Há exatos 12 anos, escrevemos o primeiro artigo sobre o projeto de transposição do rio São Francisco. Nele, já denunciávamos as possibilidades de o nordeste vir a ter problemas na geração de energia pelo uso indiscriminado das águas de um rio já limitado pelo atendimento das diversas demandas a que era submetido, fato que lamentavelmente veio acontecer no ano de 2001, período no qual a região passou pela mais séria crise energética de sua história. Num momento em que não se falava de racionamento de energia, já escrevíamos sobre as possibilidades de ocorrerem os apagões. E eles aconteceram.
A partir daquele artigo, outros se sucederam (com este já são 59), a ponto de criarmos uma página na internet para divulgá-los, juntamente com citações da academia sobre nossas ações e com trabalhos de reconhecidos naturalistas que partilham da mesma visão que nós sobre essas questões – como Aldo Rebouças e Aziz Ab´Saber, ambos professores eméritos da USP; Washington Novaes, renomado jornalista ambientalista de São Paulo; João Abner, doutor em recursos hídricos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Manoel Bonfim, ex-diretor regional do Dnocs e da Codevasf, secretário-executivo do Ceeivasf e consultor da SRH/MMA; além de Apolo Heringer Lisboa, coordenador do Projeto Manuelzão, em Minas Gerais, que está revitalizando o Rio das Velhas, importante afluente do Velho Chico. O que temos em comum com esses cientistas é a percepção de que o problema da escassez hídrica no nordeste está assentado fundamentalmente no uso inadequado que se faz da água armazenada na região, e na maneira incipiente de sua distribuição. Ou seja, trata-se de um problema eminentemente de gestão e de acesso aos recursos preexistentes.
Com o advento da internet, todas essas informações estão sendo acessadas em tempo real, não só na Universidade de Tsukuba, no japão, com a qual temos contatos, como também em outras instituições de igual importância, como a Escola Pública Félix Daltro, no município de Taperoá, na Paraíba.
Um fato evidente que temos observado nessa área, em todos estes anos de trabalho, é a forma inadequada com que as autoridades vêm tratando projetos dessa magnitude, muitas vezes sem levar em consideração a participação da sociedade civil nas indispensáveis discussões que estas questões requerem. A imposição de projetos goela abaixo do povo nordestino vem se tornando uma constante, e tem motivado muitas vezes fortes reações da sociedade, como a Ação Civil Pública impetrada pelo Ministério Público (MP) da Bahia, que através de liminar embargou as obras do projeto de transposição por um bom tempo. Outro exemplo foi a revolta extremada de dom Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra (BA), cuja greve de fome obrigou o governo federal a iniciar, em meados de 2006, um processo de negociação em Brasília com movimentos sociais. O assunto foi relatado em nosso artigo intitulado "As questões do rio São Francisco em novas bases de negociações", escrito em novembro de 2006. Era inimaginável estarmos ao pé do poder participando dessas negociações, interagindo com diversos ministérios do governo Lula, falando sobre boi, bode, capim, palma forrageira, crédito rural e tantos outros assuntos inerentes à realidade nordestina.
Com os novos rumos nas negociações do projeto, confessamos a nossa animação pelo tratamento adequado e transparente dispensado pelo governo à realidade do nordeste, dando provas de estar voltando suas vistas para a solução dos problemas do semi-árido, fato incomum até então neste país.
Mas, infelizmente, o processo de negociação sofreu solução de continuidade por dois motivos: a proximidade das eleições de outubro daquele ano e, mais recentemente, a cassação, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Sepúlveda Pertence, da liminar do MP da Bahia que impedia a realização das obras do rio São Francisco. Em um único julgamento, o referido ministro cassou não apenas essa liminar, mas todas as outras que diziam respeito às questões ambientais do país. Com esse gesto, lamentavelmente, o governo se viu livre para iniciar o projeto da transposição a todo custo.
