Entrevista – Paulo Vannuchi

“Direitos Humanos vão para o 2o mandato num patamar superior”

Em entrevista, o ministro dos direitos humanos faz uma avaliação de como a pasta atuou nos primeiros quatro anos de governo Lula, dos déficits ainda presentes - como a localização dos restos mortais das vítimas da ditadura - e das perspectivas para o segundo mandato
Bia Barbosa*
 07/11/2006

Depois de passar por uma crise institucional, em 2005, quando o governo Lula definiu que tiraria da Secretaria Especial dos Direitos Humanos o status de ministério, o órgão foi assumido pelo cientista político e jornalista Paulo de Tarso Vannuchi. Incumbido da missão de reconstruir o diálogo com a sociedade civil e com os movimentos de defesa dos direitos humanos – que haviam se mobilizado fortemente contra a mudança definida por Medida Provisória e cujo diálogo com o governo vinha arranhado também do processo da Conferência Nacional de Direitos Humanos – Vannuchi tem buscado, à frente da Secretaria, reconstruir esses laços e, dentro do governo, conquistar mais espaço para sua pasta.

Preso político pelo regime militar em São Paulo, o ministro dos direitos humanos foi um dos 34 signatários do dossiê entregue em 1975 à OAB com o nome de 233 torturadores da ditadura, descrevendo os métodos de tortura, as unidades onde eram praticadas, e apresentando uma primeira lista geral dos assassinados desde 1964. Na década de 80, Vannuchi trabalhou na equipe que realizou, sob sigilo, o projeto de pesquisa “Brasil Nunca Mais”, um exaustivo levantamento das torturas e dos assassinatos praticados pelos organismos de repressão política durante o regime militar. Petista presente nas campanhas de Lula a presidente, incluindo a de 2002, Vannuchi substitui na pasta o mineiro Nilmário Miranda, que se afastou do governo para participar da disputa eleitoral em seu estado.

No segundo governo Lula, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos continua com status de ministério – pelo menos foi esta a manifestação pública do presidente em campanha –, podendo apenas vir a se juntar com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e a Secretaria de Políticas para as Mulheres num ministério mais amplo, focado na cidadania.

Paulo Vannuchi ainda não sabe se continua no governo. Nesta entrevista exclusiva à Carta Maior, concedida dois dias antes do segundo turno, ele fala dos desafios que a pasta ainda tem pela frente, e faz um breve balanço do que pôde ser conquistado nos últimos anos. Confira abaixo os principais trechos desta conversa.

Carta Maior Na sua avaliação, como o debate dos direitos humanos foi tratado nas últimas eleições presidenciais?
Paulo Vannuchi – O segundo turno foi abençoado, porque nos permitiu demonstrar que não há nenhum campo de debate em que a gente tenha medo de fazer o enfrentamento e que considere que perdeu, nem no tema da corrupção. Na corrupção, não perdemos o debate. Houve falhas de dirigentes do PT, de militantes, de pessoas do nosso governo. Essas falhas têm que ser reconhecidas, compreendidas em profundidade e trabalhadas para que não se repitam. Mas não há nenhuma autoridade moral ou ética pro governo das privatizações ou para o senador [Jorge] Borhausen virar o porta-voz de uma moralidade. Nestas eleições houve uma recuperação da dignidade política, presente numa posição de iniciativa, de ofensiva do candidato Lula, demonstrando nos debates e no horário eleitoral que, item por item, o governo atual tem um trabalho que suplanta inteiramente os 8 anos do governo anterior.

Para os direitos humanos, a eleição foi boa em especial. Primeiro porque levou o presidente Lula publicamente a expressar a decisão de que a Secretaria Especial de Direitos Humanos, a Seppir e a Secretaria de Políticas para as Mulheres serão preservadas e mantidas, quando sabíamos que havia setores dentro do próprio governo que já trabalhavam, erradamente – porque sem debate político –, como tecnocratas (e quem faz isso, no fundo, está cometendo o mesmo erro de conteúdo de quem vai atrás de dossiê, quem tenta resolver questões políticas complexas através de jogadinhas), para mudar este quadro. Pode haver a fusão das três num único ministério da Cidadania e Direitos Humanos se, e somente se, corresponder a um acordo dos três segmentos.

