Especial ONGs I

ONGs: o desafio de garantir transparência sem restringir liberdade de atuação

Denúncias de convênios fraudulentos firmados entre governo e ONGs despertam a atenção do Congresso, que até criou uma CPI para apurar irregularidades. Medida pode cercear liberdade de atuação dessas entidades e comprometer democracia
Por Carlos Juliano Barros
 26/03/2007

Em novembro do ano passado, após analisar 28 convênios firmados entre o governo federal e dez Organizações Não Governamentais (ONGs), o Tribunal de Contas da União (TCU) divulgou um relatório que virou manchete dos principais jornais do país: mais da metade dos R$ 150 milhões desembolsados pelo Estado destinou-se a entidades incapazes de executar os serviços contratados, como a prestação de assistência médica a populações indígenas.

No mês seguinte, a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo apontou desvio de dinheiro público por parte de ONGs encarregadas da gestão de 16 presídios. Até uma funcionária ligada ao Primeiro Comando da Capital (PCC) teria sido contratada para facilitar a vida dos detentos em uma das cadeias.

No apagar das luzes de 2006, o senador Heráclito Fortes (PFL/PI) chegou a reunir assinaturas de colegas que apoiavam a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar supostas irregularidades nos contratos feitos entre algumas ONGs e o poder público. Aprovada no dia 15 de março deste ano, a CPI foi idealizada depois do envolvimento do petista Jorge Lorenzetti no escândalo da compra do dossiê contra tucanos paulistas, às vésperas da eleição. Ele era colaborador da Unitrabalho, organização que recebeu cerca de R$ 18,5 milhões para, entre outras coisas, capacitar jovens atendidos pelo programa Primeiro Emprego. Devido à pressão da bancada governista, a comissão também deverá investigar contratos suspeitos realizados desde o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.

A avalanche de denúncias que vieram à tona recentemente abalou de forma generalizada – e até injusta – a reputação das milhares de ONGs brasileiras, e provocou discursos inflamados de políticos defendendo um controle mais rigoroso da atuação dessas entidades. "Mas eu vejo com bons olhos essa crise porque é uma oportunidade de separar o joio do trigo. É importante que se faça uma fiscalização porque isso vai beneficiar aquelas que fazem um trabalho sério, que não usam recursos públicos para fins privados, e que não estão fazendo convênios fraudulentos", afirma João Sucupira, coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), fundado em no começo da década de 80 pelo sociólogo Herbet de Souza, o Betinho.

Assim como o Ibase, outras entidades representativas da chamada sociedade civil organizada defendem o aprimoramento da legislação que regula a atuação das ONGs no Brasil. Alguns projetos já até circularam pelo Congresso, mas o assunto está longe de ser esgotado. "É claro que existem instituições que desviam recursos, mas há empresas que fazem isso, e o próprio governo também faz isso. Só que já existem leis para coibir essas irregularidades", alerta Antônio Eleílson Leite, diretor da Associação Brasileira de ONGs (Abong). "No entanto, o que se vê no debate sobre marco legal é uma vontade de controlá-las. Defendemos o máximo de transparência, e temos muito que avançar nesse sentido, mas mecanismos de controle ferem o preceito constitucional da liberdade de associação. E muitas propostas na Câmara atacam esse direito", completa.

Para começo de conversa, qualquer proposta de regulação desse setor vai esbarrar em uma pergunta espinhosa: afinal de contas, o que é exatamente uma ONG? Juridicamente, o termo não existe, o que torna o questionamento ainda mais complexo. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgada em 2004, apontou a existência de 276 mil Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos (Fasfil) em todo o país.

Mas essa categoria não é suficiente para definir o conceito de ONG, já que também engloba federações esportivas e instituições de ensino, por exemplo. Em comum, todas elas têm cinco atributos básicos: não fazem parte do aparelho do Estado, são legalmente constituídas, gerenciam suas próprias atividades, não têm fins lucrativos e se constituem voluntariamente por um grupo determinado de pessoas. De acordo com o estudo, a Santa Casa, a Pontifícia Universidade Católica (Puc), o Instituto Itaú Cultural e o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, para citar nomes conhecidos, são considerados Fasfil.

Entretanto, não seria prudente chamar todas as Fasfil de ONGs, mas sim aquelas que se dedicam à defesa do meio ambiente, à garantia dos direitos básicos do cidadão e à luta por democracia política e social. De 1996 a 2002, período abarcado pela pesquisa feita pelo IBGE e pelo Ipea, o número de entidades que trabalham justamente com esse universo quadruplicou, enquanto a variação das Fasfil como um todo ficou em 157% – pularam de 105 mil para 276 mil, em menos de uma década.

"Com a democratização do país, os problemas sociais começaram a entrar na agenda dos debates políticos, a sociedade percebeu que precisa dar sua contribuição e passou a se organizar mais", explica Anna Peliano, pesquisadora do Ipea. E é cada vez mais visível a participação de ONGs na formulação e execução de políticas públicas para a área social, como educação e saúde. "Por isso mesmo, elas precisam ser transparentes, sobretudo aquelas que usam dinheiro público. Serviço bem prestado pressupõe boa qualidade e transparência", conclui Anna.

Clique no links abaixo para ler as outras partes da reportagem:

Parte II – Da filantropia, passando por movimentos sociais, ao investimento de empresas

Parte III – Independência financeira também é essencial para garantir autonomia

* Esta reportagem foi publicada em parceria com a revista Revista Problemas Brasileiros

 

 

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