais bem como de suas organizações e se empenharão para que sejam tambem assumidas pelos demais parceiros do combate ao trabalho escravo.

– solicitam que as mesmas sejam examinadas e assumidas pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE)

– exigem que sejam incorporadas como metas e compromissos a serem viabilizados como parte integrante da atualização do Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo. Que as devidas alocações de recursos sejam incluídas no orçamento da União e no PPA.

Açailândia, 18 de novembro de 2006

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