Outro ponto é que, no confronto eleitoral, sobretudo em temas como o da segurança pública, que envolve a questão do PCC em São Paulo, também ficou clara uma diferenciação. Repare que houve uma espécie de “seqüestro” do nome do secretário de Segurança Pública de São Paulo na campanha. Ele sumiu porque representa uma reencarnação do pensamento “Erasmo Dias” na segurança pública, aquela visão autoritária, fascista, da segurança no sentido tosco, de que “ponho pra reprimir”, além das declarações de que “o PCC já acabou, está derrotado”, quando nós sabemos que segurança pública é um problema da sociedade brasileira. É um desafio dos direitos humanos, porque segurança pública também é um direito humano de primeira grandeza e tem que ser pensada numa concepção geral, em que as polícias sejam valorizadas, qualificadas, bem remuneradas, bem formadas e tenham interação crescente com a comunidade. Queremos que a polícia discuta, participe de seminários conjuntos com a sociedade, porque disso é que nasce uma integração cidadã. Assim a polícia compreende que não pode violar a lei em nenhum procedimento. Quando há um enfrentamento com o bandido e há troca de tiros, aí sim a polícia tem o chamado monopólio legítimo da força, que compete ao Estado. Mas, tirando isso, preso o criminoso, ele imediatamente tem que ser uma pessoa com direito a advogado, com direito a não declarar nada e, sobretudo, o direito de não ser torturado, não ser espancado, não ser jogado em condições degradantes e cruéis.

CM – O senhor acha que houve um retorno de concepções conservadoras, prejudiciais à construção da concepção dos direitos humanos?
PV – Há uma insinuação golpista clara em frases como “vamos acabar com este raça” e com a repetição de um certo discurso de Carlos Lacerda: “pode ganhar, se ganhar não pode tomar posse, se tomar posse não pode governar”. E Fernando Henrique Cardoso declarou, de uma maneira irresponsável, que falta um Carlos Lacerda no Brasil. Fernando Henrique, no tempo da burguesia paulista, no Clube Pinheiros, nos chamou de nazistas. Então com esse açodamento anti-democrático, o resultado das urnas é importante para mostrar, sobretudo, que o povo mais pobre deste país, a imensa maioria, a esmagadora maioria de brasileiros que trabalham, produzem e ainda enfrentam o problemas do desemprego, dos salários baixos, das condições dramáticas na saúde, na habitação, no acesso à terra, fez uma opção clara. Disse que neste governo, que com as falhas, deficiências e déficits que tem, foi a primeira vez que se voltou frontalmente para o enfrentamento da fome, da extrema pobreza. E isso é o fundamento maior dos direitos humanos,
porque direitos humanos é a defesa da vida. E não há vida se não há condição básica de alimentação.

Essa política de direitos humanos confronta um passado e um futuro – o presente é a ponte entre essas coisas. Não queremos mais essa situação em que o Brasil falava em direitos humanos, desde o final da ditadura militar, deu passos importantes, mas deixava como um tema à parte a extrema pobreza. Os direitos humanos são os direitos à vida, à segurança, a não ser assaltado, agredido, atacado, torturado, humilhado, submetido a preconceito por raça, pelo fato de ser mulher, ou por opção sexual. E direitos humanos são também os direitos sociais, culturais, econômicos e ambientais. Neste sentido, ficou muito claro que havia um choque de alternativas e a alternativa que o Brasil felizmente está consagrando é a da continuidade desses processos, de afirmação da construção de justiça social, de distribuição de renda, de igualdade, uma nova noção de segurança pública, pra aí sim construir uma cultura de paz, sem violência, onde cada brasileiro e cada brasileira entenda que nós somos parte de uma mesma comunidade.

Temos disputas, conflitos de interesse duríssimos. Por exemplo: os que opõem os interesses empresariais, do lucro, e os interesses sindicais, dos salários. O acordo democrático é que nós vamos trabalhar esses conflitos dentro dos marcos da lei e sem o recurso à violência, pra eliminar o adversário. Neste sentido, os direitos humanos cresceram. O programa do governo Lula para os direitos humanos é um avanço.

