Soja insustentável I

Busca por soja responsável exige fim das plantações na Amazônia

Expansão desenfreada das lavouras do grão é alvo de críticas por parte de entidades ambientalistas, enquanto gigantes do setor prometem maior controle, através de medidas paliativas como a moratória da soja
Por Mauricio Monteiro Filho
 19/03/2007

Apesar de ser a principal commodity da pauta brasileira de exportações, já faz algum tempo que a soja deixou de ser exclusividade das discussões econômicas para disputar a atenção de ambientalistas e movimentos sociais em todo o país. Pressão sobre terras indígenas e de povos tradicionais, uso de sementes geneticamente modificadas, emprego de mão-de-obra escrava e expansão sobre unidades de conservação ecológica foram alguns dos problemas atribuídos ao plantio nos últimos anos.

Mais recentemente, essa preocupação atingiu seu limite, devido ao avanço das lavouras sobre o bioma amazônico. Hoje, 5% de toda a soja produzida no país vêm da Amazônia – 90% dos quais de Mato Grosso. Mas, a julgar pela ocupação maciça do cerrado pelas plantações do grão, a rápida expansão sobre o novo cenário e a perspectiva de mais uma ameaça a uma das florestas mais ricas do planeta é suficiente para colocar a sociedade em alerta.

A presença de grandes grupos multinacionais, como Archer Daniels Midland (ADM), Bunge e, principalmente, Cargill, e da maior empresa nacional do segmento – o Grupo André Maggi, ligado ao governador de Mato Grosso, Blairo Maggi -, também soa como um mau presságio. Basta observar a infra-estrutura já instalada em solo amazônico: são quatro silos da ADM, seis da Bunge e 13 da Cargill, além de seu terminal portuário, localizado em Santarém e considerado ilegal pelo Ministério Público Federal.

A questão básica dessa polêmica é a possibilidade de produzir soja de maneira sustentável num ambiente de tão vasta biodiversidade sem intensificar ainda mais a exploração que tem feito da região presa fácil de madeireiras e pecuaristas.

Parte I – Busca por soja mais responsável exige fim das plantações na Amazônia

Do lado dos ambientalistas, não há dúvida. Segundo eles, é impossível conjugar os interesses dos produtores com a preservação da floresta, e por isso pregam a completa erradicação das lavouras amazônicas do grão. "A expressão ´soja sustentável´ foi eliminada desde o início da discussão", diz Maurício Galinkin, ex-membro da Fundação Centro Brasileiro de Referência e Apoio Cultural (Cebrac), entidade sediada em Brasília que atua em consultoria ambiental.
Em nome das principais corporações do setor, a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) sustenta justamente o contrário. "Há somente 1,1 milhão de hectares de plantações de soja dentro do bioma amazônico, o equivalente a três milésimos da área. Esse argumento, por si só, já derruba mitos e rumores de que o grão estaria devastando a floresta", declara a entidade, através de sua assessoria.

 Caminhão carregado de soja em Sinop, Mato
 Grosso, atravessa região de novas lavouras
(Foto: Nilo D´Ávila)

A despeito do pretenso equilíbrio de forças na polêmica da soja, no entanto, em 24 de julho de 2006, a balança pareceu pender para os que defendem o fim das plantações na Amazônia. Nessa data, a Abiove, em conjunto com a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), declarou um embargo aos agricultores que produzirem em áreas desmatadas a partir de outubro de 2006. O documento determina que, durante um prazo de dois anos, as empresas afiliadas a essas instituições não comercializem os grãos que forem cultivados na Amazônia a partir daquela data. A medida ficou conhecida como "moratória da soja".

Na realidade, a iniciativa foi a resposta corporativa a uma série de pressões encabeçadas por movimentos sociais e entidades ambientalistas brasileiras e européias.

No entanto, a iniciativa do embargo – com o qual, de modo considerado inédito, as empresas ligadas à soja implicitamente assumiram sua cota de participação no passivo ambiental gerado pelas plantações – ainda é motivo de muita reticência e carece de ajustes práticos. "A moratória foi uma vitória política significativa, pois as grandes compradoras reconheceram que são co-responsáveis pelos problemas causados pela atividade agrícola. Mas temos de operacionalizá-la", afirma Galinkin.

