Impunidade

Câmara aprova lei que inibe combate ao trabalho escravo

Emenda do projeto de lei que trata da "Super Receita" impede que auditores fiscais do trabalho apliquem multas quando encontrarem trabalhadores em situação análoga à escravidão
Por Iberê Thenório e Carlos Juliano Barros
 13/02/2007

Em votação nominal realizada na tarde desta terça-feira, a Câmara dos Deputados aprovou por 304 a 106 a emenda ao projeto de lei (PL) da "Super Receita" que impede auditores fiscais do trabalho de apontarem vínculos empregatícios entre patrões e funcionários, quando forem constatadas irregularidades. 

De acordo com o texto, apenas a Justiça do Trabalho terá competência para determinar se uma pessoa é ou não empregada de outra. Caso entenda que seus direitos não tenham sido honrados, o trabalhador deverá por conta própria recorrer ao poder judiciário contra o empregador. "A emenda é inconstitucional, pois atenta contra o direito de fiscalização do Estado. Se ela entrar em vigor, vai acabar a fiscalização no Brasil. É uma tragédia", afirma o deputado Nélson Pellegrino (PT-BA).

A emenda agora segue para apreciação do presidente. A bancada do Partido dos Trabalhadores deve solicitar a Luiz Inácio Lula da Silva que vete o texto. "Conto com isso. Mas, se não acontecer, vou defender que o PT entre com uma ação de inconstitucionalidade na justiça", completa Pellegrino.

Sem poder de fiscalização
Na prática, a emenda ao projeto de lei nº 6.272/05, que cria a "Super Receita",  inviabiliza fiscalizações do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) nos casos de trabalho escravo. Quando uma equipe de funcionários públicos encontrar pessoas sem carteira assinada dentro de uma fazenda, o empregador pode simplesmente dizer que as pessoas dali não têm vínculo com ele. E só caberia à Justiça do Trabalho, se algum empregado entrar com uma ação judicial, definir quem tem razão, o empregador ou a equipe de fiscalização. Os auditores estariam impossibilitados de aplicar autos de infração, que hoje são um dos instrumentos mais importantes no combate à escravidão.

"Se o combate ao trabalho escravo tem tido esse sucesso, é porque o fiscal pode aplicar na hora as multas do empregador", afirma Rosa Campos Jorge, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho. Em nota divulgada na quinta-feira (8), o sindicato afirmou que a emenda também pode prejudicar a repressão às falsas cooperativas e à terceirização irregular nas empresas, além da fiscalização rural.

Para a chefe da Secretaria de Inspeção do Trabalho, Ruth Vilela, está havendo uma confusão entre poderes diferentes, pois a emenda transfere prerrogativas dos auditores fiscais à Justiça do Trabalho. "Quando há um conflito entre o empregador e o empregado, é a Justiça que resolve o conflito. Mas quando não há o conflito, é o auditor fiscal que entra em ação."

E há mais um problema. A Justiça do Trabalho só reconheceria os vínculos, caso o trabalhador entrasse com uma ação contra o empregador. Considerando o temor que muitos desses trabalhadores sentem de seus patrões na região de fronteira agrícola – devido à violência e ao desrespeito com que são tratados – dificilmente um deles entraria com um processo contra o patrão.

Em boletim divulgado à imprensa, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), afirma que a emenda, além de prejudicar a fiscalização do trabalho, atrapalharia o judiciário: "Para a Anamatra, a proposta pode agravar a morosidade da Justiça do Trabalho".

A Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) também se manifestou contra o trecho da nova lei. A entidade divulgou uma nota pública classificando a mudança como uma "afronta" aos trabalhadores. "Isso é uma tentativa de flexibilização dos direitos trabalhistas", adverte o presidente da ANPT, Sebastião Vieira Caixeta. "Milhares de trabalhadores serão prejudicados, o que poderá acarretar, inclusive, o amento de condições degradantes no campo", prevê.

Pressão externa
A emenda que pode prejudicar o combate ao trabalho escravo foi proposta pelo ex-senador Ney Suassuna (PMDB-PB), quando o projeto de lei da "Super Receita" ainda tramitava no Senado. Na época, o próprio gabinete do senador afirmou que a emenda foi proposta atendendo a pedido de empresas de comunicação. Para se isentar do pagamento de encargos trabalhistas, essas empresas costumam utilizar serviços de jornalistas colaboradores na forma de pessoas jurídicas.

Insatisfeitas com a atuação dos auditores do trabalho, elas pressionaram para que o vínculo fosse reconhecido apenas pela Justiça. "O lobby das empresas de comunicação está muito forte", afirma a presidente do Sinait.

O relator do projeto de lei na Câmara, deputado Pedro Novais (PMDB-MA), emitiu parecer favorável à emenda. Em sua justificativa, ele afirma que "nos países mais avançados, a legislação trabalhista é quase sempre extremamente liberal". Em seu relatório, o deputado defende a contratação de empregados na forma de pessoas jurídicas: "o Estado não pode substituir a vontade do profissional que se lança ao mercado de trabalho sob o guarda-chuva de empresa individual. Cabe a ele, e não à fiscalização estatal, emitir juízo de valor a respeito", afirma o parecer de Pedro Novais.

Leia o artigo: "A Mídia contra os trabalhadores do país?"

Leia a nota publicada pela Anamatra

Leia a nota publicada pelo Sinait

Leia a nota publicada pela ANPT

Leia o parecer do deputado Pedro Novais

Veja a íntegra do projeto de lei que cria a "Super Receita"

Conheça a emenda proposta pelo senador Ney Suassuna


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