Trabalho Escravo

Nove condenações somam mais de 10 milhões de reais

Indenizações trabalhistas são um dos mais importantes instrumentos para punir empregadores que utilizaram mão-de-obra escrava. Fazendas de gado lideram levantamento da Repórter Brasil com as maiores condenações
Por Fabiana Vezzali
 31/05/2007

Um dos principais fatores que levam ao aparecimento do trabalho escravo é a busca pelo lucro fácil. Para fazer frente a um mercado cada vez mais competitivo, há proprietários rurais que optam pela saída mais simples, cortando direitos dos trabalhadores e negando-lhes condições mínimas de sobrevivência. No limite, impedem que a pessoa deixe o serviço enquanto não terminá-lo. Para alterar esse quadro, instrumentos de repressão econômica têm atuado no sentido de tornar o trabalho escravo um mau negócio.

Um desses instrumentos é a divulgação de seus nomes em um cadastro nacional organizado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (que ficou conhecido com "lista suja"). Instituições financeiras públicas e algumas privadas tem usado essa relação antes da concessão de crédito, da mesma forma que o cadastro da Serasa funciona para os inadimplentes. Também com base na "lista suja", foi assinado o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo – em que as empresas se comprometem a cortar a comercialização com fornecedores que utilizaram esse tipo de mão-de-obra.

Fiscal toma depoimento de trabalhadores na fazenda Cabaceiras em 2004 (fotos: Leonardo Sakamoto)

As indenizações firmadas pela Justiça do Trabalho após ações do Ministério Público do Trabalho (MPT) configuram outro importante meio para punir empresas ou proprietários rurais que cometeram esse crime. Em geral, após o flagrante dos fiscais do trabalho, o empregador é obrigado a pagar todos os direitos trabalhistas devidos. Depois disso, ele ainda responderá por um processo administrativo no Ministério do Trabalho e Emprego criado pela aplicação das multas geradas pelo desrespeito às normas trabalhistas. O Ministério Público do Trabalho pode ainda exigir no momento da fiscalização o pagamento de indenização por danos morais individuais e coletivos ou enviar o caso diretamente à Justiça do Trabalho.

Uma vez na Justiça do Trabalho, o valor da indenização poderá ser determinado por sentença ou por acordo. Infelizmente, não há dados sistematizados sobre esses casos no Poder Judiciário, o que impossibilita qualquer definição de uma relação completa com as maiores indenizações já pagas por crime de trabalho escravo. Após realizar um extenso levantamento sobre os maiores valores de indenização já determinados nos estados com maior incidência desse crime, a Repórter Brasil encontrou nove deles que somam mais de R$ 10 milhões.

Caderno do gato em que estava o valor pago pelos peões no hotel. Documento foi encontrado durante fiscalização na fazenda Cabaceiras

Em sua maioria, os casos presentes no levantamento organizado pela Repórter Brasil alcançaram grande repercussão na época da fiscalização que originou o processo. Em dois desses casos, os sucessivos flagrantes de utilização de trabalho escravo tornaram a Lima Araújo Agropecuária Ltda e a Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda exemplos emblemáticos da ocorrência desse tipo de crime no país. Não por acaso eles encabeçam a lista das indenizações, com R$ 5 milhões e R$ 1,35 milhão, respectivamente.

Também faz parte dessa lista o segundo vice-presidente da Câmara dos Deputados, Inocêncio de Oliveira (PR-PE), flagrado utilizando trabalho escravo em sua fazenda em 2002, no Maranhão. O deputado foi condenado pela Justiça estadual a pagar R$ 300 mil. Depois desse episódio, ele vendeu a propriedade.

A fazenda Roda Velha, conhecida por ser a vice-líder no número de libertados, com 745 pessoas resgatadas, firmou acordo com o MPT e deveria pagar cerca de R$ 655 mil ao Fundo de Amparo do Trabalho. A procuradoria do Trabalho em Barreiras (BA) informa, contudo, que após ultrapassar os R$ 100 mil em parcelas pagas, a empresa propôs uma renegociação e trocou o pagamento ao FAT pela construção de posto de saúde e ampliação da escola municipal, além de melhorias nas instalações da fazenda para beneficiar os empregados.