A floresta vira ração
A declaração do embargo ocorreu principalmente devido a um relatório elaborado pela organização não-governamental (ONG) Greenpeace, que recebeu o sugestivo nome de "Comendo a Amazônia". O raciocínio da entidade é simples: se 80% da soja produzida no mundo destina-se à elaboração de ração animal e parte das lavouras está na Amazônia, ao degustarmos um hambúrguer numa rede de fast-food cujos fornecedores alimentam seus animais com derivados de soja amazônica estaremos, indiretamente, devorando esse bioma.

Não bastasse isso, de acordo com o relatório, publicado em abril de 2006, a produção da commodity na Amazônia enseja uma série de crimes associados, que vão de grilagem de terras a uso de mão-de-obra escrava. E, de acordo com o Greenpeace, os culpados não são os tradicionais pistoleiros da terra sem lei amazônica, mas sim gigantes do porte de ADM, Bunge e Cargill.

Segundo um dos coordenadores do estudo, Nilo d´Ávila, as atenções do Greenpeace se voltaram para a questão da expansão das plantações na Amazônia quando ficou patente que havia infra-estrutura e requisitos suficientes para um boom da soja na área: mobilização de produtores, crescimento da especulação imobiliária e implementação de vias de escoamento. "A cultura da soja é muito dependente. A partir da colheita, são necessários secagem, armazenamento e transporte. É preciso ter estrutura. Mas vimos que as condições estavam dadas. A partir de 2002, a luz vermelha acendeu", explica ele.

Em Feliz Natal, expansão choca-se com áreas indígenas (Foto: Nilo D´Ávila)

O documento enumera diversos casos concretos em que se pode observar a interferência socioambiental negativa da soja. Um exemplo é a chamada Rodovia da Soja, que parte de Feliz Natal (MT) em direção ao Parque Indígena do Xingu e constitui uma importante via de ligação de 120 quilômetros entre áreas produtoras. A estrada, margeada por pelo menos 14 lavouras de soj
a, foi aberta sem licença ambiental. As terras do entorno são anunciadas na internet a R$ 50 por hectare, que podem ser pagos com soja colhida nas futuras propriedades.
A grilagem, seguida de invasão de terras indígenas, também é uma das manchas das plantações amazônicas. É o caso da Fazenda Membeca, em Brasnorte (MT), que ocupou áreas pertencentes aos índios manoquis. A propriedade em questão fornece grãos para a Bunge e a Cargill.

Outro grave custo social da soja é o trabalho escravo. Apesar do alto nível de mecanização da produção, a etapa de preparação do solo, incluindo o desmate, envolve serviço braçal. Por isso, há muitos casos de escravos libertados em lavouras do grão. Na Fazenda Tupy Barão, numa ação realizada em setembro de 2001, o Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) encontrou 69 lavradores que estavam com seus salários retidos e eram forçados a permanecer na propriedade até pagar dívidas referentes a alimentação e equipamentos de trabalho, que devem ser fornecidos pelo empregador.

De junho de 2004 a junho de 2006, a empresa responsável pela fazenda ficou impedida de receber créditos públicos, por ter sido incluída na chamada "lista suja" do MTE. O cadastro impõe a punição aos envolvidos nessa infração trabalhista. Tanto a Bunge quanto o Grupo André Maggi compravam soja da Tupy Barão.

"Vimos que todos os problemas comuns a outras atividades aconteciam no caso da soja. Os modelos de destruição da floresta estavam se repetindo nessa indústria", complementa D´Ávila.

Paralelamente à publicação do "Comendo a Amazônia", o Greenpeace organizou uma série de ações, tanto no Brasil quanto na Europa, com o objetivo de chamar a atenção para os danos associados à soja amazônica.

No entanto, as empresas envolvidas só se dispuseram a debater o assunto quando a discussão sobre a cadeia produtiva do grão brasileiro alcançou o segmento europeu da rede McDonald´s. Isso porque todo o carregamento de frangos que chega à gigante do fast-food e a outros grandes grupos do setor alimentício europeu provém da Sun Valley, empresa com sede na França, mas de propriedade da americana Cargill. A ração que engorda os frangos que se transformarão em nuggets nos McDonald´s de toda a Europa inclui, assim, soja da Amazônia.

D´Ávila conta que, até o envolvimento das grandes redes varejistas, a Cargill evitou discutir sua conduta. Desse modo, o embargo só começou a ganhar forma quando a preocupação sobre a procedência do grão atingiu o mercado consumidor. "Tem de haver pressão social para que as empresas venham à mesa de debate", emenda Galinkin.

