Previdência

Alvo de ataques, aposentadoria rural assegura renda a pobres

Repasse para segurados especiais é fundamental para a sobrevivência de camponeses em municípios pobres como Caraúbas do Piauí. Defensores do corte reclamam do peso do benefício (cerca de dois terços) no déficit previdenciário
André Barrocal
 19/12/2006

O agricultor familiar Joaquim Gomes Cardoso, de 65 anos, é o pilar financeiro num casebre que abriga cinco pessoas, com o salário mínimo (hoje de R$ 350) que ganha de aposentadoria da Previdência. A octogenária lavradora Nazaré Gomes da Silva conta com o benefício do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) para sobreviver e ajudar a filha Bernarda Rodrigues dos Santos (57 anos), sem emprego fixo e que acaba de perder o direito ao Bolsa Família – o filho completou 16 anos -, e o genro, Raimundo Rocha Neto, que tem problemas na coluna e não pode trabalhar.

Joaquim, Nazaré, Bernarda e Raimundo vivem na minúscula Caraúbas do Piauí (PI), uma das cidades mais pobres do País. A aposentadoria é a principal fonte de renda deles e uma das mais importantes para um município que sumiria sem o dinheiro de políticas públicas – cerca de 80% dos 5,3 mil habitantes dependem de INSS ou do Bolsa Família. Ali, quem tenta fugir da seca e da fome com auxílio da Previdência se espanta, ao saber que há propostas de eliminar a aposentadoria rural. “Só se quiserem acabar com os pobres”, diz Joaquim.

A aposentadoria rural tem freqüentado o noticiário desde que a Previdência entrou no debate sobre o crescimento e o futuro do País. O motivo é o peso do benefício no descompasso entre receita e gastos do INSS. Dois terços do déficit previdenciário resultam de pagamentos a camponeses.

Ministro da Previdência no segundo governo Fernando Henrique, José Cechin faz previsões apocalípticas sobre despesas com aposentadoria rural e prega mudanças para evitar que aumente o que já identifica como “explosão de gastos”. O secretário-geral da Social Democracia Sindical (SDS), Miguel Salaberry Filho, é mais direto: defende extinguir o benefício. “Parte do déficit da Previdência foi causado pela inclusão de quem nunca contribuiu. Cabe ao Congresso rever isso”, diz.

Constituição e aposentadoria rural
A insatisfação do sindicalista remonta à Constituição de 1988. Ela unificou as previdências urbana e rural no Regime Geral de Previdência Social, operado pelo INSS. O regime aceita que agricultores se aposentem por idade (55 anos elas, 60 eles) sem a necessidade de provar que contribuiu. O favorecido pela permissão chama-se segurado especial e ganha no máximo um salário mínimo. A autorização valia por 15 anos, contados a partir de 1991, data da lei do INSS. O prazo expirou este ano, mas uma medida provisória renovou-o por mais dois. Vencida a prorrogação, todo camponês vai virar um segurado obrigatório. Terá provar que recolheu a contribuição em torno de 2,3% do que ganha vendendo sua produção.

Os aposentados rurais formam, atualmente, um exército de nove milhões de pessoas, segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), que reúne os grandes fazendeiros. Mais de 80% são segurados especiais. Juntos, os dois grupos vão custar cerca de R$ 30 bilhões este ano ao INSS. O instituto deverá arrecadar com eles menos de R$ 4 bilhões, pagos quase exclusivamente pelos segurados obrigatórios. Os especiais costumam viver numa realidade em que plantam para comer. Não conseguem montar uma produção para vender e entregar à Previdência parte do dinheiro da venda.

As características da aposentadoria rural para segurados especiais fazem com que alguns considerem-na o maior programa social do País. “É uma atividade social extremamente importante que garante um mínimo de dignidade para quem ajuda a construir esse país”, diz o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Artur Henrique da Silva Santos.

O enfoque da aposentadoria rural como programa social transparece em declarações recentes do presidente Lula sobre Previdência, nas quais ele disse que parte do déficit é de responsabilidade do Tesouro Nacional – ou seja, da sociedade e do governo –, e não do INSS, um patrimônio dos trabalhadores que o governo só administra. A responsabilidade teria sido assumida na Constituição de 88, com o acolhimento dos “segurados especiais”.

Previdência ou assistencialismo?
As peculiaridades da aposentadoria rural também alimentam a interpretação de que se trata de assistencialismo, sobretudo entre empresários, que acham que assistência social tem limite. “A aposentadoria rural é um programa de assistência social que distorce a Previdência. A questão é se a sociedade continua disposta a subsidiar”, diz Rodolfo Tavares, presidente do comitê de relações do trabalho e previdência social da CNA.

A entidade defende uma Reforma da Previdência e das regras do segurado especial, por entender, como analistas identificados com teses do chamado “mercado”, que o déficit do INSS consome recursos que o governo poderia investir em obras de infra-estrutura ou parar de coletar junto à sociedade.

De janeiro a outubro, o Tesouro aportou R$ 37,3 bilhões na Previdência, para cobrir a diferença entre a arrecadação e a despesa do INSS. Dois terços da diferença resultaram de benefícios pagos na área rural, sendo o principal deles a segurados especiais. Até o fim do ano, a cobertura será de uns 2% das riquezas nacionais (PIB).

“A Previdência tem um papel distributivo muito importante. Sem o subsídio no setor rural, haveria empobrecimento da agricultura familiar, problemas de abastecimento de alimentos, inchaço das cidades. São impactos muito maiores do que se não houvesse [aposentadoria rural]. Seria um ‘rombo social’ maior que 2% do PIB”, diz o secretário de Políticas de Previdência Social, Helmut Schwarzer.

Ele discorda da avaliação de que a aposentadoria rural seja assistencialista por duas razões básicas. A primeira é que, em tese, os camponeses contribuem com o INSS – a regra de 2,3% sobre o faturamento. A segunda é que se trata de um benefício ligado ao trabalho e à trajetória de vida do aposentado, e não simples amparo a quem não tem condições de se sustentar sozinho.

Colaboração dos fazendeiros
Uma das maneiras examinadas pela Previdência para aumentar a arrecadação no meio rural é acabar com a possibilidade de fazendeiros descontarem as exportações do valor de vendas sobre o qual calculam quanto devem pagar ao INSS.

Para a Secretaria da Receita Previdenciária, o governo FHC errou ao conceder tal autorização. “Precisamos enfiar uma proposta no Congresso para mudar isso assim que houver espaço”, diz o chefe da assessoria de Estudos Tributários e Normatização da Secretaria da Receita Previdenciária, Silas Santiago.

Os fazendeiros reclamam da proposta. “Esse é um problema de toda a sociedade, não do setor rural. E é inteiramente despropositado fazer o consumidor estrangeiro pagar o déficit da Previdência”, afirma o presidente da CNA
, Antonio Ernesto de Salvo.

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