A Repórter Brasil está sob censura judicial desde o dia 9 de outubro de 2015. Saiba mais.

Empresas mostram suas ações contra o trabalho escravo em evento em SP

Wal-Mart, Carrefour, Amaggi e siderúrgicas do Instituto Carvão Cidadão relataram avanços. Mas associações de classe mostraram que ainda falta muito para envolver setores, como o da carne bovina, na erradicação desse crime

Reunião em São Paulo Reuniu cerca de 70 representantes de empresas, entidades de classe, governo e sociedade civil

Dois anos se passaram desde que o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo uniu quase 100 empresas na luta pelo fim das condições degradantes de trabalho. Desde então, a articulação da iniciativa privada nesse sentido foi fortalecida. Mas a ação das entidades de classe dos setores da soja, carne bovina e algodão não se mostrou tão eficaz quanto a atuação isolada de algumas empresas. Esse debate ocorreu no evento de aniversário do Pacto, realizado na última quinta-feira (17), em São Paulo, e reuniu aproximadamente 70 representantes de empresas, entidades de classe, governo e sociedade civil.

Vários exemplos de atuação de empresas e entidades foram apresentados e debatidos pelos participantes. Juntos, eles contam a história do engajamento, ainda incipiente, da iniciativa privada no combate ao trabalho escravo no Brasil. Engajamento que começou em fins de 2004, a partir de reuniões conduzidas pelo Instituto Ethos, Organização Internacional do Trabalho (OIT) e ONG Repórter Brasil, que alertaram as empresas sobre seu envolvimento nas cadeias de comercialização de produtos advindos de fazendas com trabalho escravo.

Essas cadeias produtivas foram mapeadas pela Repórter Brasil em 2004, com base nas fazendas presentes na "lista suja" do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que relaciona propriedades flagradas com mão-de-obra escrava.

Caso Sindicom
Um dos primeiros setores a se comprometer com o corte de fornecedores da "lista suja" foi o de combustíveis. Os membros do Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e Lubrificantes deixaram de comercializar com a Destilaria Gameleira, produtora de álcool anidro e hidratado que estava na "lista suja" de 2004, até que ela regularizasse sua situação perante o Ministério do Trabalho e Emprego. Ipiranga, Shell, Texaco, BR Distribuidora (Petrobras) e Esso informaram à usina que não mais comprariam sua produção.

O caso acabou gerando repercussão por conta da influência política dos donos da Destilaria. Ela pertence ao empresário pernambucano Eduardo Queiroz Monteiro, irmão do então deputado federal e presidente da Confederação Nacional das Indústrias (CNI), Armando Monteiro Neto (PTB-PE). Na ocasião em que as empresas comunicaram o fim da relação comercial com a usina, o então presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP-PE), ligou para as empresas para indagá-las o porquê da restrição comercial. O caso deu capa de jornal e gerou um pedido de cassação de Severino.

Em 2005, a Gameleira conseguiu uma liminar na Justiça para que seu nome não fosse mais divulgado na "lista suja". As empresas, ainda assim, mantiveram a restrição. "A Gameleira nos procurou tentando colocar suas razões, dizendo que conseguiram uma liminar, mas esse argumento não tem força para nós, não muda nosso compromisso ético com a causa", diz Guido Silveira, gerente jurídico da Ipiranga. A liminar acabou sendo cassada no ano passado e a Gameleira, que hoje pertence à Destilaria Araguaia, do mesmo grupo EQM, de Eduardo Queiroz Monteiro, voltou para a lista. Apesar do comprometimento imediato, as empresas do Sindicom não fizeram apresentações durante o evento.

Caso Coteminas
Caminho parecido seguiu a Coteminas – Companhia de Tecidos Norte de Minas, uma das maiores compradoras e beneficiadoras de algodão do país e de propriedade do vice-presidente da República, José Alencar. A empresa determinou corte imediato de negócios com fazendas de algodão que utilizaram trabalho escravo, implantou instrumentos para identificar a origem do algodão que a empresa compra e foi decisiva na assinatura do Pacto pela Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit).

