História sem fim II

Próximos à cidade, índios buscam espaço para retomar velhos hábitos

História de contato entre tupiniquins e sociedade colonial é longa e turbulenta. Unificação do território das aldeias restantes é visto como forma de retomar aspectos da vida em natureza, com espaço para a agricultura e liberdade para criar os filhos
Texto e fotos de André Campos
 30/04/2007

Segunda parte do Especial Aracruz X índios. Para ler desde o início, clique aqui

Estudos do antropólogo Carlos Augusto da Rocha Freire – que foi coordenador de pesquisas da Fundação Nacional do Índio (Funai) no município de Aracruz – indicam que, no início do século passado, a região hoje palco de conflitos entre índios e Aracruz Celulose ainda era dominada por mata virgem. De acordo com ele, as diversas áreas ocupadas pelos tupiniquins eram, muitas vezes, lugares com poucas casas esparsas, ou mesmo uma só família instalada. A comunicação entre essas localidades se dava por trilhas no meio da floresta, e havia um sistema econômico em que um caçava, outro pescava, outro fazia farinha, trocando os produtos entre si.

Ocupações de áreas da empresa são tática freqüente para exigir a demarcação de terras indígenas

Em algumas datas comemorativas católicas – como, por exemplo, no dia de São Benedito – os índios se reuniam nos maiores aldeamentos para realizar a chamada "Banda de Congo". Na ocasião, um mastro era levantado no centro da comunidade, enquanto o Capitão do Tambor – espécie de liderança cultural, ornamentada com cocar e bastão – comandava um grupo de percussão, convocando as pessoas para dançar. Até os dias de hoje realiza-se esse ritual em Caieiras Velhas, durante ocasiões como, por exemplo, o Dia do Índio.

Para os pesquisadores que estudam a etnia, essa mescla entre tradições indígenas e católicas explica-se, em grande medida, pelo passado histórico daquela região. Existem registros de ao menos dois aldeamentos jesuíticos, criados ainda no século XVI, em áreas próximas onde ficam hoje os territórios restantes dos tupiniquins. Um deles, o aldeamento de Aldeia Nova, entrou em decadência na década de 1580, devido a um surto de varíola e um ataque de formigas que destruiu as plantações. Existe a suspeita de que parte dos sobreviventes teria migrado para a outra margem do rio Piraquê-Açu, onde fica hoje Caieiras Velhas. De qualquer forma, a influência jesuíta na região perdurou até 1760, ano em que os integrantes dessa ordem religiosa foram expulsos do país pelo Marquês de Pombal.

Notadamente, a etnia tupiniqum foi uma das que mais contato teve com os colonizadores, não sendo à toa que sua denominação seja empregada hoje como adjetivo de algo genuinamente brasileiro. Combates com europeus e epidemias trazidas pelos estrangeiros marcam os primeiros capítulos dessa história de aniquilamento físico e cultural. Na região de Ilhéus, sul da Bahia, por exemplo, os tupiniquins locais foram praticamente dizimados pelo então governador Mem de Sá, que abriu guerra contra eles nos primeiros anos da colonização.

Caieiras Velhas, na margem do rio Piraquê-Açu, foi
possivelmente fundada por índios que viviam
em aldeamentos jesuíticos

Em Aracruz, a partir da década de 1940, o sistema de vida da comunidade indígena local começou a sofrer abalos significativos. Foi quando chegou à região a Companhia Ferro e Aço de Vitória (Cofavi), interessada em explorar madeira para produzir carvão vegetal. Nesse período surgiram posseiros e alguns tupiniquins chegaram mesmo a trabalhar para a empresa na derrubada de árvores.

Era o prenúncio de um novo cenário fundiário, que se concretizou vinte anos mais tarde com o surgimento da Aracruz Celulose. A empresa adquiriu da Cofavi os 10 mil hectares que pertenciam àquela companhia na região. Além disso, iniciou a aquisição de outras terras que, segundo a Aracruz Celulose, eram ocupadas por posseiros e proprietários não-índios, presentes nelas há várias gerações.