CM O senhor falou do papel da polícia, da questão da integração. Vivemos numa federação em que o papel das polícias ainda passa por uma relação conflituosa. Qual o papel da União neste processo? Como a União consegue, na sua relação com os estados, resolver este problema, que não é específico de São Paulo? O Brasil continua, por exemplo, sendo responsabilizado internacionalmente por ações dos seus estados em relação à segurança pública. Como pode se trabalhar daqui pra frente para que, respeitando o pacto federativo, seja possível embutir uma concepção de direitos humanos na nossa segurança pública estadual?
PV – Ao longo dos anos 90, foi crescendo no Brasil, em qualquer estudo de opinião, a visão da violência como um dos problemas centrais a preocupar o brasileiro e a brasileira. Isso fez com que, por iniciativa do presidente Lula, no Instituto Cidadania, pela primeira vez na história da esquerda brasileira, tenha se feito um mergulho neste tema. Foi um trabalho que envolveu seminários no Brasil inteiro para se pensar a segurança pública cidadã. Este trabalho terminou no projeto “Segurança Pública para o Brasil”, que foi entregue ao ministro da Justiça da época, Aloísio Nunes Ferreira. Ele recebeu isso das mãos do Lula e declarou que era o estudo mais sério já feito sobre o tema no Brasil. E o estudo mudou a concepção que tínhamos sobre o tema.

A esquerda, antes, tendia à visão que o problema da segurança pública seria resolvido com a solução dos problemas sociais. Então, à esquerda interessava resolver o problema do emprego, da distribuição da renda. É fato que a questão econômica social é o fundo de todos esses problemas, mas além de buscar o enfrentamento dessas questões, é importante ter propostas que mecham concretamente com o que existe hoje no panorama da segurança. Era necessário construir uma política que deixasse claro que – ao contrário do que sempre foi usado contra a esquerda, o PT e o Lula – a política de segurança pública democrática envolve a visão de que os bandidos serão combatidos, presos, punidos, mantidos nas prisões pelo tempo necessário. O que não aceitamos é que esses presos sejam parte de um processo de promiscuidade com autoridades da polícia, que cria relações com crime organizado e, sobretudo, os submete a condições degradantes.

CMComo a União atua neste processo?
PV – Esta foi primeira vez que se propôs uma abordagem plural de um tema que, no pacto federativo histórico no Brasil, reafirmado na Constituição de 88, é definido como atribuição dos estados. Fazendo um parêntese, agora, por exemplo, houve um cinismo quando Geraldo Alckmin chegou a declarar que o problema da segurança pública era federal, como se ele, como governador, não soubesse. É como se eu começasse a acusar o Geraldo Alckmin pelos problemas da reforma agrária em São Paulo. O problema da reforma agrária, dos índios, das relações internacionais, são atribuições federais. Mas o problema da segurança pública é estadual. O que a proposta do presidente Lula apresentava, antes dele ser presidente, e que depois virou política pública de segurança no Ministério da Justiça, era criar o Sistema Único de Segurança Pública. Instituir uma Secretaria de Segurança Pública conveniada aos estados através de verbas, para, exatamente, desenvolver ações como: requalificar a polícia, reequipar, priorizar investigação e ciência, e não truculência e violência, para baixar a letalidade policial ao mesmo tempo em que demonstrar mais eficiência no combate ao crime. O Estado de São Paulo foi muito resistente a isso, foi o último estado a assinar o convênio. Conseguimos alguns avanços, muito recentemente, depois da tragédia de maio, do ataque do PCC, e depois da posse do governador Cláudio Lembo, que tem que se mantido um tanto afastado dessa disputa histérica de colocar o eleitoralismo em tudo. Conseguimos criar, pela primeira vez, o gabinete de gestão integrada para fazer este enfrentamento.

Neste sentido, o que está colocado como programa de governo para o segundo mandato é completar este processo e conceber iniciativas novas. Há dois meses fizemos o lançamento da primeira Rede Nacional de Especialização em Segurança Pública. São 19 universidades que já iniciam, imediatamente, um curso de mestrado latus sensu que vai trazer o tema da segurança pública para um ambiente que não é só de operadores da justiça. Integrará policiais, delegados, promotores, procuradores, juízes, advogados e a academia num pensamento à luz do que já existe de melhor nas experiências internacionais: a segurança pública com o foco em direitos humanos. Neste sentido, agora teremos a grande vantagem agora é já partir de quatro anos de experiência, de termos ultrapassado a enorme dificuldade da transição.