Há ainda o caso de condenação da Companhia Siderúrgica do Pará (Cosipar) que, apesar de não ser proprietária da fazenda fiscalizada, foi condenada por causa de fornecedores de carvão vegetal terceirizados em fazendas no Sul do estado. A empresa admitiu sua responsabilidade e também pagou a sentença de R$ 1 milhão por danos morais coletivos. O proprietário da fazenda, Wilson Ferreira da Rocha, está na "lista suja" do trabalho escravo desde dezembro de 2004.

Veja os casos a seguir:

Empregador: Lima Araújo Agropecuária Ltda
Ramo de atividade Criação de bovinos para corte
Valor Condenada em fevereiro de 2006 a pagar R$ 5 milhões ao Fundo de Amparo ao Trabalhador por danos morais coletivos. A Lima Araújo recorreu da decisão e o processo está no Tribunal Superior Trabalho aguardando julgamento.
Fiscalização

A empresa foi condenada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, em fevereiro de 2006, por escravizar trabalhadores em suas fazendas Estrela das Alagoas e Estrela de Maceió, em Piçarra, Sul do Pará. Por três vezes, essas propriedades rurais já haviam sido palco de libertação de trabalhadores em ações de fiscalização: em fevereiro de 1998, outubro de 2001 e novembro de 2002.

A Lima Araújo também esteve presente no lançamento da "lista suja" do trabalho escravo em novembro de 2003. A Lima Araújo foi ré em outras três ações por trabalho escravo, tendo sido condenada a pagar R$ 30 mil por danos morais coletivos e flagrada cometendo o mesmo crime logo depois. Na época, o procurador do Trabalho responsável pela ação (originalmente foram pedidos R$ 85 milhões), Lóris Rocha Júnior, afirmou que as constantes reincidências da Lima Araújo na utilização de mão-de-obra escrava, a situação degradante em que sempre era
m encontrados os seus funcionários e o descaso com a Justiça e o trabalho dos fiscais justificaram o tamanho do pedido de indenização.

Número de trabalhadores libertados 180 pessoas (entre os quais nove adolescentes e uma criança).
Empregador: Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda
Ramo de atividade Criação de bovinos para corte e reprodução de matrizes
Fazenda Castanhal Cabaceiras
Valor A empresa foi condenada a pagar R$ 1.350.440,00 por danos morais coletivos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador por crime de redução de pessoas à condição análoga à de escravo.
Fiscalização

A sentença da 2ª Vara da Justiça do Trabalho de Marabá proferida em 2004 encerrou a ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho. Os réus aceitaram as determinações do Ministério Público do Trabalho (MPT) e o juiz homologou um acordo. Em outubro de 2004, o presidente Lula assinou um decreto permitindo que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) promovesse a desapropriação da Cabaceiras para fins de reforma agrária. Os proprietários obtiveram uma liminar no Supremo Tribunal Federal suspendendo a desapropriação.

A Cabaceiras, localizada em Marabá (PA), foi autuada duas vezes: em agosto de 2002, 22 pessoas ganharam a liberdade e, em fevereiro de 2004, outros 13.

Os responsáveis pela empresa citados no processo da Cabaceiras são os irmãos Evandro (dono também da fazenda Peruano, flagrada com trabalho escravo), Délio e Celso Mutran e Helena Mutran. Além de pagarem a quantia estipulada pela Justiça, eles se comprometeram a adequar-se às normas trabalhistas (construir alojamentos com saneamento básico, garantir alimentação adequada, contratar legalmente todos os trabalhadores que estiverem a seu serviço, entre outros) e não utilizar mais intermediários que aliciam trabalhadores, como os já conhecidos "gatos".

Número de trabalhadores libertados 22 e 13
Empregador: Gilberto Resende
Fazenda Inajá
Valor

Condenado em dezembro de 2006, pela Vara do Trabalho de São Felix do Araguaia (MT), a pagar R$ 1 milhão ao Fundo de Amparo ao Trabalhador a título de danos morais coletivos por manter trabalhadores em regime de escravidão. Segundo o Ministério Público do Trabalho, o fazendeiro ainda pode apresentar recurso ao Tribunal Regional do Trabalho no Mato Grosso ou ao Tribunal Superior do Trabalho em Brasília.