Nessa mesma época, contam os tupiniquins mais velhos, além da destruição das aldeias intensificou-se também o desmatamento da Mata Atlântica local. Tratores unidos entre si por enormes correntes fizeram grandes derrubadas, uma prática presenciada por José Luis Ramos, que foi cacique dos tupiniquins na década de 1990. "Eu tinha sete anos de idade quando a Aracruz Celulose chegou, destruindo tudo", conta. "Aqui tinha porco-do-mato, veado e vários tipos de tatu, isso sem falar nos pássaros, que eram muitos. Meus pais viviam de roça, pesca e caça, e era bom. Carne de animais nativos tinha muito."

Apesar dos problemas sociais, a questão indígena em Aracruz só passou a ter tratamento oficial em meados dos anos 1970, quando um posto da Funai foi criado na região e estudos da entidade originaram uma portaria destinando 6,5 mil hectares aos índios do município. Após intensas discussões, no entanto, firmou-se um acordo alternativo com a Aracruz Celulose. Finalizada em 1983, a demarcação continha dois mil hectares a menos que o território originalmente pleiteado. Basicamente, incluía a área das aldeias remanescentes, sem espaço físico para a vida indígena como ela era num passado não muito distante.

A chegada dos guaranis
Na ocasião, os tupiniquins já não eram os únicos indígenas a lutar por terras em Aracruz. Numa história de contornos épicos, chegou ao município em 1967 – após mais de vinte anos de caminhada – um grupo de algumas dezenas de índios guaranis originários do Paraguai. Passaram pelo Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais antes de decidirem instalar-se definitivamente próximos a Caieiras Velhas. Uma resolução tomada em função dos sonhos de Tatantin-Rua Retée, liderança religiosa do grupo. Através deles, ela obteve uma revelação: aquele era o local procurado por eles durante tantos anos de migração em busca da Terra sem Males – espaço mitológico guarani onde há fartura e condições para viver de acordo com o modo de ser da etnia.

Avós dos tupiniquins mais velhos ainda se
comunicavam no dialeto indígena; atualmente
resta apenas a lembrança de algumas palavras

A presença do grupo na região, entretanto, durou pouco. Em meio à pressão fundiária que já se alastrava, os guaranis foram deslocados pelo governo do Estado para Guarapari (ES). Pouco tempo depois, foi a vez da Funai transportá-los novamente, desta vez para uma fazenda em Carmésia (MG). O local – um vale incrustado
entre dois morros – abrigava indivíduos de diversas etnias e funcionava como uma espécie de reformatório de índios considerados infratores. "Aquilo era uma vala, vivíamos como que entre duas paredes", revela Werá Kwaray, neto de Tatantin-Rua Retée e
cacique de Boa Esperança.

A aldeia de Boa Esperança foi formada em meados da década de 1970, quando os guaranis decidiram sair de Carmésia, retornar ao local indicado pelos sonhos da xamã e lá se estabelecer de uma vez por todas. Um percurso que muitos fizeram a pé, numa caminhada de meses. Encontraram na região de Aracruz uma paisagem já bastante diferente, alterada pelos eucaliptos. Reviram também lideranças tupiniquins remanescentes, vivendo em situação precária, com quem estabeleceram uma aliança na luta pelas terras. O território da aldeia passou a integrar, posteriormente, a Terra Indígena demarcada em torno de Caieiras Velhas.

Ao contrário dos guaranis, os tupiniquins não falam mais a língua tradicional do seu povo. Referências a pessoas que ainda se comunicavam em dialeto indígena remetem aos avós dos representantes mais velhos da etnia. É o caso, por exemplo, do avô de dona Zulmira. Conta a tupiniquim que, quando conversava com sua mulher, ele usava uma língua que a neta não entendia. "Quando eu pedia para ele falar comigo, para que eu pudesse aprender, ele dizia que não", lembra. Segundo outros relatos, vários outros tupiniquins tiveram atitude semelhante à época. Algo que, para alguns antropólogos, deve-se a uma postura de auto-preservação contra preconceitos e ameaças sofridas pela comunidade tupiniquim de Aracruz devido a sua condição indígena.

