O diretor executivo da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), Tito Martins, declarou, na última quarta-feira (22), que a empresa irá parar de vender minério às produtoras de ferro-gusa no Brasil suspeitas de utilizar matéria-prima produzida por escravos. Segundo informações da assessoria de imprensa da CVRD, a renovação dos contratos com as siderúrgicas só será feita com aquelas que tiverem sua situação ambiental e trabalhista regularizadas. A maioria desses contratos expiram-se em 31 de dezembro de 2008.
A produção brasileira de ferro-gusa – matéria-prima para o aço – se concentra no chamado Pólo Carajás, composto por siderúrgicas localizadas no Pará e no Maranhão. Por isso, a região é polvilhada de carvoarias, que fornecem insumo às siderúrgicas.
No entanto, de acordo com dados do Ministério do Trabalho e Emprego, as carvoarias na região dos Carajás são um foco preocupante de emprego de mão-de-obra escrava e degradante.
A Companhia Vale do Rio Doce, que fornece 100% do minério utilizado para a produção de ferro-gusa no Pólo Carajás, é hoje uma das instituições signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Através do documento, mais de cem empresas, entidades representativas e organizações da sociedade civil se comprometem a dignificar e modernizar as relações de trabalho nas cadeias produtivas dos setores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à escravidão.
Para Caio Magri, gerente de Parcerias do Instituto Ethos, entidade que coordenou a articulação do Pacto, é extremamente positiva a sinalização que a CVRD dá ao mercado. “A empresa está dando um exemplo para que outras companhias assumam responsabilidades não só como compradoras, mas também como vendedoras”, diz. “Trata-se de uma iniciativa louvável, que reforça a importância do Pacto como instrumento sensibilizador para a erradicação do trabalho escravo.”
Representantes do movimento social também vêem com interesse a nova política. “É uma decisão importante, que tem grande significado”, afirma o frei Xavier Plassat, membro da coordenação nacional da Campanha de Combate ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra. “A CVRD é fornecedora exclusiva e, portanto, tem grande influência sobre as siderúrgicas.” No entanto, Plassat lembra que a própria Companhia Vale do Rio Doce está associada a prejuízos ambientais e sociais em regiões do Pará e do Maranhão, onde a expansão das plantações de eucalipto pertencentes à empresa estaria gerando concentração de terras e devastação do meio ambiente.
André Câncio, presidente da Associação das Siderúrgicas de Carajás (Asica) – que reúne 15 companhias produtoras de ferro-gusa – afirma que a entidade ainda não foi informada de nenhuma posição oficial da CVRD. Além disso, ele classifica como “absurda” a alegação de prevalência de trabalho escravo nas carvoarias que abastecem o setor. “Desde 1999, com a implantação do Termo de Ajustamento de Conduta do Maranhão e, posteriormente, com a assinatura da Carta Compromisso para Erradicação do Trabalho Escravo, importantes avanços foram conquistados.”
Entre as iniciativas destacadas, ele ressalta a criação do Instituto Carvão Cidadão (ICC), que tem por objetivo orientar, auxiliar e fiscalizar os fornecedores de carvão vegetal das siderúrgicas associadas à Asica. “Até hoje, 945 fornecedores de carvão já foram fiscalizados, dos quais 253 foram descredenciados por não estarem de acordo com as normas trabalhistas.”
Câncio afirma, no entanto, que o fato de a rede de fornecedores ser muito pulverizada – com mais de três mil pequenos e médios produtores cadastrados – dificulta o controle e a fiscalização. Ele exemplifica citando a situação de uma hipotética multinacional do setor de laticínios. “A empresa que beneficia o produto, transformando leite de vaca em leite em pó, recebe o produto in natura de diversos fornecedores. Como manter sob rígido controle as condições de trabalho do homem que tira o leite em uma fazenda localizada em região distante?”
Medida inócua?
Na contramão das vozes otimistas, Maurílio Monteiro, pesquisador do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (NAEA/UFPA), acredita que a iniciativa da CVRD pode revelar-se inócua devido à estratégia de terceirização adotada pelas produtoras de ferro-gusa. “As siderúrgicas, historicamente, usam meios para se desvincular do trabalho escravo e o poder público tem sido ineficaz em estabelecer o vínculo delas com as carvoarias que possuem irregularidades”, acredita.
Como exemplo dessa situação, ele destaca o fato de nenhuma guseira ter tido, até hoje, sua licença ambiental cassada – apesar das graves irregularidades no uso de carvão ilegal já constatadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em várias delas. Para o pesquisador, a estratégia do poder público de firmar Termos de Ajustamento de Conduta com as siderúrgicas tem se revelado ineficaz no combate ao trabalho escravo. “O governo não deveria firmar mais acordos do gênero. Quem não cumpre rigorosamente a lei deveria ter sua guseira fechada.” O Ministério Público do Trabalho está organizando um novo TAC com as siderúrgicas do Pólo Carajás.
A informação do diretor da CVRD foi dada, em primeira mão, à agência de notícias norte-americana Boomberg. Recentemente, uma reportagem publicada na revista dessa agência mostrou cadeias produtivas do aço que começavam em carvoarias com trabalho escravo na região dos Carajás e terminavam em grandes indústrias dos Estados Unidos. Após essa matéria vir a público, a montadora de veículos Ford anunciou que deixaria de comprar dos que se beneficiam desse tipo de mão-de-obra.
Contudo, não houve mais detalhamentos de como essa nova política será implantada. A Repórter Brasil perguntou à empresa se ela deixará de vender às siderúrgicas cujos fornecedores (carvoarias) foram flagrados usando trabalho escravo pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Além disso, também indagou se a CVRD exigirá das produtoras de ferro-gusa comprovação de quem são seus fornecedores de carvão vegetal. Até o fechamento dessa reportagem, no entanto, não obteve resposta.