A apresentação da Abit no evento de comemoração dos dois anos do Pacto Nacional, no entanto, demonstrou que ainda falta muito para que se possa considerar que o setor do algodão está comprometido com o combate ao trabalho escravo. Sylvio Napoli, gerente de infra-estrutura da Abit, falou sobre ações pretendidas para o monitoramento interno de seus associados, especialmente confecções, além de citar a iniciativa de criar uma área de responsabilidade social dentro da associação.

Caso Wal-Mart
Da mesma maneira, o setor mais envolvido na cadeia produtiva do trabalho escravo, o da pecuária bovina, que hoje representa 62% das propriedades da "lista suja", ainda não se mostrou empenhado no combate à prática. A Associação Brasileira da Indústria Exportadora de Carne (Abiec), signatária do pacto e representante dos maiores frigoríficos do país, apresentou poucas medidas práticas de seus associados para erradicar a escravidão. Embora diversos deles apareçam, no estudo realizado pela Repórter Brasil, entre os compradores diretos de várias fazendas que utilizam mão-de-obra escrava.

Já grandes varejistas, como os grupos Carrefour, Pão-de-Açúcar e Wal-Mart, são signatários do Pacto e desde então se comprometeram a colocar em seus contratos de fornecimento cláusulas a respeito do trabalho escravo. O Wal-Mart teve, inclusive, um caso de corte de relação comercial com um frigorífico no norte do Tocantins, o Frinorte, porque o abatedouro não suspendeu negócios com uma fazenda reincidente em trabalho escravo. "Foi uma medida extrema porque o frigorífico não demonstrou interesse em dialogar a respeito do tema", diz Paulo Mindlin, coordenador de assuntos corporativos do Wal-Mart.

A rede de supermercados adotou uma política incisiva com seus fornecedores, convocando os frigoríficos para uma reunião em sua sede, em Tamboré, região da Grande São Paulo. A Repórter Brasil esteve presente na reunião, encarregada de apresentar a situação do trabalho escravo no Brasil. O diretor nacional de perecíveis do Wal-Mart, Luiz Fernando Rego, pediu a todos os frigoríficos que estivessem presentes no evento do dia 17 de maio e assinassem também o Pacto, alertando para a postura clara da empresa de não mais aceitar comprar carne de quem não se comprometesse a erradicar o trabalho escravo em sua cadeia.

Para Paulo Mindlin, "a conversa com os frigoríficos não foi impositiva, nem uma ameaça, mas mostrou que o possível corte de relações comerciais é uma conseqüência lógica de uma política de responsabilidade social que não é mais opcional, mas uma obrigação para o grupo".

Ainda assim, apenas um dos frigoríficos presentes nessa reunião compareceu ao evento, o Frigorífico Pamplona, especializado em suínos, que ainda não assinou o Pacto. E o frigorífico Friboi, o maior em abate do Brasil, assinou o Pacto apenas hoje (21), apesar da ausência no dia 17.

Antes dele, o único frigorífico a assinar o Pacto havia sido o Bertin – e o fez um dia antes do evento. Ele é o segundo maior abatedor e maior exportador brasileiro de carne. Recebeu em março um financiamento de 90 milhões de dólares da Corporação Financeira Internacional (IFC, na sigla em inglês) – braço de crédito privado do Banco Mundial – para ser aplicado na duplicação da capacidade de abate de sua unidade na Amazônia, em Marabá, no Pará. A assinatura do Pacto foi uma exigência do próprio Banco Mundial.

Caso Amaggi
O Grupo André Maggi, um dos maiores produtores e exportadores de soja do mundo, pertencente à família do governador do Estado do Mato Grosso, Blairo Maggi, não havia assinado o Pacto até que um relatório com críticas às suas ações socioambientais foi enviando ao IFC, financiador do grupo.

A Amaggi, subsidiária responsável pela exportação e importação, comercializava soja de, pelo menos, duas fazendas da "lista suja" (a Barão e a Vó Gercy, ambas no Mato Grosso). Preocupado com a situação, o Banco Mundial chegou a pensar em revisão das condições de financiamento acordadas entre ele e a empresa. A partir disso o grupo assinou o Pacto.