CMQue avaliação o senhor faz desses quatro anos de governo Lula? O que significou a implantação de uma secretaria qu
e nasceu com o objetivo de fazer uma ponte entre todos os ministérios para que a concepção de direitos humanos atravessasse todas as políticas desenvolvidas?

PV – O erro é uma característica intrínseca do ser humano. E é preciso ter uma atitude perante o erro. Um dos erros cometidos foi, no auge da crise de 2005, importantes assessores presidenciais, do mais alto nível, terem vendido a idéia e convencido o presidente a tomar uma decisão errada, que é da agenda neoliberal: a decisão de reduzir ministérios. Quiseram fazer isso e os ministérios reagiram, se opuseram, menos o de direitos humanos, porque Nilmário Miranda estava se afastando para a disputa política em Minas Gerais. Então a Secretaria foi a única rebaixada. Foi uma sinalização negativa, danosa para todos os movimentos sociais. Em dezembro de 2005 isso foi restabelecido e faz seis meses que estamos esperando a reconversão da medida provisória.

O ano de 2006 foi um ano de recomposição. Do ambiente interno da secretaria, das relações com os movimento sociais, numa atitude que era a única que tinha para ser tomada, que era a de chamar para conversar, ouvir queixas, cobranças, reconhecer e chamar para atitude conjunta, de recuperar o curso da acumulação histórica.

Nos três anos anteriores do governo Lula houve importantes avanços na área: foi feito o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, conseguimos a constituição de vários conselhos (de pessoas com deficiência, de direitos do idoso, na área da criança e adolescência…). Houve um trabalho importante. E houve alguns déficits, que eu busquei priorizar.

CMQue déficits?
PV – Este não é um problema específico do meu antecessor, não é dele a responsabilidade, mas um déficit evidente é na área da abordagem do chamado direito à memória e à verdade. De fato, não trabalhamos, no nosso governo, tudo que poderíamos ter trabalhado para manifestar expressamente o reconhecimento de que o Estado brasileiro ainda não fez os esforços devidos de localização dos mais de 100 restos mortais do período da ditadura. Desde 1995 temos uma lei – a 9.140 – e a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, que existe desde 1996, e que completa 11 anos. Esta comissão trabalhou e avançou no governo federal anterior. Nós buscamos manter o máximo possível de continuidade, reconhecendo a contribuição fundamental do Ministro José Gregori. Agora vamos lançar um livro que marcará o relatório desta primeira etapa da comissão. O livro registra o tratamento dos 400 casos, em números arredondados, as indenizações para as famílias e, sobretudo, o resgate da verdade. Falta agora cumprir o que está escrito na lei, que é “envidar esforços para a localização” dos restos mortais. A comissão começará imediatamente a tomar depoimentos de pessoas, familiares, companheiros ou policiais, agentes da repressão, que possam informar sobre possíveis localizações. São 87 mortos. É preciso fazer isso e é plenamente possível.

CMComo este processo deve acontecer?
PV – É preciso fazer uma discussão muito séria, sem revanchismo, bem desarmada, reconhecendo que as Forças Armadas hoje já são bastante diferentes daquelas; a geração de comando hoje já não tem nada a ver com aquilo. Há uma responsabilidade institucional, do Estado. Nós estamos indenizando as famílias por crimes que foi cometidos por Médici e seu comando de repressão. Mas a instituição Exército, Marinha, Aeronáutica ainda não atenderam a uma exigência histórica que é envidar todos os esforços neste sentido.

As referências que temos de localização ainda não muito genéricas, muito vagas, e eu continuo determinado a trabalhar apostando no empenho presidencial e na decisão dos próprios ministros em envidar esforços. Se hoje há livros e livros em que se apresenta um monte de arquivos, um monte de informações, se trata então de organizar esses dados com o apoio das Armas. Elas não se recusam a isso, mas formalmente respondem que os arquivos foram destruídos com base nas leis existentes em cada período. Mas, mesmo assim, já existe no Brasil um conjunto de normais legais estabelecendo o que se chama de reconstituição de arquivos.