Parâmetros mínimos
A declaração sem precedentes do embargo é na verdade resultado de um processo que remonta a mais de uma década atrás. De acordo com Galinkin, a soja apareceu no horizonte de preocupações das entidades ambientalistas já em 1995, época dos diálogos em torno da implantação da hidrovia Paraguai-Paraná. No entendimento dessas organizações, a obra levaria a uma expansão significativa das lavouras do grão, cuja produção passaria a representar 80% das mercadorias que por ali passassem. "O objetivo da hidrovia era transportar soja e incentivar países que não tivessem a cultura a começar a produzi-la. Com isso, os problemas ambientais relacionados ao agronegócio se multiplicariam", afirma Galinkin.

Esse movimento culminou com a criação da Coalizão Rios Vivos, uma congregação de ONGs do Cone Sul – países do Mercosul mais a Bolívia -, que desde 2000 passou a se dedicar mais intensivamente a examinar os impactos socioambientais da sojicultura.

Em decorrência desses estudos surgiu, em 2003, um grupo de trabalho dedicado exclusivamente à discussão de critérios de produção que pudessem servir de referência às empresas compradoras – a Articulação Soja Brasil. "Nosso objetivo é incentivar o plantio de soja com redução dos impactos sociais, ambientais e econômicos, já que sabíamos que seria impossível eliminá-los, uma vez que são próprios da monocultura", explica Galinkin, que, através do Cebrac, foi um dos organizadores dessa iniciativa.

Entre fevereiro e abril de 2004, a Articulação promoveu um debate, por meio de um fórum virtual, entre 61 entidades de todo o Brasil. O resultado foi um documento intitulado "Critérios para Responsabilidade Social das Empresas Compradoras de Soja". Nele, foram enumerados os parâmetros mínimos a ser observados pelas traders em relação à origem dos grãos.

Encontro de ONGs latinas e européias em Paris discute a expansão da soja (Foto: Tamara Mohr/Both Ends)

Em síntese, são exigidos, no curto prazo, a redução do desmatamento, a proteção ao pequeno produtor, o respeito à legislação ambiental e trabalhista, e, no médio e longo prazos, a melhoria da produtividade e da distribuição da renda gerada pelo setor. "As empresas não devem adquirir soja cultivada fora dessas diretrizes", pontua Galinkin.

O embargo proposto pelos grandes compradores brasileiros de soja, entretanto, não se pautou pelos parâmetros elaborados pela Articulação. O texto da moratória só é claro no que diz respeito à interdição da compra de soja oriunda de novos desmatamentos no bioma amazônico e à quebra de contrato com fornecedores em caso de utilização de mão-de-obra escrava. Os outros pontos não são sequer abordados no documento. E mesmo o tema do desmatamento foi tratado de forma bastante sucinta. Já os critérios da Articulação Soja Brasil não se relacionam apenas à Amazônia, mas a todas as regiões produtivas, incluindo o cerrado, por exemplo. Além disso, a ausência de uma política clara de acompanhamento e o período de duração de apenas dois anos para o embargo são também alvo de fortes críticas por parte de ambientalistas e movimentos sociais.

"Da maneira como a moratória foi apresentada, se não houver implementação do monitoramento, não será alcançado resultado algum", aponta Ilan Kruglianskas, do WWF Brasil. "Também é um problema não considerar outros biomas nessa moratória", emenda ele.

Jan Maarten Dros, da AIDEnvironment, entidade holandesa de pesquisa e consultoria para ONGs, empresas e governos, vai mais longe. Segundo ele, a declaração da Abiove e da Ane
c, na atual conjuntura do mercado da soja, é inócua. Dros avalia que, devido à força do real frente ao dólar, a competitividade do grão brasileiro no exterior foi muito baixa em 2006. Por isso, não houve demanda por ampliação das zonas fornecedoras, já que as regiões tradicionais de cultivo deram conta de suprir as exportações, sem a necessidade de lançar mão da soja amazônica.

Isso se confirma, pois, segundo a própria Abiove, até hoje, o embargo não afetou a balança comercial da commodity. "Não houve nenhum impacto significativo nas exportações da soja brasileira", afirma a entidade.

Clique no link abaixo para ler a segunda parte da reportagem:
Parte II – Debates intercontinentais indicam preocupação mundial sobre soja

* Esta reportagem foi publicada em parceria com a revista Revista Problemas Brasileiros

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