ARTIGO

Pernambuco e as águas do rio São Francisco

Inúmeros trabalhos técnicos apontam a existência de volume de águas na região Nordeste mais do que suficiente para promover desenvolvimento e qualidade de vida à população. Falta, portanto, uma política coerente do uso das águas
Por João Suassuna*
 26/03/2007

Em outubro de 1998 editamos um artigo no Portal da Fundação Joaquim Nabuco intitulado "Água no Semi-árido nordestino: contradição nas ações de uso", no qual, entre outros assuntos, enfocamos os problemas da oferta hídrica em Pernambuco e a desarticulação existente entre as principais instituições (estadual e federal) responsáveis por essas questões no estado. Também mostramos o baixo potencial de oferta de água em seus reservatórios, resultado da inexistência de condições naturais, principalmente de boqueirões, fator topográfico indispensável para a construção de grandes represas.

O resultado de tudo isso é que, em termos da capacidade de acumulação de água em superfície, Pernambuco possui um potencial de apenas 3,4 bilhões de m³, distribuídos em 132 represas de porte médio. Somados a este manancial, o estado dispõe do aqüífero Jatobá, que abastece os municípios de Arcoverde, Ibimirim e Sertânia e de uma fronteira molhada com o rio São Francisco, de aproximadamente 500 quilômetros, que já vem sendo explorada sistematicamente, com o transporte (a adução) de suas águas para Araripina (adutora do Oeste) e Salgueiro (adutora de Salgueiro), municípios pertencentes à bacia do rio. Nestas aduções, as tubulações utilizadas obedecem a um determinado dimensionamento (70 centímetros de diâmetro) capaz de satisfazer ao abastecimento das populações daqueles municípios do sertão pernambucano (a adutora de Araripina abastece os municípios de Ipubi, Ouricuri, Santa Cruz, Santa Filomena e Trindade e a adutora de Salgueiro abastece os municípios de Parnamirim, Serrita, Terra Nova e Verdejante), com uma vazão de 0,5 m³/s.

Em setembro de 2001 editamos outro artigo, intitulado "Transposição de águas do rio São Francisco: planejar é preciso", no qual fizemos um longo relato sobre as questões sanfranciscanas, ressaltando a necessidade de haver planejamento nas ações estruturadoras no Nordeste brasileiro. Merece destaque a situação preocupante no fornecimento de água das populações da Paraíba e de Pernambuco, estados considerados campeoníssimos na baixa oferta hídrica da região, cabendo a este último uma oferta de 1.320 m³, para cada um de seus habitantes, por ano [a Organização das Nações Unidas (ONU) estabelece, como situação mínima para não haver um quadro de escassez hídrica crônica, 1.000 m³/pessoa/ano].

A intenção é mostrar que, apesar de o Nordeste apresentar há décadas problemas de abastecimento de suas populações, o principal problema da região, em nossa opinião, não é de escassez hídrica propriamente dita, e sim de distribuição das águas que já existem na região. Inúmeros trabalhos técnicos desenvolvidos no Nordeste apontam a existência de volume de águas acumulado nesta região mais do que suficiente para promover o desenvolvimento e dar uma qualidade de vida digna ao seu povo. Portanto, o que falta no Nordeste é uma política coerente de uso de suas águas.

Alheio a tudo isso, o governo federal insiste no discurso de que não há garantia hídrica no Nordeste, o que tem resultado em propostas de grandes projetos de engenharia, a exemplo do polêmico projeto de transposição do rio São Francisco – que, ao contrário do que muita gente imagina, visam prioritariamente garantir o uso das águas para o agronegócio (irrigação, uso industrial, criação de camarões, entre outros).

Fácil perceber isso quando vemos que a Ceará Still, siderúrgica em construção no porto de Pecém, no Ceará, está sendo projetada para demandar volumes de água equivalentes ao consumo de uma cidade de 90.000 habitantes. As fazendas de carcinicultura (criação de camarões) do Rio Grande do Norte são outro exemplo de grande consumo, chegando a demandar vazões de cerca de 8 m³/s. Outra prova de que as águas do rio serão utilizadas com fins econômicos é o cálculo previsto para os canais no projeto de transposição (medem 25 metros de largura, 5 metros de profundidade, 700 quilômetros de extensão e vazão de até 127 m³/s).

A nossa maior preocupação é a possibilidade de um colapso iminente do rio, caso venham a ser efetivadas essas novas demandas, por representarem volumes além daqueles que o rio tem condições de ofertar. Lembramos que o Velho Chico é um rio de múltiplos usos e que já está operando em regimes críticos. O nordestino não pode apresentar-se desmemoriado com relação ao que ocorreu no ano de 2001, período no qual a região passou pela mais séria crise energética vivenciada na sua história, em virtude de o rio ter corrido com pouca água.

O potencial hídrico do Nordeste, principalmente aquele localizado em suas principais represas, possui a garantia necessária ao abastecimento de sua população, inclusive com o acesso mais barato, se comparado ao praticado nas faraônicas obras de engenharia propostas pelo governo federal.