CME em relação a abertura de novos arquivos?
PV – Os arquivos da repressão política no Brasil estão mais abertos do que os de qualquer outro país vizinho. Fui visitar o Uruguai, a Argentina, o Chile, o Paraguai e isso mudou minha impressão inicial. Minha impressão era a de que no Brasil não havia aberto seus arquivos. E era o contrário. O país em que há maior número de arquivos abertos é o nosso, sem a menor sombra de dúvidas. Isso não é resultado do governo Lula. Os arquivos estaduais do Rio Grande do Sul, do Paraná, de São Paulo, Rio e Pernambuco foram abertos. O governo Lula abriu os da Abin, que, ao contrário da má vontade que tiveram naquele período, 21 de dezembro de 2005, a imprensa e os familiares de mortos e desaparecidos, desgastados pelo que eu chamei de déficit, que tiveram uma atitude simplista e disseram que não havia informações, ali havia. Quero dizer – e aí eu não falo como ministro, mas como uma pessoa que ficou cinco anos presa e dez dias sendo torturada – que não há arquivos dizendo: “vá lá, pegue o Paulo Vannuchi e torture das 8h às 12h”. Não há. Não é assim que funciona a repressão. Nem no Hitler, nem no DOI-Codi. O que há são os arquivos do trabalho. De fato não é sensato acreditar que, com uma transição democrática de 14 anos – começa em 74 e termina em 88 –, não tenha havido momentos em que um conjunto de torturadores tenha cuidado de destruir arquivos de fato.

Mas há muitos disponíveis. Só o projeto “Brasil Nunca Mais”, que está na Unicamp, tem um milhão de folhas. Seguramente, 100 mil páginas dali são do Exército, Marinha e Aeronáutica. Os arquivos do Superior Tribunal Militar estão à disposição. Os arquivos estaduais talvez tenham milhões de páginas de documentos do Exército, Marinha e Aeronáutica. Então, havendo uma vontade governamental, e mesmo que arquivos tenham sido destruídos, é preciso e necessário reconstruir. Os arquivos são peça importante para realizar a designação da lei. Então, com os depoimentos, e se fizermos ações de parceria com o Ministério Público Federal, será possível trabalhar a convocação com poder de polícia de algum
as testemunhas. A Comissão não pode, só pode convidar. Então convidará militares, que já estão dando depoimentos e querem falar. O Curió, do Araguaia, disse que está disposto a falar, por exemplo. Aí, a partir da imprensa e da pressão social, será possível criar um entorno que faça o próprio governo federal a ter clareza de que isso é uma demanda da construção democrática. É preciso mostrar que, o que estamos discutindo agora é o direito à memória e à verdade. Se vai haver punição, isso pode ficar para uma segunda etapa, para a sociedade decidir.

Juristas como Dalmo Dallari, Helio Bicudo e Fábio Comparato consideram que os crimes chamados de “conexos” pela Lei de Anistia não têm capacidade nominativa para incluir assassinatos e seqüestros. E “desaparecimentos” claramente é um crime continuado. Então se você diz “tudo o que aconteceu de 79 pra trás” está falando dos casos em que houve mortos com cadáveres presentes. Quando tenho 100 casos sem cadáveres, no direito internacional isso é claro: sem cadáver não há homicídio. Então é crime continuado e não está encoberto pelo véu de 79. A grande diferença em relação a outros países, incluindo nossos vizinhos, está exatamente neste plano, da impunidade. Chile e Argentina, em grande escala, o Uruguai e o próprio Paraguai têm processos de julgamento e condenação que o Brasil não tem. Iste é o desfio brasileiro. E eu, como ministro, tenho que ter cautela institucional e entender o problema como um problema de governo e de Estado, porque envolve o Poder Judiciário, que será soberano para isso. Não tenho a menor dúvida de que é fundamental abrir essa discussão. E sem espírito revanchista. Não é retorno ao passado, é preocupação com o futuro. Se o Brasil persistir na atitude de não fazer, estará contribuindo na impunidade, para que a tortura prossiga existindo como praga disseminada no tratamento hoje do preso comum e para a idéia de que posso violar direitos humanos porque, ao fim e ao cabo, nada acontecerá comigo.

