Especial Meio Ambiente

Refugiados ambientais

Deslocamentos humanos provocados por alterações no meio ambiente são um problema crescente no mundo - e afetam também o Brasil. Situação é tão preocupante que a ONU debate criação de leis internacionais sobre o tema
Por André Campos
 26/12/2006

Casas ilhadas pelo transbordamento do rio
Taquari (Foto: Emiko Resende/ Embrapa Pantanal)

Em dezembro de 2004, um tsunami varreu a costa de diversos países asiáticos e africanos, deixando aproximadamente 300 mil mortos e milhões de desabrigados. Vilas inteiras foram destruídas, enormes quantidades de sobreviventes precisaram caminhar dias até os abrigos temporários onde muitos vivem ainda hoje. Oito meses depois, foi a vez do furacão Katrina chegar à costa do golfo do México e colocar um milhão de norte-americanos na estrada. Nem seis semanas haviam se passado quando um terremoto de grandes proporções atingiu o sul da Ásia, numa tragédia que gerou inclusive acordos diplomáticos entre Índia e Paquistão – inimigos há décadas – para que a abertura da fronteira na região da Caxemira permitisse o fluxo de pessoas afetadas.

Está cada vez mais claro que situações como estas são apenas a ponta de um grande iceberg. Segundo estimativa da Universidade das Nações Unidas (UNU), até 2010 o mundo terá 50 milhões de pessoas obrigadas a deixar seus lares, temporária ou definitivamente, por problemas relacionados ao meio ambiente. Uma conta que inclui não somente as vítimas de grandes desastres, mas também comunidades inteiras que estão sendo silenciosamente impelidas a migrar devido a problemas como a degradação de solos e águas – freqüentemente, para nunca mais voltar.

“Esta nova categoria de refugiado precisa encontrar seu lugar nos acordos internacionais”, afirma Janos Bogardi, diretor do Instituto de Meio Ambiente e Segurança Humana da UNU. Dados da universidade indicam que o número de ‘refugiados ambientais’ no mundo pode, em breve, ultrapassar a quantidade oficial de pessoas em situação de risco contabilizadas pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR) – lista que abarca, entre outros, refugiados políticos e pessoas em busca de asilo. Estimativas do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, por sua vez, mostram que já hoje há mais pessoas deslocadas por desastres ambientais do que por guerras.

Janos Bogardi, da UNU:
refugiados ambentais precisam
de acordos internacionais
(Foto: divulgação)

Como dar assistência a essas pessoas? Quais devem ser as obrigações dos países em relação a elas? E quem realmente pode ser considerado um refugiado ambiental? Para Bogardi, estas são apenas algumas das questões que permanecem em aberto (ver box). E a realidade brasileira, ao contrário do que muitos possam imaginar, não é alheia a esse debate.

No passado e no presente, são diversas as regiões e circunstâncias onde uma grande quantidade de brasileiros pode encontrar abrigo sob esse guarda-chuva. Há situações bastante conhecidas, como a dos flagelados da seca que, desde o século XIX, tem suas andanças retratadas em obras hoje clássicas de nossa literatura. Outras, no entanto, permanecem ignoradas pela opinião pública, e, não raro, totalmente descobertas de qualquer tipo de política capaz de atender os afetados.

Terras submersas
Alguns dados mostram que a ligação entre problemas ambientais e processos migratórios no Brasil pode ser muito mais generalizada do que se pensa. Em 2002, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ouviu todas as prefeituras brasileiras para traçar um perfil do meio-ambiente nos municípios do país. E dos 50 que mais perderam população entre os censos de 1991 e 2000 – todos com até 20 mil habitantes – metade declarou enfrentar alterações ambientais relevantes que afetaram a vida da população. Um número 15% maior do que a média brasileira para os municípios desse tamanho.

O assoreamento dos corpos d’água, presente em 53% dos municípios brasileiros segundo esta mesma pesquisa, é um dos exemplos de como alterações ambientais podem levar ao deslocamento de comunidades inteiras. No rio Taquari, que corta o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul, ele é o pivô daquilo que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) considera atualmente o mais grave problema ambiental e socioeconômico do Pantanal.