Um dia após a publicação desta matéria, em 1º de junho, o Tribunal Regional do Trabalho de Mato Grosso publicou a decisão em que negou o recurso apresentado por Gilberto Resende, mantendo a condenação de primeira instância.

Fiscalização

No final de 1999, três trabalhadores conseguiram fugir da fazenda Inajá, de propriedade de Resende, localizada em São José do Xingu (MT). Eles acusaram o fazendeiro de utilizar capangas armados para vigiar 16 trabalhadores, que chegavam a ser espancados com golpes de corrente e levar pontapés.

Em um exame de corpo de delito realizado em uma das pessoas que fugiu, foram encontradas 29 escoriações nas costas e pescoço, entre outros ferimentos. Além das ameaças e maus-tratos, o juiz João Humberto Cesário afirmou, em sua sentença, que os trabalhadores não recebiam salário, não eram registrados, trabalhavam sob jornada exaustiva e não utilizavam equipamentos de proteção individual (EPIs).

Segundo a Comissão Pastoral da Terra, Gilberto responde ainda na Justiça a um processo criminal e a dez processos por disputas de terra no Mato Grosso.

Número de trabalhadores libertados 16
Empregador: Cosipar – Companhia Siderúrgica do Pará SA e Wilson Ferreira da Rocha
Ramo de atividade Produção de ferro gusa
Fazenda Califórnia
Valor Acordo judicial homologado em abril de 2005 determinou o pagamento de R$ 1 milhão por danos morais, em bens doados ao Ministério do Trabalho e Emprego (10 Mitsubishi – L200, 8 Walk-Talk Motorola T-7100, 2 GPS Garmin V) para equipar as equipes de fiscalização, além de um valor remanescente pago em três parcelas iguais nas datas de 25 de maio, 23 de junho e 25 de julho de 2005.
Fiscalização

A Companhia Siderúrgica do Pará (Cosipar) foi acusada de terceirizar a produção de carvão mineral em fazendas no sul do estado e admitiu sua responsabilidade trabalhista e previdenciária em relação aos trabalhadores de todas as carvoarias que lhes fornecem carvão vegetal para produção de ferro-gusa.

Em abril de 2003, a operação realizada na Fazenda Califórnia flagrou trabalhadores em condições degradantes operando baterias de fornos de carvão. A fazenda, localizada em Goianésia (PA), fornecia o produto com exclusividade para a Cosipar. O proprietário da fazenda, Wilson Ferreira da Rocha, está presente na "lista suja" do trabalho escravo desde dezembro de 2004.

Número de trabalhadores lib
ertados
26
Empregador: Roda Velha Agroindustrial Ltda. e José Leite Filho de Barreiras
Ramo de atividade Produção de café
Fazenda Roda Velha
Valor

Firmou acordo com o Ministério Público do Trabalho para pagar cerca de R$ 655 mil em indenizações por danos morais coletivos ao FAT. Quando ultrapassou os R$ 100 mil pagos em parcelas de R$ 10 mil, a empresa propôs renegociação e trocou o pagamento das parcelas pela construção de posto de saúde e ampliação da escola, entre outras benfeitorias.

Fiscalização

A fazenda Roda Velha, localizada no município de São Desidério (BA), sofreu fiscalização em agosto de 2003, quando foram libertados lavradores em condições análogas à escravidão na colheita do café.

Número de trabalhadores libertados 745 (entre eles, muitos adolescentes e mais de 70 pessoas doentes)
Empregador: Destilaria Gameleira
Ramo de atividade Produção de álcool
Valor A Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia (MT) condenou, em outubro de 2006, a Destilaria Gameleira, localizada em Confresa, no Mato Grosso, a pagar R$ 500 mil ao Fundo de Amparo ao Trabalhador por danos morais coletivos. O julgamento ocorreu à revelia, pois a empresa não compareceu ao tribunal para prestar esclarecimentos e não haverá recurso.
Fiscalização

A sentença corresponde à fiscalização que a Gameleira sofreu em 2003, em que o Ministério do Trabalho e Emprego libertou 76 pessoas. Antes, em 2001, 272 pessoas haviam sido libertadas da fazenda de cana-de-açúcar.

