Impasse na luta contra o trabalho escravo

 13/11/2006

WALTER NUNES

A competência para julgar o crime de redução à condição análoga à de escravo deve ser da Justiça Federal. Cabe ao STF decidir rapidamente

A PARTIR de 1995, o Brasil, com o apoio de diversas entidades da sociedade civil -entre elas, a Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil)-, vem desenvolvendo intenso trabalho para erradicar o trabalho escravo.

Foram criados o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (no âmbito do Ministério do Trabalho) -que cuida, com o apoio da Polícia Federal, de libertar os trabalhadores encontrados em situação de escravidão- e o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (no Ministério da Justiça), que deve propor mecanismos para garantir maior eficácia na prevenção e repressão ao trabalho escravo. A par disso, em 2003, o governo federal lançou um Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.

A posição transparente adotada pelo Brasil de admitir, em 2004, na ONU, a existência de um número de 25 mil trabalhadores escravos e o seu efetivo engajamento no combate a essa prática desumana fizeram com que, já a partir de abril de 2002, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) colocasse em execução o projeto de cooperação técnica "Combate ao Trabalho Escravo no Brasil".

Devido a esse trabalho desenvolvido pelo governo federal em conjunto com entidades não-governamentais, o país foi citado como referência no relatório global da OIT do ano de 2005 -"Uma Aliança Global Contra o Trabalho Forçado".

Há, porém, diversos fatores que dificultam a luta contra esse tipo de criminalidade. No Brasil, o entrave que atualmente mais preocupa diz respeito à questão processual atinente ao órgão jurisdicional competente para julgar os casos de trabalho escravo.

Precedentes do STJ (Superior Tribunal de Justiça) confirmam a competência da Justiça Federal, afirmando que "o delito de redução à condição análoga à de escravo (…) se enquadra na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, de competência da Justiça Federal", "pois vai além da liberdade individual". Todavia, a questão não está pacificada: pende de conclusão no STF (Supremo Tribunal Federal) o julgamento do RE 398.041, com o qual, aí sim, na qualidade de órgão jurisdicional que detém a última palavra para definir questões de natureza constitucional, será definido o assunto.

Por enquanto, quatro ministros votaram no sentido de que a matéria é da alçada da Justiça Federal, porém, houve pedido de vista. A indefinição é maléfica para o combate ao trabalho escravo, pois, conforme a decisão do STF, ou os processos até agora julgados pela Justiça Federal ou os apreciados pela Justiça estadual serão considerados nulos, o que levará ao reconhecimento da prescrição de muitos dos delitos praticados.

Não se pode deixar de observar que a competência da Justiça Federal é firmada tendo em conta as nuanças de ordem política interna e internacional. O fato mesmo de o Brasil ser uma República Federativa implica o dualismo judicial, com a coexistência de órgãos jurisdicionais federais e estaduais. A competência federal tem como critério não apenas os crimes contra os bens, serviços e interesses da União e entidades federais mas também os crimes contra os interesses da República Federativa do Brasil perante a ordem internacional.Em todos os casos em que o Brasil se compromete perante a ordem internacional a combater determinado crime, a hipótese deve recair no rol dos casos que estão afetos à jurisdição da Justiça Federal, pois essa é a forma de o Estado federativo deixar claro que efetivamente irá, no plano interno, envidar os esforços necessários para honrar o compromisso assumido no estrangeiro.

Por isso mesmo, entre outras hipóteses, mantendo a tradição de nosso sistema, a Constituição de 1988 insere na competência da Justiça Federal o julgamento dos crimes contra a organização do trabalho.Se há um plano estratégico definido pelo governo federal em atenção a compromissos assumidos com organismos internacionais de combate ao trabalho escravo, com a conseqüente criação de órgãos federais específicos para atuar nessa área, resta claro que, mesmo que não se considere o crime de redução à condição análoga à de escravo como crime contra a organização do trabalho, não há como negar que delito dessa natureza malfere, concretamente, interesse da República Federativa do Brasil e serviço confiado a órgãos federais.

Daí por que a competência, de uma forma ou de outra, nos termos da Constituição, é da Justiça Federal. Urge que seja encerrado aquele julgamento pelo STF, a fim de que seja definido o segmento do Judiciário competente, evitando, assim, não só a morosidade mas também a própria impunidade de crime da mais alta gravidade, que afronta a dignidade humana, espinha dorsal de todo sistema jurídico democrático.

Walter Nunes da Silva Júnior, 43, juiz federal, doutor em teoria
constitucional do processo penal e professor de direito penal da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é presidente da Ajufe
(Associação dos Juízes Federais do Brasil)

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