Acerto de contas
Insatisfeitos com a demarcação estabelecida na década de 1980, guaranis e tupiniquins começaram a lutar, em 1993, pela revisão dos limites das suas terras. Foram solicitados novos estudos à Funai, que concluíram pela demarcação de uma área que unificaria os territórios de Caieiras Velhas, Irajá e Pau Brasil – três das quatro aldeias tupiniquins remanescentes – em um só grande território. Tal decisão, segundo a entidade, permitiria uma retomada de vários dos aldeamentos extintos, além de antigas relações de cooperação e aspectos da cultura tradicional dos índios. Se levado a cabo, o relatório da Funai mais que triplicaria o conjunto das terras indígenas demarcadas no município.

A Aracruz Celulose contestou tais estudos, estabelecendo uma pendência jurídica que durou até 1998. Contrariados com a demora, os índios decidiram agir e fazer uma "auto-demarcação" das áreas que julgavam suas por direito e ocuparam naquele ano parte do território em litígio. Tal ação foi reprimida pela Polícia Federal, chamou a atenção da opinião pública e apressou as negociações para, mais uma vez, estabelecer-se um acordo alternativo.

Na ocasião, ficou acertado que a Aracruz Celulose doaria 2,5 mil hectares aos indígenas, além de repassar por vinte anos recursos financeiros voltados ao desenvolvimento das comunidades – um acerto hoje criticado por lideranças como algo empurrado goela abaixo dos indígenas. "Na época em que foi feito esse acordo, eles estavam isolados em suas terras", afirma Winnie Overbeek, da ONG Fase, uma das principais apoiadoras da causa indígena. "Ele foi assinado com a Polícia Federal na janela dos índios."

Ás áreas doadas em 1998 incluíam plantações de eucalipto que originaram, a partir de então, relações comerciais entre os dois lados. A Aracruz Celulose começou a comprar matéria-prima da terra dos índios – situação que, segundo a empresa, tornou as comunidades indígenas seus maiores fornecedores individuais de madeira. Além disso, a companhia repassava dinheiro que era injetado em projetos agrícolas dentro das comunidades – como, por exemplo, uma lavoura de café. Em torno dessas atividades organizaram-se novas formas de trabalho comunal, cujo retorno financeiro era distribuído entre as famílias das aldeias.

Índio com marca de bala de borracha
na barriga: diversos líderes locais
possuem cicatrizes semelhantes

Esse "choque de capitalismo", no entanto, revelou-se um fracasso no longo prazo. Começaram a minguar as plantações de eucalipto e as culturas desenvolvidas com os recursos da empresa nunca chegaram realmente a decolar. De acordo com o ex- cacique José Luis, a falta de conhecimento, apoio e capacitação para gerir esses recursos foi uma das principais razões para o declínio dos empreendimentos. "A lavoura de café eu considero hoje abandonada", diz ele. "Nós até costumávamos dizer que não estávamos fazendo agricultura, mas sim enterrando dinheiro."

Soma-se a isso um certo mal-estar com os rumos daquele tipo de "desenvolvimento" alavancado a partir dos acordos de 1998. "Trocamos terra for dinheiro, e isso desuniu as comunidades", afirma Vilmar de Oliveira, que foi presidente da Associação Indígena Tupiniquim Guarani (AITG) – entidade criada justamente para gerir os recursos repassados pela Aracruz Celulose. Foi nesse contexto que, em 2004, as sete aldeias tupiniquins e guaranis decidiram retomar a luta pela terra, rompendo definitivamente com a empresa.

Foi iniciada uma nova "auto-demarcação" das terras, que culminou na recriação do antigo aldeamento de Olho D'Água em áreas até então ocupadas pelo eucalipto da empresa. Já havia inclusive pessoas morando lá quando, em janeiro de 2006, a Polícia Federal foi chamada para realizar reintegração de posse. Ação culminou na derrubada da aldeia incipiente, em dezenas de feridos e na expulsão dos indígenas. Grande parte das lideranças guaranis e tupiniquins possui hoje cicatrizes por conta das balas de borracha disparadas naquele dia.

Parte III: Aracruz questiona identidade dos tupiniquins para ficar com terras

Esta reportagem foi publicada em parceria com a revista Problemas Brasileiros

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