No início do governo Lula, a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) ganhou status de ministério, o que gerou forte expectativa nos movimentos e entidades da sociedade civil que lutam pela efetivação dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Apesar de avanços, como a criação do Programa Brasil sem Homofobia e a elaboração do Sistema Nacional de Medidas Sócio Educativas (Sinase), a atuação da secretaria ficou muito aquém do esperado, entre outros motivos, por conta das limitações orçamentárias, por haver pouca articulação e integração entre as diferentes políticas na área e pelo abandono do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que não foi revisto, nem reformulado. Além disso, a SEDH perdeu seu status de ministério durante seis meses, de julho a dezembro de 2005, quando passou a ser vinculada à Secretaria-Geral da República, deixando bastante apreensão em relação a possíveis retrocessos.
No segundo mandato do presidente Lula, movimentos e entidades de direitos humanos avaliam que será preciso avançar muito mais em diversas áreas, como segurança pública, combate ao trabalho infantil, proteção aos defensores de direitos humanos, saúde indígena e medidas sócio-educativas para adolescentes em conflito com a lei. Para isso, a priorização das políticas de direitos humanos no orçamento e a reformulação do PNDH são consideradas ações fundamentais.
No entanto, segundo Caio Varela, do Instituto Nacional de Estudos Socioeconômicos (Inesc), na previsão orçamentária para 2007, há uma redução dos recursos para políticas voltadas à promoção dos direitos humanos. Na lei orçamentária de 2007, houve, por exemplo, diminuição dos recursos destinados à população GLBT (Gays, Lésbica, Bissexuais, Travestis e Transexuais) em relação a este ano. Enquanto em 2006 foram previstos R$ 7 milhões para prevenção e combate à homofobia, voltados para os centros de referência GLBT, que oferecem assistência jurídica e psicológica para homossexuais vítimas de violência, o valor sugerido para o orçamento do próximo ano é de apenas R$ 2 milhões. Ao mesmo tempo, a meta de atendimentos subiu de 2 mil para 20 mil vítimas. “É um quadro muito alarmante porque houve uma diminuição grande de recursos para atender uma quantidade maior de pessoas”, afirma Varela.
A sociedade civil ainda pretende lutar por emendas à lei orçamentária para reverter esse quadro, que se repete em várias áreas, mas isso não resolve a questão do financiamento das políticas de direitos humanos. O problema maior não é a quantidade de recursos alocados formalmente e sim como é o processo de execução do orçamento, já que a há um grande contingenciamento na área de direitos humanos. “Isso não só corta recursos como também bagunça administrativamente, por causa da expectativa de que os recursos saiam no mês seguinte. As secretarias acabam jogando os gastos para o ano seguinte, gastam mal, fazem convênios com ONGs e depois deixam essas organizações com problemas de caixa. A liberação de recursos sem planejamento é mais danosa do que a redução no orçamento”, explica Ivônio Barros, do Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos (FENDH).
Uma das principais demandas das entidades de direitos humanos para o segundo mandato do presidente Lula é que o Programa Nacional de Direitos Humanos seja reformulado. A primeira versão foi lançada em 1996, com 227 propostas de ações governamentais referentes aos direitos à vida, à liberdade e ao tratamento igualitário perante a lei, além de proposições na área da educação e cultura em Direitos Humanos e ações internacionais para proteção e promoção deles. No final de 1999, através de seminários regionais com a participação da sociedade civil, iniciou-se um processo de revisão do programa, com o objetivo de incluir os direitos econômicos, sociais e culturais na sua estrutura e de estabelecer mecanismos para o monitoramento da execução das ações previstas. Em maio de 2002, o governo federal apresentou uma nova revisão e atualização do programa.
Esperava-se que, em 2003, ou no máximo em 2004, fosse feita uma nova versão, com participação da sociedade civil. No entanto, a partir do início do governo Lula, o programa foi inteiramente deixado de lado, sem que fosse apresentada uma nova proposta, o que dificultou a efetivação dos direitos humanos e o monitoramento das políticas nessa área.
Segundo Barros, o governo federal abandonou o programa nacional e apostou em programas setoriais, como o de educação em direitos humanos, o Brasil sem Homofobia e o programa contra a tortura. “Do ponto de vista de quem luta pelos direitos humanos é um retrocesso, já que eles são indissociáveis. Nossa expectativa é que em 2007 possa ser discutida com o governo uma reformulação dessa estratégia, para que tenhamos um plano nacional que integre melhor as políticas públicas nessa área, ligando-as ao orçamento público, e que crie mecanismos de monitoramento e avaliação delas”, defende.
A articulação no Congresso Nacional para a aprovação do projeto de lei que cria o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) é outra reivindicação importante feita por movimentos e entidades da área para o próximo governo. Apesar de não estar no formato idealizado pela sociedade civil – com maioria de membros representantes da sociedade civil, orçamento próprio e atuação autônoma – essa nova instância é considerada fundamental para o monitoramento e pressão política em relação aos direitos humanos, pois teria ampliada sua força política e suas competências em relação ao atual Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), ligado à SEDH.
Necessidade de avançar mais
Lançado pela SEDH em outubro de 2004, o Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, que oferece proteção a lutadores sociais que estejam sofrendo ameaças e corram risco de morte, é alvo de duras críticas por entidades e movimentos. “Fui a primeira a entrar no programa e sei que não decolou”, afirma Valdênia Paulino, do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). “Quem está em risco precisa de atendimento imediato, não pode esperar por meses. Para conseguir uma escolta foi muito difícil, tinha que pré-agendar com antecedência, mas as violações de direitos humanos não me avisam antes. Se eu não estivesse articulada com outras organizações teria corrido risco muito maior. Além disso, o programa não d
á respaldo psicológico nem material”, completa.