Historicamente, as terras sob a influência do rio recebem pulsos de inundação que alagam suas áreas marginais durante alguns meses do ano. Um fenômeno que começou a mudar a partir da década de 1970, com a expansão desordenada da agropecuária na região. O desmatamento e o manejo inadequado dos solos geraram processos erosivos graves na porção alta da bacia do Taquari. Vento e chuva, por sua vez, se encarregaram de levar os sedimentos para as áreas mais baixas do relevo. Já nas águas do Taquari, eles foram carregados por décadas correnteza abaixo, enchendo de terra locais da parte baixa do seu curso. Resultado: diminuiu seu leito, o rio transbordou em diversos pontos, os pulsos de inundação deixaram de existir e uma área de 500 mil hectares encontra-se hoje permanentemente submersa e improdutiva. Para se ter uma idéia do tamanho do estrago, isso equivale a quase 60% do total de terras desapropriadas pelo Governo Federal para reforma agrária em 2004.

Os prejuízos para os pescadores são imensos e muitos pecuaristas abandonaram a região. Pior ainda é a situação de cinco colônias de pequenos produtores – São Domingos, Bracinho, Cedro, Miquelina e Rio Negro – localizadas na parte baixa do curso do Taquari, no município de Corumbá (MS). Naquela região, o “entupimento” do rio levou ao arrombamento das suas margens. Uma situação que literalmente afundou a agricultura desenvolvida nessas comunidades, onde já chegaram a morar 550 famílias. “Hoje não deve ter mais que 20 delas vivendo por lá”, afirma Emiko Resende, pesquisadora da Embrapa Pantanal. “Muitos dos atingidos estão vivendo sob lonas na periferia cidades como Corumbá e Ladário (MS), e alguns entraram em programas de assentamento de sem-terras, em outros lugares.”

Assoreamento do rio: resquícios da mineração
em região cada vez mais desabitada (Foto:
Leonardo Sakamoto)

Apenas para a pecuária de corte, segundo cálculos da Embrapa Pantanal, os prejuízos causados pelo problema chegaram a 1,2 bilhões de reais entre 1996 a 2003. Isso sem considerar os pequenos produtores.

Além da agropecuária, a mineração é outra atividade freq&uuml
;entemente associada ao assoreamento de corpos d’água no Brasil. Uma prática também responsável por muitos outros problemas ambientais, como a destruição da mata ciliar, a erosão e a contaminação do meio-ambiente por produtos químicos. Desde a época colonial, a descoberta de minérios resulta em intensos fluxos migratórios para áreas no interior do país. No entanto, passada a bonança inicial, não raro resta apenas uma grande área degradada onde há grande dificuldade para o desenvolvimento de alternativas econômicas. O resultado é uma debandada geral.

Na região central do Mato Grosso, o município de Alto Paraguai é um típico e atual exemplo. Nele fica a cabeceira do rio Paraguai, onde o garimpo de ouro e diamante, feito diretamente no leito do rio, durante décadas constituiu a base da economia. Criado em 1953, junto com a ascensão da atividade, o município hoje definha abraçado com a mineração. Principalmente a partir da década de 1990, intensificou-se o esgotamento das riquezas e o declínio da exploração de minérios. Ficaram os impactos ambientais, como, por exemplo, o severo assoreamento do Paraguai. E o município, que tinha 13,8 mil habitantes em 1991, possui hoje população estimada de 6,1 mil moradores. Atualmente, organizações da sociedade civil e órgãos governamentais discutem formas para garantir a subsistência de populações locais remanescentes dos garimpos. Não muito longe dali, em Alto Garças, outro município mato-grossense, há projetos para recuperar áreas destruídas pela mineração, de forma que elas gerem produção agrícola para o município.

À espera de leis internacionais

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* Esta reportagem integra o Especial sobre Refugiados Ambientais e foi publicada em parceria com a revista Revista Problemas Brasileiros

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