É preciso ter muita seriedade neste tratamento, muita prudência, e aí não dá para querer que os familiares, que viveram essa situação, o trauma radical, tenham uma atitude sensata, equilibrada. Mas a autoridade pública precisa fazer essa mediação política, com um farol sobre o passado. Vamos reconhecer que os governos não são estrutura hegemônicas, especialmente no presidencialismo de coalizão, em que você faz coalizões, como foi o primeiro governo Lula foi e será o segundo, de larga amplitude política e ideológica. Mas é preciso seriedade institucional para entender que o mais importante é assegurar que Exército, Marinha e Aeronáutica persistam neste rumo, que já desenvolvem, de se constituírem como forças constitucionais profissionais.

CM O senhor acredita que essa disputa ainda vai continuar? Será preciso seguir disputando, dentro do governo, essa concepção de direitos humanos?
PV – Se haverá ou não unidade interna, isso é um grande processo de construção. Do ponto de vista de formulação explícita, todos os ministros declaram que são a favor dos direitos humanos. Mas a resistência se opera nos detalhes. O governo Fernando Henrique, por exemplo, teve segmentos como o ministro José Gregori, o Paulo Sergio Pinheiro, militantes dos direitos humanos que encontraram resistência lá dentro. O governo Lula é mais comprometido. De cara, mostrou isso com a criação das três secretarias ministeriais e com a política social de enfrentamento da miséria. Agora, tanto o Nilmário como eu tivemos resistência, no dia-a-dia, em função de uma visão um tanto quando pitoresca de direitos humanos. A nossa tendência é ser tratado de uma maneira muito referencial dentro do governo, como se fôssemos bispos. Muitas vezes conseguimos parcerias fortes, como no combate ao trabalho escravo, na questão do desenvolvimento social e do Bolsa Família. Mas não dou a batalha como vencida. Toda a assunção do tema dos direitos humanos que o Estado brasileiro fez, ao longo de vários governos, de vários partidos, foi resultado daquilo que nasceu na sociedade civil, que pressionou e exigiu.

Ainda falta, por exemplo, ampliar a questão junto ao Poder Judiciário. Temos, diariamente, sentenças judiciais contra índios, contra o MST, contra as famílias que denunciaram torturas e mortes, etc. Em novembro vamos fazer uma reunião para constituir um grupo com a Advocacia Geral da União, o Conselho Nacional de Justiça, o Itamaraty e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, para tratar de todos os casos brasileiros de petição no sistema de direitos humanos da OEA [Organização dos Estados Brasileiros], que são quase 90 em andamento, e que obrigam o Brasil a cumprir os tratados internacionais.

Então estou muito feliz porque estamos indo para um segundo mandato com os direitos humanos num patamar maior, superior em termos de compreensão e respeito interno, do que tínhamos, digamos, em 1 de janeiro de 2003. Se vamos seguir crescendo dependerá grandemente de como sociedade civil e imprensa se alinharem neste processo. Se houver – e vou trabalhar para isso que não ocorra – uma pressão dos movimentos sociais no direito à memória e à verdade que não seja lúcida, no lugar de ajudar a construção isso pode prejudique. A lucidez da tática é fundamental. Em política é preciso pensar em eficácia. Às vezes um discurso raivoso e irado só nos devolve uma paz interna, que vai durar meia hora – você coloca pra fora o ódio e a raiva que tinha, muitas vezes legítima –, mas você não construiu o mais importante.

CM – O senhor continua como ministro?
PV – Isso depende de uma decisão presidencial. Mas, pessoalmente, me coloco como uma pessoa que tem capacidade de trabalhar fora do governo, como se estivesse no governo, sobretudo nesta ponte movimentos sociais, CUT, intelectuais, igreja, forças de esquerda e governo. Se houver tarefas para mim aí, assumirei com muita honra. Essas renovações são saudáveis. Me colocarei à disposição do presidente, acentuando a possibilidade de trabalhos que posso fazer fora do governo, sobretudo no PT, que tem que ser um partido reconstruído. Seria uma reconstrução superior, já partindo de 25 anos de história, de um partido que não tem mais direito de ser romântico, mas não tem o direito de ser conivente com processos degenerativos. Partidos operários na Europa passaram por processos de degeneração; se transformaram em pequenos grupos de interesse, de sobrevivência, com a alta profissionalização dos quadros. Posso ser útil neste sentido porque não tenho interesse em disputar cargos internos.

(*) Bia Barbosa é membro da ONG Re
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