Falta também, segundo ela, maior transparência no Programa Nacional de Educação em Direitos Humanos, que não tem chegado aos atingidos pelas violações de direitos humanos, restringindo-se à academia. “O programa está muito intelectualizado, é preciso diminuir a distância entre o mundo intelectual e quem sofre as violações, a população que vive nas favelas, nos cortiços, dos movimentos sociais. Quanto do dinheiro desse programa chegou na ponta?”, questiona Valdênia.
Na área de segurança pública, apesar de terem sido feitas várias ações, como as de capacitação de agentes policiais, as entidades avaliam que, nos quatro anos de governo Lula, não houve praticamente nenhum avanço em relação aos direitos humanos. O Sistema Único de Segurança Pública, previsto no Plano de Segurança Pública, não saiu do papel. “Os presos são tratados pelo governo federal e pelos governos estaduais como animais que vão ser sacrificados, a Lei de Execução Penal não é cumprida, o judiciário não acompanha os presos, muitos deles já deveriam ter sido soltos, e a violência dentro dos presídios não ajuda ninguém a se ressocializar. É um barril de pólvora que precisa ser resolvido”, diz Ivônio Barros, do FENDH. O crescimento da letalidade da ação policial também é apontado como um grave problema a ser enfrentado pelo próximo governo. Enquanto no mundo todo as polícias diminuem os índices de mortes em sua atuação, no Brasil, ao contrário eles só aumentam. “Ao invés de investir em equipamentos, em investigação, em inteligência, só investem em equipamentos letais, que só matam, não diminuem a violência nem aumentam a segurança dos policiais em situação de conflito”, acrescenta.
Infância e juventude
Em relação especificamente aos direitos da criança e do adolescente, Wanderlino Nogueira Neto, consultor especial da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced), afirma que os militantes das entidades sociais que atuam na área esperavam um fortalecimento do papel da sociedade civil nos espaços paritários de formulação de políticas e de controle das ações públicas – nos conselhos dos direitos da criança e do adolescente, particularmente no Conanda – o que de certa forma ocorreu. “O governo ‘atrapalhou’ pouco esse papel, mas não aprofundou a experiência de aperfeiçoar o modelo de democracia representativa com uma mesclagem com o modelo participativo. Esperava-se que se fizesse do Conanda um espaço privilegiado para se discutir as grandes questões referentes às políticas em geral em favor da infância e especialmente da política de promoção de direitos humanos. E isso não aconteceu a sociedade civil muitas vezes sustentou politicamente o Conanda, diante da omissão do governo de maneira geral”, analisa.
Havia forte expectativa também de que se brecasse a série histórica de perda de recursos públicos orçamentários para infância e juventude que estava ocorrendo desde 1995. “Isso não aconteceu: a criança não passou a ser prioridade no orçamento nacional, ficando assim o princípio constitucional da prioridade absoluta no papel, especialmente em face de contingenciamentos de verbas”, afirma. Segundo ele, para o próximo governo, é imprescindível que essa situação seja modificada.
Quanto ao atendimento sócio-educativo aos adolescentes autores de ato infracional, ele considera importante que o novo governo firme uma posição mais uniforme e menos ambígua de relação à política que deverá administrá-lo. A demanda é que seja fortalecida a linha prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), colocando esses programas no seio da política de promoção de direitos humanos e não da assistência social, apoiando a implementação do Sinase, aprovado pelo Conanda recentemente, e encaminhando ao Congresso Nacional projeto de lei que aperfeiçoa a aplicação e execução de medidas sócio-educativas. “O que foi planejado e estruturado está num bom caminho, necessitando de execução privilegiada. É importante transformar o atual sistema penal-penitenciário cruel e desumano que está implantado num modelo realmente sócio-educativo, socializador”, acrescenta o consultor da Anced.
As entidades que lutam pela efetivação dos direitos da criança e do adolescente também reivindicam que a partir de agora o governo federal cumpra regularmente suas obrigações de apresentar relatórios ao Comitê dos Direitos da Criança da ONU. O Brasil levou mais de dez anos sem cumprir essa obrigação e só no governo Lula o primeiro relatório foi apresentado, possibilitando que o Comitê internacional apresentasse suas recomendações ao Brasil. O prazo para implementar as recomendações e apresentar novo relatório – tanto do governo federal quanto da sociedade civil – termina em outubro de 2007.
O combate ao trabalho infantil, por sua vez, é uma área em que se considera que houve retrocesso. Há cerca de dois anos o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil vem colocando ao governo federal que as políticas públicas relacionadas a esse problema estão desagregadas, que existe um desinteresse do aparelho de Estado em relação a isso. “Agora provavelmente o governo vai acordar porque os últimos dados do IBGE mostram o crescimento do trabalho infantil, revertendo uma curva de decrescimento que já durava cerca de 15 anos. Estava caindo paulatinamente, mas de 2004 para 2005 a curva mudou de sentido e vai ser preciso trabalhar bastante para reverter isso”, acredita Ivônio Barros, do FENDH.
(*) Fernanda Sucupira é membro da ONG Repórter Brasil.