Carta enviada ao presidente Lula pelos coordenadores dos grupos móveis de fiscalização

 09/03/2007

Excelentíssimo Senhor

Luis Inácio Lula da Silva

Presidenteda República

Sr. Presidente,

Os coordenadores do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) que atuam no combate ao trabalho análogo ao de escravo em todo país, especialmente nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, vêm externar sua preocupação e repúdio, face à aprovação, pelo Congresso Nacional, no último dia 13 de fevereiro, do Projeto de Lei nº 6272/05, cuja emenda n° 3 determina a necessidade de decisão judicial prévia para que a autoridade fiscal considere existente a relação de emprego entre determinado empregador e os trabalhadores que lhe prestam serviço, mesmo estando presentes todos os pressupostos da relação de emprego previstos pela legislação trabalhista.

Destacamos que renomados juristas vêm apontando o caráter ilegal eaté mesmo inconstitucional de tal restrição imposta pelo legislador.

Os coordenadores do GEFM vêm denunciar o grave risco que tal medida, caso sancionada por Vossa Excelência, causará às relações de trabalho no Brasil, especialmente no combate ao trabalho análogo ao de escravo. De fato, a expectativa dos operadores do Direito do Trabalho é que a sanção do referido dispositivo venha a ocasionar uma precarização, sem precedentes, nas relações trabalhistas brasileiras, precarização esta, patrocinada pelos grupos econômicos de elite, que apenas visam aos seus próprios interesses, em detrimento do bem-estar e dos direitos sociais da classe trabalhadora, arduamente conquistados ao longo dos últimos anos.

Em verdade, caso sancionado o dispositivo legal em questão, o Auditor Fiscal do Trabalho verá seu âmbito de atuação drasticamente reduzido, uma vez que apenas poderá fiscalizar as empresas que possuem trabalhadores em situação de registro regular, ficando ao desamparo da fiscalização do Ministério do Trabalho os empregados mantidos sem registro legal pelas empresas, mesmo constatando o Auditor-Fiscal a existência inquestionável, com base no contrato-realidade, dos pressupostos básicos da relação de emprego. Em suma, a emenda nº 3 ao Projeto de Lei nº 6272/05, ora analisada, restará por favorecer a proliferação das fraudes às relações trabalhistas, a exemplo dos estágios irregulares, das pessoas jurídicas irregularmente constituídas no intuito de mascarar a relação de emprego, das cooperativas fraudulentas, entre outras situações de burla à legislação trabalhista brasileira, e cuja fiscalização e combate constituem uma das atividades primordiais da fiscalização do trabalho.

De fato, sendo sancionado o referido dispositivo, os Auditores Fiscais do Trabalho não poderão reconhecer o vínculo de emprego existente entre os trabalhadores encontrados em condição análoga à de escravo e o proprietário da fazenda/empreendimento de onde foram resgatados, bastando, para isso, que exista à frente destes trabalhadores um "gato", aliciador demão-de-obra, que possua empresa formal e alegue ser o empregador. Aliás, o GEFM nem mesmo terá forças jurídicas para exigir o pagamento dos trabalhadoresres gatados. Em virtude da alteração legal ora analisada, não restará outra alternativa senão encaminhar a questão ao Poder Judiciário, o qual enfrentará uma série de dificuldades na solução da demanda, quais sejam: a distância entre os locais inspecionados – não raro no meio da floresta amazônica – e as varas do trabalho; a morosidade do Judiciário para atender à contenda, agravada pelas inúmeras demandas que certamente a aprovação de tal dispositivo suscitará; a premente necessidade do resgate do trabalhador encontrado em situação análoga à escravidão e o pagamento dos seus direitos trabalhista, entre outras.

A "Lista Suja", instrumento mais eficaz criado pelo Poder Executivo para fortalecer o combate ao trabalho análogo ao escravo, estará seriamente ameaçada. Afinal, somente após uma rigorosa investigação, comum minucioso levantamento de provas, tais como filmagem, fotografias, tomada de depoimentos – tanto dos trabalhadores quanto dos proprietários da terra e seus prepostos -, exame de documentos, dentre outros, todas colhidas e analisadas à luz da legislação vigente, é que a fiscalização do trabalho identifica os responsáveis pela submissão dos trabalhadores à condição análoga à escravidão, os quais são enviados para inclusão na referida lista. Geralmente esta responsabilidade recai sobre o proprietário da terra ou seu arrendatário, pois assim prevê a legislação vigente. No entanto, não raras vezes esta situação está mascarada através de contratos fraudulentos de terceirização, arrendamento, cooperativas de trabalho, entre outros.

Caso referido dispositivo seja sancionado, a fiscalização perderá a autonomia de identificar o verdadeiro responsável pela fraude constatada, e o vínculo de emprego apenas poderá ser identificado judicialmente. O responsável pela submissão do trabalhador a condição análoga à de escravo terá respaldo legal para apontar um terceiro como responsável, geralmente um "gato", um aliciador de mão-de-obra, um indivíduo sem capacidade econômica ou técnica para gerir tal empreendimento. Até que a questão se esclareça o "gato" já terá desaparecido, sem que o Estado consiga notificá-lo, na medida em que geralmente não possui morada certa, não possui bens em seu nome, não ostenta qualquer capacidade econômica etc. O verdadeiro prejudicado diante de tal situação será o trabalhador encontrado em situação análoga à escravidão, geralmente um peão de trecho aliciado em sua cidade natal, muito distante daquela em que foi encontrado pela fiscalização, e que continuará submetido a uma degradante condição de labor, com graves prejuízos à sua saúde e à sua própria vida, visto que apenas quando vier a ser proferida uma decisão judicial é que poderá ver satisfeitos os direitos trabalhistas aque faz jus. Assim, o combate ao trabalho análogo ao escravo brasileiro, tão aplaudido em todo o mundo, restará fracassado, e, mais uma vez, a classe trabalhadora verá diminuídos os seus direitos e sua dignidade.

Pelas razões acima expostas, os coordenadores do GEFM solicitam a Vossa Excelência que, em relação ao Projeto de Lei 6272/05, que cria a Super-Receita, seja vetado o seguinte dispositivo (emenda n° 3, na origem 94): "a desconsideração da pessoa, ato ou negóciojurídico que implique em reconhecimento de relação de trabalho, com ou semvínculo empregatício, deverá ser sempre precedida de decisão judicial".

Na oportunidade, os coordenado
res do Grupo Especial deFiscalização Móvel externam a Vossa Excelência a mais alta admiração e estima.

 

Atenciosamente,

Humberto Célio Pereira da Silva

Klinger Fernandes Santos Moreira

Virna Soraya Damasceno

Dercides Pires da Silva

Benedito de Lima e Silva Filho

Luís Fernando Duque de Souza

Coordenadores do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo do MTE

OBS: O nome da coordenadora Diana Bernardes Rocha não consta da relação acima tendo em vista que a mesma se encontra em trabalho do grupo móvel no interior do País.

 

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