Bagatela

Juiz defende que pequenos furtos não devem levar à prisão

Rafael Gonçalves de Paula, magistrado no Tocantins que soltou dois homens acusados de furtar uma melancia cada um, reafirma a sua postura e defende que ela já é difundida em instâncias superiores
Por Beatriz Camargo
 26/02/2007

Sueli passou um ano e quatro meses detida em São Paulo (SP) por ter furtado do mercado dois pacotes de bolacha e um queijo minas. Ela foi pega em flagrante e só saiu da prisão após o término do regime fechado. Hoje, em liberdade, revolta-se ao pensar na desproporção de sua condenação. "Tem tanta gente que seqüestra, mata, rouba tanto dinheiro e que continua solta, e me prendem por tão pouco!", desabafa.

Além de Sueli, muitas outras pessoas são diariamente condenadas à prisão por terem cometido pequenos furtos, chamados também de "crimes de bagatela". Entretanto, uma corrente humanista tem feito com que muitos juízes não recebam as denúncias do Ministério Público ou soltem os réus, recorrendo ao princípio da insignificância ou ao furto famélico (quando a pessoa furta para comer), entre outros motivos. Foi o que fez Rafael Gonçalves de Paula, hoje juiz auxiliar da presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins.

Em 2006, ele proferiu uma sentença pouco comum, num caso de furto de duas melancias por dois rapazes. "Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir. Simplesmente mandarei soltar os indiciados. Quem quiser que escolha o motivo", concluiu.

O despacho causou polêmica por sua forma, mas Rafael defende que "a decisão já era adotada anteriormente" e que a visão mais liberal em casos de pequenos furtos é uma tendência que já está nas instâncias superiores, inclusive no próprio Supremo Tribunal Federal (STF), grau mais alto na escala das decisões.

Repórter Brasil – Qual caminho, juridicamente falando, que um caso como o do furto das melancias deve tomar geralmente? As pessoas não devem nem ser presas?

Rafael Gonçalves de Paula – A legislação diz o seguinte: subtrair alguma coisa de alguém é considerado furto. Então, se alguma coisa é furtada o caminho natural é a pessoa ser presa em flagrante – se encontrada logo após o fato – e o delegado abre um inquérito policial, que é encaminhado para o Fórum. Lá, o Ministério Público faz a denúncia, tem um processo e em geral a pessoa é condenada. Nos casos em que o furto é de uma coisa de pequeno valor, muitos juízes defendem que não é o caso de fazer todo o procedimento. Ou seja, nem precisa ter inquérito ou processo, pára tudo, não tem necessidade de manter o procedimento padrão porque o bem que foi subtraído tem valor insignificante. O legal seria levar o processo todo, mas no caso de coisas de pequeno valor, é possível adotar uma postura mais liberal.

Mas essa postura ainda não é muito comum…

Não é [ponto] pacífico. O que acontece é que juízes federais, do próprio Supremo Tribunal Federal, têm adotado nas decisões essa postura, de absolver o réu em casos como o furto das melancias. Algumas pessoas não entendem desse modo, mas é uma tendência que o comportamento seja adotado cada vez mais, pela jurisprudência criada nas instâncias superiores.

No caso específico das melancias, o que causou polêmica foi a forma da minha decisão, que fugiu dos argumentos técnicos. A decisão em si [soltar réus de crimes de pequenos furtos] já era adotada anteriormente.

É mesmo necessário que crimes de bagatela cheguem até um juiz?

É difícil ter uma dose, determinar o que é insignificante: uma melancia, duas, dez, vinte, não existe uma regra. É do bom senso. No caso concreto das melancias, acho que o delegado nem precisava ter levado o caso a júri. Poderia ter prendido os réus, dado uma bronca e soltado. Quando os valores furtados são um pouco mais altos ou se existe uma prática reincidente, pode haver outra postura. O delegado pode fazer um relatório ao Ministério Público dizendo que o valor do furto é baixo, mas a prática é reincidente. Cada caso deve ser analisado separadamente e com cautela.

Em casos "mais graves" ou de muita reincidência, como a justiça pode coibir a prática do pequeno furto, já que a prisão pode ser uma pena muito forte?

Se a pena é mínima, de até um ano, a pessoa fica durante um período indo ao fórum uma vez por mês, prestando esclarecimentos ao juiz, e não vai ter que ficar em regime fechado. Para pessoas condenadas acima de um ano, mas abaixo de quatro anos, é possível dar uma pena alternativa. Então, já existem mecanismos que facilitam esse procedimento.

Mas o crime de bagatela é diferente. O baixo valor e a ausência de repercussão da infração não justificam a instauração do processo, como no caso da melancia, um furto de xampu, de pacote de bolacha de uma caixa de bombons…

O custo do processo também pode ser levado em consideração para defender o crime de bagatela?

Sim, porque se formos considerar o custo que o Estado vai ter, não só monetário, mas a perda de tempo, o gasto com pessoal, não vale a pena instaurar o processo. Eu, por exemplo, como juiz, ganho razoavelmente bem para exercer minhas funções. [Ao me debruçar sobre um caso de pequeno furto], deixo de atender crimes muito mais graves, como estupro ou seqüestro. É uma perda de material humano muito grande. O custo social é muito maior do que a punição que a pessoa vai receber.

Em muitos casos de crimes de bagatela, as sentenças determinam penas em regime fechado de até um ano e meio. Por outro lado, há crimes mais graves em que, pelo poder econômico do réu, os processos demoram anos para tramitar e podem até prescrever, como é o caso de muitos processos criminais de trabalho escravo. Qual a solução para que exista coerência entre o tipo de crime e a pena imposta?

Na decisão, eu falo sobre isso: é injusto prender um lavrador, enquanto os engravatados ficam aí soltos, metendo a mão no nosso dinheiro, com crimes muito mais graves e com repercussão. O próprio processo de fazer as leis deve ser mudado, as leis não beneficiam as pessoas pobres. Quem faz as leis são os políticos, que muitas vezes estão lá por seu poder econômico e não entendem da formação da própria lei. Cabe ao aplicador da lei – o juiz, o promotor, o delegado – enxergar a realidade e aplicar a lei da melhor forma possível. É preciso mudar a postura desse aplicador da lei. [Essa visão] acaba sendo uma questão cultural, que demora um pouco para evoluir. Crime grave, que afetou muita gente, o meio ambiente ou teve repercussão, deve ser tratado com severidade. A gente tem que colocar o dedo na ferida mesmo. Se não houver uma mudança, sempre vai haver desproporcionalidade na justiça.

Veja decisão proferida pelo
juiz Rafael Gonçalves de Paula

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