Mas, mesmo com a garantia da água para o atendimento das necessidades das populações, reconhecemos na região a existência de bolsões que apresentam extrema dificuldade de abastecimento, motivada, na maioria das vezes, pela pobreza espacial de mananciais. Em tais casos, aportes hídricos externos para a solução desses problemas, quando bem planejados, são bem-vindos.

Contudo, algumas questões devem ser observadas. Em primeiro lugar, não existe em nenhum local deste país a informação de que é proibido o uso das águas do rio São Francisco, fora de sua bacia hidrográfica, para fins de abastecimento humano e animal. Ao contrário, nesses casos, a limitação do uso das águas do rio São Francisco prende-se única e exclusivamente ao fim econômico. Se praticada, a atividade é considerada ilegal.

A Lei Federal 9433/97 (Lei da Águas) fixou os fundamentos da política nacional dos recursos hídricos e, no artigo 38, estabeleceu que o Comitê da Bacia Hidrográfica do rio São Francisco teria poderes para aprovar e acompanhar o plano de recursos hídricos da bacia do rio. Coube ao Comitê elaborar o plano decenal de águas do São Francisco, autorizando o uso em áreas fora da sua bacia (águas de transposição), apenas para o abastecimento humano e dessedentação animal, além de casos de comprovada escassez.

Se existem bolsões no Nordeste com problemas extremos de abastecimento, e se existe a possibilidade de se resolverem esses problemas usando as águas do rio S&ati
lde;o Francisco, valendo-se da força da legislação em vigor e com os cuidados devidos, por que não fazê-lo?

O pressuposto de que o Nordeste brasileiro possui muita água, de que seus mananciais têm garantias hídricas para o abastecimento das populações e que seu acesso é mais barato, foi confirmado pelo próprio governo federal, ao publicar, por intermédio da Agência Nacional de Águas – ANA, o Atlas Nordeste sobre abastecimento urbano de água. O relatório da ANA cita a escassez hídrica nas regiões agrestes dos estados da Paraíba e de Pernambuco e a possibilidade de isso ser solucionado após a adução de águas do rio São Francisco.

A análise comparativa feita por Roberto Malvezzi, o Gogó, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), sobre os benefícios a serem alcançados pelo projeto da transposição do rio São Francisco e pelo relatório da ANA, chegou a seguinte conclusão: com a metade dos recursos financeiros previstos no projeto de transposição, é possível beneficiar, pela proposta da ANA, quase três vezes mais pessoas (a transposição prevê o benefício de 12 milhões de pessoas, enquanto o Atlas prevê o benefício de 34 milhões).

Ainda segundo Gogó, a ANA elaborou esse trabalho indicando uma forma alternativa para solucionar o problema hídrico de 1.112 municípios com mais de 5 mil habitantes em toda a região, além de ter sido a primeira instituição governamental a declarar, explicitamente, as intenções do governo em utilizar as águas da transposição para o agronegócio.

Diante desses argumentos contraditórios (utilização da água do rio São Francisco para fins de agronegócio versus utilização para fins de abastecimento), qual seria a alternativa mais meritória para a solução dos problemas de abastecimento das regiões agrestes dos estados da Paraíba e de Pernambuco?

Para responder a esse tipo de indagação, é importante que o leitor fique esclarecido sobre os equívocos conceituais que, corriqueiramente, são cometidos entre os termos Recalque e Transposição de águas em bacias hidrográficas.

Recalque nada mais é do que o transporte (adução) de água para locais distintos existentes na própria bacia de um rio. O melhor exemplo que podemos dar neste sentido, é o que está ocorrendo em Pernambuco, com o abastecimento de Araripina e Salgueiro com as águas do rio São Francisco, por intermédio das adutoras do Oeste e de Salgueiro. Tais municípios fazem parte da bacia hidrográfica do rio São Francisco e, portanto, as águas para ali destinadas poderão ser usadas também com fins econômicos.

Já a possibilidade de se proceder ao abastecimento do município de Gravatá (município pernambucano de reconhecida escassez hídrica, localizado na região agreste e pertencente a bacia do rio Ipojuca) com as águas do rio São Francisco, é considerada uma transposição de águas, pelo simples fato deste transporte levar a um município localizado fora dos limites da bacia do rio São Francisco. Portanto as águas ali destinadas, por força de lei, só poderão ser utilizadas no abastecimento humano e dessedentação animal.

Diante dessas explicações, entendemos que a solução da escassez hídrica das regiões agrestes da Paraíba e Pernambuco poderá ser determinada, por intermédio da adução de águas do rio São Francisco (transposição), aproveitando, inclusive, a experiência de abastecimento que o estado Pernambuco já detém, com adutora dimensionada para satisfazer as necessidades de abastecimento humano e animal daquelas regiões.

Procedendo-se dessa forma, os mega canais previstos no projeto de transposição do governo federal perderão o sentido de existir, pois serão substituídos por adutoras mais simples e eficazes, infinitamente mais baratas e com maior alcance social.

João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.

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