Numa das noites mais frias do ano em São Paulo (SP), com os termômetros marcando 10º C, cerca de 100 pessoas se reúnem para ouvir e declamar poemas e contos em um bar do bairro Piraporinha, extremo Sul da cidade. É o sarau da Cooperifa, a Cooperativa de Cultura da Periferia, que acontece todas as quartas-feiras no bar do Zé Batidão, mecenas do evento. "Zero grau na rua, quarenta graus no coração", define o poeta Sérgio Vaz, idealizador e coordenador da Cooperifa.
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Bar do Zé Batidão, em Piraporinha, na zona Sul, sedia todas as quartas-feiras o Sarau da Cooperifa: o espaço é símbolo da resistência cultural da periferia, com poemas, contos e música |
Dezenas de pessoas declamam textos seus ou de autores como Carlos Drummond de Andrade, Adoniran Barbosa e Dominguinhos. Todos os participantes são da periferia ou ligados a ela. "Aqui a temática é social", explica o poeta Sérgio. Alguns também falam de amor, de fantasias, mas sempre do ponto de vista do artista marginal. É o que une os "artistas-cidadãos", conceito difundido e internalizado na Cooperifa. "O artista não pode estar a serviço da vaidade, tem que contribuir com a comunidade, como faz o Ferréz, os Racionais MCs, o grupo de teatro Manicômios e outros", acredita.
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Sérgio Vaz: "É preciso sugar da arte / um novo tipo de artista: o artista cidadão / Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, / mas também não compactua com a mediocridade / que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades" (Trecho de O Manifesto) |
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Helber Ladislau dialoga com o poema e "E agora, José?" com o seu "E agora, Drummond?": "Os mesmos senhores na terra sem dono, e agora, Drummond?" |
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Na poesia de Serginho, exército de caixinha de fósforos vence batalha contra soldados de chumbo. Seu primeiro livro, com Binho, será lançado dia 24 de junho no sarau do parceiro |
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"Se tiver com a mente e o coração abertos, pode haver a possibilidade de você se transformar e transformar a sua realidade", declama Wesley, espantando o frio com sua música |
O projeto, que existe há seis anos, é ponto de encontro e resistência da produção cultural da periferia da cidade. "No começo a gente queria ocupar um lugar para trocar poesia e cultura", explica Sérgio. Mas o movimento, conta ele, cresceu e virou símbolo de luta contra a mediocridade. "Apesar do frio, os que estão aqui hoje com certeza estão se divertindo mais do que quem ficou em casa vendo novela", brinca Márcio Batista, poeta, professor e um dos organizadores do sarau.
Para Sérgio, o principal efeito da Cooperifa é a transformação na auto-estima das pessoas que vivem nas periferias. "Muita gente leu seu primeiro livro, viu a sua primeira peça de teatro ou voltou a estudar por causa da Cooperifa", diz ele. Os artistas da periferia, que antes sonhavam em se apresentar no "centro", agora se apresentam na comunidade e são reconhecidos por ela.
Da mesma forma, a Cooperifa muda a visão do centro, que descobriu uma produção cultural de qualidade onde não imaginava que ela existisse. "A periferia hoje é uma nação em ebulição", comemora o coordenador do sarau semanal. Ele acredita que a grande subversão é trazer o sarau, um evento típico da elite, para o subúrbio. "Se isto estivesse acontecendo na Av. Paulista, não tinha novidade nenhuma."
Sérgio define: periferia está na alma. "A periferia geográfica não é importante para nós. Tem muita gente do centro que se sente marginalizado. O centro também pode ser periferia", conclui, como um convite para todos que se identifiquem com a Cooperifa.
Catalisador
A iniciativa da Cooperativa fomenta a origem a outros saraus, em outras periferias: já há notícias de grupos e eventos como esse articulados em várias regiões da cidade. Os encontros potencializam a ação dos participantes, colocando-os em contato e fazendo idéias circularem e se expandirem.
"Isso aqui é um catalisador", brinca o poeta Binho, um dos assíduos freqüentadores do local. Às segundas-feiras, ele coordena o Sarau do Binho em seu próprio bar, no Campo Limpo, também na zona Sul. Durante as apresentações, diversos recados vindos dos participantes convidam os presentes a consumir cultura nos espaços que se multiplicam: o escritor Ferréz, autor de "Capão Pecado", era um dos presentes na última quarta-feira. Aproveitou para divulgar mais um Encontro de Literatura Marginal, no próximo domingo (3), no Capão Redondo.
Outro projeto da Cooperifa é levar o sarau para a sala de aula. Este ano, sete escolas públicas já foram visitadas, atingindo cerca de dois mil estudantes. Os poetas cooperados se apresentam aos adolescentes e falam sobre a importância da leitura na vida das pessoas. "A pessoa mal sabe o que é um escritor, acha que todos eles já morreram. Quando você chega lá e fala que é escritor da comunidade, é um choque", relata.
Conseqüência dessa ebulição, a Cooperifa tem lançado diversos nomes para fora do contexto da comunidade, sendo o próprio Sérgio um exemplo disso. No dia 3 de julho, ele lança seu quinto livro de poesias. Publicado pela Editora Global, será a primeira obra de uma coleção chamada Literatura Periférica. Já em 2004, foi publicada "O Rastilho da Pólvora", antologia poética reunindo 53 autores ligados à Cooperativa. Em 2006, saiu o CD "Sarau da Cooperifa", com autores declamando suas poesias.
Serginho Poeta, de 37 anos, é outro exemplo entre os artistas que estão conseguindo publicar suas produções individualmente, através de editoras ou de forma independente. Dono de uma sorveteria, ele sonha em viver da poesia e ministrando aulas, o que considera sua grande vocação. "Mesmo que não desse para viver da literatura, eu queria pagar a faculdade". Ex-motoboy, ele chegou a cursar a Escola de Sociologia e Política de São Paulo (ESP), mas trancou os estudos por falta de dinheiro. O que o motiva a freqüentar o sarau da Cooperifa?
O clima de cultura de resistência. O evento se amplia, há encontros com 400 pessoas, mas não perde esse foco.
Para setembro, a Cooperativa de Cultura da Periferia promete uma intervenção ousada, a "1ª Semana de Arte Moderna da Periferia". "Será a nossa vez de fazer a antropologia periférica, 85 anos depois: o teatro, a música e a poesia do centro, na nossa versão", conta Sérgio Vaz.
Mais informações sobre a Cooperifa e como comprar a produção de cooperados do Sarau, com Sérgio Vaz, pelo e-mail [email protected], ou por seu blog "colecionador de pedras". O bar do Zé Batidão fica na R. Bartolomeu dos Santos, 797 (tr. da Estrada do M'Boi Mirim, na altura da Igreja de Piraporinha, à direita). Os encontros acontecem todas as quartas-feiras, às 21h.