Em junho de 2005, a Gameleira foi novamente autuada e, dessa vez, 1003 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à de escravidão da propriedade em Confresa, no Mato Grosso. A empresa teve que pagar R$ 1,45 mil em direitos trabalhistas devidos (o número não foi contabilizado pela reportagem por não ser uma ação judicial) no ato da libertação e providenciar o retorno dos trabalhadores encontrados em sua propriedade aos seus estados de origem. Na operação foram lavrados 48 autos de infração, com valor estimado em R$ 800 mil. E as autuações dos auditores do INSS somaram R$ 758 mil por não recolhimento previdenciário.

A Destilaria Gameleira é propriedade do Grupo EQM, de Eduardo Queiroz Monteiro e, em 2006, passou a fazer parte da Destilaria Araguaia. As reincidentes fiscalizações levaram a Gameleira a ser inserida na "lista suja".

Número de trabalhadores libertados 76
Empregador: Romão Ribeiro Flor
Fazenda Rio Preto
Valor O Ministério Público do Trabalho (MPT) e o fazendeiro Romão Ribeiro Flor firmaram três acordos, em maio deste ano, no valor de R$ 414 mil para serem utilizados em obras sociais, como a construção de um posto de saúde e a aquisição de uma caminhonete no valor de R$ 85 mil, que será doada à Delegacia Regional do Trabalho a ser instalada em São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. A compra dos bens e a construção das obras serão fiscalizadas pelo MPT.
Fiscalização

Após a operação do grupo móvel em 2004, a fazenda Rio Preto, em Porto Alegre do Norte (MT), foi alvo de ações civis propostas pelo Ministério Público do Trabalho. Segundo uma delas, "o empregador havia determinado que os trabalhadores, que faziam a roçagem de pasto, refugiassem pelo meio do mato para esconder do grupo móvel as reais condições de trabalho. Eles só foram resgatados graças a informações colhidas durante os depoimentos de outros trabalhadores".

Número de trabalhadores libertados 18
Empregador: Euclebe Roberto Vessoni
Fazenda Ponta de Pedra
Valor Um acordo judicial homologado em junho de 2006 determinou o pagamento de R$ 384 mil ao Fundo de Amparo ao Trabalhador por danos morais coletivos.
Fiscalização

Em maio de 2003, o grupo móvel de fiscalização libertou lavradores submetidos a trabalho degradante na fazenda Ponta de Pedra, que fica na zona rural de Marabá (PA).

Segundo o Ministério Público do Trabalho, além de manter empregados em condições contrárias às disposições de proteção do trabalho, o pecuarista também foi autuado por explorar mão-de-obra infantil, atrasar o pagamento de salários, deixar de anotar Carteira de Trabalho e não fornecer água potável e proteção para os empregados que preparavam área de pasto.

Número de trabalhadores libertados 28

Empregador: Inocêncio de Oliveira
Fazenda Caraíbas Valor O Tribunal Regional do Trabalho da 16ª região condenou o deputado federal Inocêncio de Oliveira (PR-PE) em segunda instância ao pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 300 mil. Fiscalização

O deputado Inocêncio de Oliveira era proprietário da fazenda Caraíbas, em Gonçalves Dias (MA), quando, em março de 2002, foram libertadas 54 pessoas. Os trabalhadores vinham de União, no Piauí.

Durante a fiscalização na fazenda, uma ordem que teria surgido do governo federal na época fez com que os policiais federais que acompanhavam o grupo móvel de fiscalização se retirassem da ação, deixando os auditores fiscais sem segurança. Houve pressões para que o caso fosse encoberto. O grupo móvel de fiscalização, no entanto, concluiu a ação e a libertação dos trabalhadores ganhou repercussão nacional.

Meses depois, o deputado vendeu a propriedade, mas ainda assim teve seu nome na "lista suja" do trabalho escravo entre novembro de 2003 e novembro de 2005.

Número de trabalhadores libertados 54

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