Cultura

Evento mostra produção cultural de quem vive longe do centro

O sarau da Cooperifa (Cooperativa de Cultura da Periferia) acontece todas às quartas-feiras, em Piraporinha, zona Sul da capital paulista. Em seu sexto ano de existência, projeto se tornou o ponto de encontro de artistas da periferia de São Paulo
Texto: Beatriz Camargo
Fotos: Alcimar Frazão
 01/06/2007

Numa das noites mais frias do ano em São Paulo (SP), com os termômetros marcando 10º C, cerca de 100 pessoas se reúnem para ouvir e declamar poemas e contos em um bar do bairro Piraporinha, extremo Sul da cidade. É o sarau da Cooperifa, a Cooperativa de Cultura da Periferia, que acontece todas as quartas-feiras no bar do Zé Batidão, mecenas do evento. "Zero grau na rua, quarenta graus no coração", define o poeta Sérgio Vaz, idealizador e coordenador da Cooperifa.

Bar do Zé Batidão, em Piraporinha, na zona Sul, sedia todas as quartas-feiras o Sarau da Cooperifa: o espaço é símbolo da resistência cultural da periferia, com poemas, contos e música

Dezenas de pessoas declamam textos seus ou de autores como Carlos Drummond de Andrade, Adoniran Barbosa e Dominguinhos. Todos os participantes são da periferia ou ligados a ela. "Aqui a temática é social", explica o poeta Sérgio. Alguns também falam de amor, de fantasias, mas sempre do ponto de vista do artista marginal. É o que une os "artistas-cidadãos", conceito difundido e internalizado na Cooperifa. "O artista não pode estar a serviço da vaidade, tem que contribuir com a comunidade, como faz o Ferréz, os Racionais MCs, o grupo de teatro Manicômios e outros", acredita.

Sérgio Vaz: "É preciso sugar da arte / um novo tipo de artista: o artista cidadão / Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, / mas também não compactua com a mediocridade / que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades" (Trecho de O Manifesto)
 
Helber Ladislau dialoga com o poema e "E agora, José?" com o seu "E agora, Drummond?": "Os mesmos senhores na terra sem dono, e agora, Drummond?"
 
Na poesia de Serginho, exército de caixinha de fósforos vence batalha contra soldados de chumbo. Seu primeiro livro, com Binho, será lançado dia 24 de junho no sarau do parceiro
 
"Se tiver com a mente e o coração abertos, pode haver a possibilidade de você se transformar e transformar a sua realidade", declama Wesley, espantando o frio com sua música

O projeto, que existe há seis anos, é ponto de encontro e resistência da produção cultural da periferia da cidade. "No começo a gente queria ocupar um lugar para trocar poesia e cultura", explica Sérgio. Mas o movimento, conta ele, cresceu e virou símbolo de luta contra a mediocridade. "Apesar do frio, os que estão aqui hoje com certeza estão se divertindo mais do que quem ficou em casa vendo novela", brinca Márcio Batista, poeta, professor e um dos organizadores do sarau.

Para Sérgio, o principal efeito da Cooperifa é a transformação na auto-estima das pessoas que vivem nas periferias. "Muita gente leu seu primeiro livro, viu a sua primeira peça de teatro ou voltou a estudar por causa da Cooperifa", diz ele. Os artistas da periferia, que antes sonhavam em se apresentar no "centro", agora se apresentam na comunidade e são reconhecidos por ela.

Da mesma forma, a Cooperifa muda a visão do centro, que descobriu uma produção cultural de qualidade onde não imaginava que ela existisse. "A periferia hoje é uma nação em ebulição", comemora o coordenador do sarau semanal. Ele acredita que a grande subversão é trazer o sarau, um evento típico da elite, para o subúrbio. "Se isto estivesse acontecendo na Av. Paulista, não tinha novidade nenhuma."

Sérgio define: periferia está na alma. "A periferia geográfica não é importante para nós. Tem muita gente do centro que se sente marginalizado. O centro também pode ser periferia", conclui, como um convite para todos que se identifiquem com a Cooperifa.

Catalisador
A iniciativa da Cooperativa fomenta a origem a outros saraus, em outras periferias: já há notícias de grupos e eventos como esse articulados em várias regiões da cidade. Os encontros potencializam a ação dos participantes, colocando-os em contato e fazendo idéias circularem e se expandirem.

"Isso aqui é um catalisador", brinca o poeta Binho, um dos assíduos freqüentadores do local. Às segundas-feiras, ele coordena o Sarau do Binho em seu próprio bar, no Campo Limpo, também na zona Sul. Durante as apresentações, diversos recados vindos dos participantes convidam os presentes a consumir cultura nos espaços que se multiplicam: o escritor Ferréz, autor de "Capão Pecado", era um dos presentes na última quarta-feira. Aproveitou para divulgar mais um Encontro de Literatura Marginal, no próximo domingo (3), no Capão Redondo.

Outro projeto da Cooperifa é levar o sarau para a sala de aula. Este ano, sete escolas públicas já foram visitadas, atingindo cerca de dois mil estudantes. Os poetas cooperados se apresentam aos adolescentes e falam sobre a importância da leitura na vida das pessoas. "A pessoa mal sabe o que é um escritor, acha que todos eles já morreram. Quando você chega lá e fala que é escritor da comunidade, é um choque", relata.

Conseqüência dessa ebulição, a Cooperifa tem lançado diversos nomes para fora do contexto da comunidade, sendo o próprio Sérgio um exemplo disso. No dia 3 de julho, ele lança seu quinto livro de poesias. Publicado pela Editora Global, será a primeira obra de uma coleção chamada Literatura Periférica. Já em 2004, foi publicada "O Rastilho da Pólvora", antologia poética reunindo 53 autores ligados à Cooperativa. Em 2006, saiu o CD "Sarau da Cooperifa", com autores declamando suas poesias.

Serginho Poeta, de 37 anos, é outro exemplo entre os artistas que estão conseguindo publicar suas produções individualmente, através de editoras ou de forma independente. Dono de uma sorveteria, ele sonha em viver da poesia e ministrando aulas, o que considera sua grande vocação. "Mesmo que não desse para viver da literatura, eu queria pagar a faculdade". Ex-motoboy, ele chegou a cursar a Escola de Sociologia e Política de São Paulo (ESP), mas trancou os estudos por falta de dinheiro. O que o motiva a freqüentar o sarau da Cooperifa?
O clima de cultura de resistência. O evento se amplia, há encontros com 400 pessoas, mas não perde esse foco.

Para setembro, a Cooperativa de Cultura da Periferia promete uma intervenção ousada, a "1ª Semana de Arte Moderna da Periferia". "Será a nossa vez de fazer a antropologia periférica, 85 anos depois: o teatro, a música e a poesia do centro, na nossa versão", conta Sérgio Vaz.

Mais informações sobre a Cooperifa e como comprar a produção de cooperados do Sarau, com Sérgio Vaz, pelo e-mail [email protected], ou por seu blog "colecionador de pedras". O bar do Zé Batidão fica na R. Bartolomeu dos Santos, 797 (tr. da Estrada do M'Boi Mirim, na altura da Igreja de Piraporinha, à direita). Os encontros acontecem todas as quartas-feiras, às 21h.

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