Durante o evento, a Amaggi apresentou algumas ações efetivas, como treinamento de seus funcionários compradores de soja para que auditem as fazendas fornecedoras sobre aspectos trabalhistas e ambientais; o corte imediato do comércio com as duas fazendas que estavam na "lista suja" em 2004 e a consulta a esse cadastro do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) antes de admitir um novo fornecedor. O grupo foi também um dos defensores da manutenção da restrição comercial ao fornecedor que consegue uma liminar judicial para suspender seu nome da relação de infratores. "A liminar não nos dá segurança nenhuma, porque muitas vezes ela é derrubada em três meses, e aí não podemos nos arriscar a comprar soja daquela fazenda", diz Juliana Lopes, coordenadora de desenvolvimento social do grupo.

Juliana explicou que é muito comum que fornecedores cortados tentem comercializar soja com outro CPF ou CNPJ. Segundo ela, até agora, a empresa conseguiu rastrear esses casos de má-fé através da identificação da fazenda de origem daquela soja.

Apesar da apresentação de ações concretas de engajamento na luta contra o trabalho escravo no evento do dia 17, o Grupo André Maggi ainda não publicou a lista de seus 700 fornecedores pré-financiados na produção de soja, uma reivindicação antiga dos movimentos sociais que acompanharam o caso do financiamento do Banco Mundial.

Além do grupo, outras empresas que compravam de fazendas da "lista suja", as multinacionais Cargill e Bunge, são signatárias do Pacto, mas não apresentaram suas ações. A trading ADM, que também adquiria produtos de fazendas que utilizaram mão-de-obra escrava, até hoje não assinou o Pacto, alegando que a assinatura da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) já representa o setor.

A Abiove, através de seu secretário-geral Fábio Trigueirinho, afirmou que seus associados estão utilizando a "lista suja" para cortar fornecedores, mas não apresentou ações concretas de comprometimento do setor.

Caso Instituto Carvão Cidadão
Já o setor siderúrgico se envolveu de forma mais articulada no combate ao trabalho escravo. Catorze das 16 indústrias da Associação das Siderúrgicas de Carajás (Asica), localizadas nos Estados do Maranhão e no Pará, criaram o Instituto Carvão Cidadão (ICC), que vem agindo na tentativa de melhorar as condições de trabalho nas carvoarias fornecedoras.

Segundo André Câncio, presidente do ICC, das mais de mil carvoarias fiscalizadas, 316 foram descredenciadas pela entidade e estão proibidas de vender carvão para siderúrgicas do instituto.

"Muitas dessas carvoarias correm para nos contatar e perguntar o que podem fazer para se regularizar, especialmente no Maranhão, e voltar a vender normalmente seu produto", conta Cláudia Márcia Brito, diretora técnica da entidade. Apesar disso, ela atenta para o fato de no Estado do Pará não existir a mesma fidelização da carvoaria em relação à siderúrgica que existe no Maranhão, o que levou muitas das descredenciadas a começarem a vender a outras siderúrgicas paraenses não-associadas ao ICC ou mesmo a empresas de Minas Gerais.

Outra ação do setor que é reconhecida positivamente pelas entidades envolvidas no combate ao trabalho escravo foi a contratação de trabalhadores libertados da escravidão. Foram inseridos no mercado de trabalho pelas siderúrgicas do ICC 56 ex-escravos. "Apenas o ICC foi além do protocolo e fez mais do que simplesmente fiscalizar seus associados", diz Patrícia Audi, coordenadora do projeto de combate ao trabalho escravo da OIT Brasil.

Grupo de trabalho
Ao final do evento, o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social expôs às empresas e entidades a proposta de criação de um grupo de trabalho para o monitoramento do Pacto. Serão conduzidas reuniões entre os signatários e o Ethos, a OIT e a Repórter Brasil, e a realização de mais um evento em 2008. O objetivo é reunir as boas práticas constatadas para que possam ser replicadas por outras empresas, além de buscar consensos sobre a política de aplicação de restrições comerciais.

Leia mais:
Mudança de comportamento do agronegócio é desafio de Pacto
Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo completa dois anos

Para ver as apresentações dos palestrantes do evento, clique nos links abaixo:
Abiec
Abiove
Amaggi
Carrefour
Instituto Carvão Cidadão
Organização Internacional do Trabalho
Repórter Brasil


Apoie a Repórter Brasil

saiba como