Com essa decisão, o ministro Pertence deu provas de que não conhece absolutamente nada da realidade nordestina. Não conhece, por exemplo, o potencial hídrico existente na região. Não conhece a forma precária com que as águas existentes nas suas principais represas chegam às casas da população. Não conhece o processo de abastecimento das populações difusas no sertão. E, provavelmente, não conhece sequer o tempo de gestação de uma cabra, animal símbolo do nordeste e, portanto, um dos componentes mais importantes de toda a cadeia produtiva da região. E estava sob responsabilidade do ilustre ministro o destino de toda a bacia do rio São Francisco, bem como de todo ambiente natural brasileiro. Não nos restam dúvidas de que sua decisão foi eminentemente política. Sua excelência estava querendo alçar vôos mais altos na política, e o alvo era o Ministério da Justiça, para o qual já foi convidado pelo chefe da nação.
Particularmente, não vemos a menor graça em perder o nosso precioso tempo numa reunião de dois dias em Brasília, para tratar de assuntos ligados à convivência com o semi-árido, tendo em vista não se terem dado os créditos devidos aos resultados nela alcançados. Simplesmente não se fala mais nessa reunião. E nossa decepção foi maior ao avaliarmos o montante de recursos financeiros que foram gastos para sua realização, um verdadeiro desperdício. Será que alguém parou para pensar no custo de uma reunião, na capital federal, de aproximadamente 40 técnicos, cujas despesas com deslocamento aéreo, alimentação e estadia em hotéis foram bancadas pelo governo federal? É realmente um fato lamentável num país que deseja acelerar seu desenvolvimento.
Dona Nira, a nossa saudosa m&at
ilde;e, tinha uma forma curiosa e eficiente de ajustar a conduta de seus filhos. Valia-se do chinelo, e a intensidade e amplitude das chineladas eram proporcionais ao tamanho de nossas trelas. Não raro, ela se utilizava de nossas orelhas como ponto de apoio. E foram santas as chineladas que recebemos de nossa mãe: a prova disso é que, numa família de 9 irmãos, todos estão bem encaminhados na vida, são homens e mulheres de bem, respeitam e são respeitados por toda sociedade.
Ao avaliarmos o andamento das questões do rio do São Francisco, bem como o das alternativas de convivência com a seca da região Nordeste, chegamos à conclusão de que faltaram as chineladas providenciais, na intensidade e na amplitude compatíveis ao tamanho da trela realizada por nossas autoridades relacionadas com essas questões.
Para nós que militamos nessas lutas há bastante tempo, fica fácil prever o que irá acontecer, caso sejam configurados esses novos cenários:
– O nordeste semi-árido continuará sem rumo de desenvolvimento, carecendo de ações estruturadoras. E, na ocorrência de uma seca prolongada, continuará recebendo as ações assistencialistas do governo federal e nada mais.
– A elaboração de uma política de uso das águas que já existem no nordeste ficará ainda carente de definições, diante das prioridades que estão sendo dadas ao uso das águas do rio São Francisco.
– A questão da geração de energia ainda está indefinida. O rio São Francisco é responsável por mais de 95% da energia gerada na região e seu potencial gerador já foi quase que totalmente explorado pela Chesf. Para a manutenção do crescimento nacional, é necessário um adicional anual de cerca de 5 mil MW na potência elétrica instalada do país. No nosso último artigo "O meio ambiente do país pede socorro", editado em dezembro de 2006, tivemos a oportunidade de abordar esse assunto, mostrando que estamos longe de alcançar essa meta. Entre 2003 e 2006, por exemplo, a potência elétrica adicional no país foi de apenas 5.437 MW, ou seja, valor quase três vezes menor do que aquele necessário para a satisfação do seu crescimento, de 15.000 mw em três anos. No Brasil, a demanda anual de energia costuma crescer 2% acima da expansão do PIB. Caso seja confirmada a atual pretensão do governo em crescer 5% ao ano, a demanda de energia atingirá a faixa dos 7% ao ano. Neste ritmo, será necessário dobrar a quantidade de energia a ser gerada no nordeste para satisfazer seu crescimento. A pergunta que não quer calar é a seguinte: onde será gerada essa energia se o potencial gerador do Velho Chico já está praticamente esgotado?
