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Assombrações trabalhistas

Ives Gandra Martins e Everardo Marciel prestaram um desserviço aos trabalhadores ao defender na Folha de S. Paulo a emenda 3 do projeto que criou a Super Receita – aquela que vai dificultar a fiscalização do trabalho escravo
Por Leonardo Sakamoto
 02/03/2007

Ives Gandra Martins e Everardo Marciel prestaram um desserviço aos trabalhadores do país nesta sexta (02) ao defender no texto "Assombrações tributárias" (página A3), publicado na Folha de S. Paulo, a emenda 3 do projeto que criou a Super Receita – aquela que vai dificultar a fiscalização do trabalho escravo. Defendem-na afirmando que a "clareza é a cortesia do legislador para com o povo":

"A aprovação da emenda, contudo, suscitou precipitados comentários que certamente serão incoporados à dramaturgia tributária. Falou-se de 'empresa de uma pessoa só', 'restrições ao combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil' e outras supertições de mesmo jaez (…) Quanto à realização de trabalho escravo ou infantil por pessoa jurídica, somente poderia ingressar na categoria de fenômeno ainda não documentado na litaratura especializada. Enfim, como todos sabem, pessoa jurídica é ficção jurídica."

Bem, isso prova que ambos andam lendo pouco, não apenas literatura especializada (há farta jurisprudência sobre o assunto), mas também jornais, revistas e sites. Também não têm ouvido rádio e nem assistido TV. Convido os dois a acompanharem uma ação de libertação de trabalhadores escravizados para ver como os fazendeiros criam para seus "gatos" (contratadores de mão-de-obra) empresas que não têm a mínima condição de existir, e só servem como rota de escape da legislação trabalhista.

Em 20 de novembro de 2003, uma ação de fiscalização libertou 22 trabalhadores que estavam em situação de escravidão na fazenda Entre Rios – de plantação de arroz e soja – a 125 quilômetros do município de Sinop, Norte de Mato Grosso.

De acordo com Valderez Monte, coordenadora da operação, uma empresa de prestação de serviços que respondia pela contratação para a fazenda Entre Rios estava em nome de dois "gatos". A JS Prestadora de Serviços funcionava como fachada para encobrir o desrespeito aos direitos trabalhistas. Além disso, foram encontradas carteiras assinadas com data posterior ao início do trabalho, além de salário abaixo do acordado. Mesmo assim não havia pagamento.

Depois que motosserras derrubavam a floresta na região, levas de trabalhadores percorriam a área desmatada da Entre Rios, arrancando tocos de árvores e raízes, limpando o terreno para receber a lavoura. Uma grávida de quatro meses foi encontrada nessa tarefa. Como a fronteira agrícola avança diariamente no norte de Mato Grosso, o número de pessoas utilizadas no serviço é grande, principalmente nordestinos – fugitivos da falta de emprego e de terra.

A maior parte dos libertados era do Maranhão, trazida de lá pelo gato Chiquinho, preso na ação. De acordo com Valderez, os trabalhadores temiam o gerente, que repetia: "maranhense tem que apanhar mesmo de facão".

Entendo que o Gandra queira defender os interesses dos prestadores de serviço intelectuais – ele é presidente do conselho de estudos jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Entendo também que Maciel, ex-secretário da Receita Federal, como consultor, tenha clientes que possam encontrar dificuldades com a fiscalização do trabalho.

Mas essa solução não pode servir para retirar direitos de trabalhadores. A lei, uma vez aprovada, será utilizada sim para impedir que sejam reconhecidos vínculos trabalhistas entre trabalhadores rurais e seus patrões. Vale a pena ler o especial sobre o tema que foi organizado pela Repórter Brasil, em que diversos juristas mostram a inconstitucionalidade da matéria.

No texto que publicam na Folha, Gandra e Maciel detalharam bem a parte que diz respeito aos prestadores de serviço intelectuais, para os quais, segundo eles, seria uma verdadeira benção essa liberdade para vender seu trabalho. Apesar da minha discordância (e a de meus colegas que trabalham em redações da Folha de S. Paulo, da Editora Abril, entre outras, e que precisam dar nota fiscal ao final de todo mês para conseguir seu salário, livre de direitos), esse não é a principal crítica ao texto. E sim a ausência de argumentos fundamentados para refutar as conseqüências negativas para a fiscalização do trabalho e para o combate ao trabalho escravo. Ou seja, o que é bom para nós, explicamos bem explicado. O que atrapalha, escondemos.

Caros senhores, clareza também é uma cortesia do formador de opinião para com a população.

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