Esta questão será agravada ainda com as indefinições na importação do gás da Bolívia para uso nas termelétricas e com a possibilidade da volta dos períodos de estiagem nas principais bacias nacionais. Em 2001, houve necessidade de se proceder aos racionamentos de energia em boa parte das regiões brasileiras, tendo em vista a baixa acumulação dos reservatórios das hidrelétricas. Diante de tudo isso, cremos que o presidente Lula se precipitou ao informar a nação brasileira de que os apagões eram página virada na história do nosso país.
A questão da irrigação é outro assunto que insistimos em citar nesse artigo. O potencial irrigacionista na bacia do rio São Francisco é de cerca de 1 milhão de hectares, dos quais cerca de 340 mil já estão irrigados. E essa área tende a crescer cerca de 4% ao ano. Como justificar, com as águas do rio São Francisco, a irrigação de áreas do nordeste setentrional, portanto a 500 km de distância das margens do rio, existindo projetos em sua bacia que estão parados por falta de recursos financeiros? Tomem-se os exemplos de Irecê e Salitre, na Bahia, os quais somados totalizam 90 mil hectares, do Pontal em Pernambuco, com 10 mil hectares, e do projeto Jaíba, em Minas Gerais, com área total superior a 100 mil hectares, cuja primeira fase, de 18.500 hectares, está sendo implantada com muita dificuldade? Seria muito mais lógica solucionar, em primeiro lugar, os problemas financeiros existentes nos projetos pertencentes à bacia do rio, do que partir para a implantação de novos projetos de irrigação em regiões fora dela.
Outro ponto importante que merece citação é o problema do abastecimento das populações do nordeste setentrional com as águas do rio São Francisco. No nosso modo de entender, as populações difusas, aquelas consideradas as mais necessitadas em termos de abastecimento, as que residem nos pés de serra, nos grotões, nos sítios e pequenos lugarejos, aquelas que normalmente são atendidas pelo poder público, através de frotas de caminhões-pipa, essas não verão uma gota d´água sequer do São Francisco. Com a implantação do projeto, achamos que as autoridades tentam transmitir ao povo uma ilusão. Na nossa ótica, as águas do rio São Francisco terão outros destinos, seja na irrigação que será praticada visando à produção de frutas para exportação, seja na criação do camarão também para exportação, seja no uso industrial, ou em outras atividades que venham sempre em benefício do grande capital. Na nossa avaliação, essa prática irá perpetuar a indústria da seca no semi-árido nordestino.
Finalmente, achamos que iremos ter problemas futuros de malversação de recursos públicos na condução do projeto. Apesar de ter-se iniciado com ações do glorioso exército brasileiro, o projeto chegará a uma fase na qual as empreiteiras irão assumir outras etapas das obras, dando margem à ocorrência de fatos ilícitos. No país da impunidade, no qual se ouve falar de valerioduto, mensalão, superfaturamento de obras, sanguessugas e até em negócios escusos com derivados de sangue humano, não será surpresa ouvirmos falar de chicoduto, superfaturamento de canais e túneis, havendo a possibilidade até de voltarem os famosos percentuais de10%, corriqueiramente exigidos para a liberação das obras. Apenas esclarecemos aos leitores que, se considerarmos 10% em relação ao orçamento do projeto de R$ 4,5 bilhões, isso significa cerca de R$ 450 milhões, valor equivalente à construção de cerca de 375.000 cisternas rurais (o valor de uma cisterna de 16.000 litros corresponde atualmente a cerca de r$ 1.200,00). Portanto, estamos diante de uma verdadeira bomba relógio armada que irá explodir por esses dias.
Ah! Íamos esquecendo! Para aqueles curiosos que estão, no presente momento, tentando entrar em programas de busca na internet, ou mesmo indo atrás de compêndios de zootecnia para saber o tempo de gestação de uma cabra, adiantamos que este é de aproximad
amente 150 dias.
João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.