Especial Mangue Beat II

Pop com maracatu

Reunião singular de gêneros musicais como rap, soul, ciranda e maracatu, Mangue Beat surge no início dos anos 90 em Recife unindo o moderno ao tradicional
Texto
 25/07/2007
Meninos do projeto Daruê Malungo, de onde saiu parte do Nação Zumbi

Em meados de 1980, Chico Science integrava um grupo de break (dança de rua) chamado Legião Hip Hop, que se apresentava nas rodas semanais do Parque 13 de Maio, no centro do Recife. Como as pontes que interligam os bairros da capital pernambucana, o movimento hip hop é uma verdadeira teia de elos entre as diversas vertentes da música negra. Com a ajuda do sampler, equipamento que mistura sons para dar cadência às letras de rap, ali podem ser ouvidos todos os frutos da "grande árvore" africana: soul, funk, blues, jazz…

Nessa mesma época, nas proximidades do Mercado São José, nas feiras e praças, já marcava presença uma espécie de rap nacional, muito anterior à chegada do hip hop. Era a embolada, em que normalmente as duplas cantam versos improvisados ou decorados, com acompanhamento de pandeiro em compasso binário. Science com certeza não ignorava isso.

Após uma viagem que fez a São Paulo em 1988, da qual voltou ainda mais empolgado com o movimento hip hop, Malungo, como era chamado pelos amigos, montou a banda de rap Orla Orbe e engajou-se na organização de festivais desse gênero. Logo, porém, passou para o rock, à frente do grupo Loustal – nome inspirado num gibi francês que Science colecionava -, que já contava com a participação de dois dos futuros integrantes da Nação Zumbi.

São muitas as histórias de grupos famosos que surgiram por mera casualidade, como aconteceu, por exemplo, com a banda norte-americana The Doors, formada a partir do reencontro, numa praia, do vocalista Jim Morrison com o tecladista Ray Manzarek, ex-colega de faculdade. No caso do Mangue Beat, também ocorreram encontros decisivos. O primeiro se deu quando Science e Gilmar Bola Oito, então funcionários da Emprel – empresa de processamento de dados da prefeitura do Recife -, reconheceram a afinidade musical que os unia.

Dançarina Vilma Carijós e o marido Gilson "Meia-Noite" coordenam projeto social que trabalha com ritmos e danças populares

Bola Oito, morador do bairro de Peixinhos, convidou Science para assistir ao ensaio do Lamento Negro, bloco de afoxé, samba-reggae e algo na linha do Olodum, grupo baiano que na época fazia muito sucesso e chegou até a gravar com Paul Simon em Nova York. O Lamento tinha nascido na sede do Daruê Malungo ("companheiro de luta"), um projeto social encabeçado por Mestre Gilson "Meia-Noite" e sua esposa, Vilma Carijós, ex-integrantes do Balé Popular do Recife. Desde 1984, o Daruê já vinha trabalhando com ritmos e danças populares com a comunidade do bairro Chão de Estrelas.

A experiência de Maureliano Ribeiro da Silva, o Mau, foi fundamental para Chico Science alcançar a mistura ideal entre o pop e o maracatu

Durante o ensaio do Lamento Negro, Science teve a idéia de reunir esse bloco no mesmo palco com sua banda, a Loustal. Para divulgar essa experiência, ele usou expressões como "a maior lama, o maior mangue!", porque o Lamento era de Peixinhos, e o Loustal, de Rio Doce, duas áreas de manguezal. Mas Malungo ainda não estava satisfeito, faltava algo. Ele não queria a "levada" do samba-reggae, mas sim o timbre da alfaia (tipo de tambor com pele de animal) do maracatu, um folguedo característico da cultura pernambucana. Para fazer essa adaptação (do Lamento ao maracatu, e de ambos ao pop), foi preciso a química de um outro cientista: Maureliano Ribeiro da Silva (o Mau), mestre do Lamento Negro, ex-professor do Daruê Malungo e fabricante de instrumentos. Para chegar à fórmula do som idealizado por Science, Mau lançou mão da experiência adquirida durante os anos 1980 nos bailes da discoteca de Peixinhos, onde ouvia o funk de James Brown e trilhas sonoras de novelas: "Peguei a célula de um ataque de trompete, de uma batida da bateria e de uma batida de maracatu. Passei do naipe de metais para os tambores", explica.

Como o Lamento era um grupo muito grande, foi preciso selecionar alguns membros para formar com a Loustal o grupo Chico Science & Nação Zumbi. Vilma Carijós, professora de dança, conta que ali no Daruê eles gravaram a primeira fita demo. O resultado de toda essa fusão pode ser ouvido no CD de estréia da banda, gravado em 1994, intitulado Da Lama ao Caos.

Talvez pela singular reunião de gêneros musicais (rap, soul, ciranda, maracatu), alguém tenha interpretado o termo original Manguebit (de bit – binary digit -, unidade de medida de informação dos sistemas digitais) como Mangue Beat (de beat, "batida", em inglês). A palavra apareceu pela primeira vez no título da faixa Manguebit, gravada no CD Samba Esquema Noise (1994), do Mundo Livre S/A. Algumas frases dessa música, como "Eletricidade alimenta tanto quanto oxigênio", sugeriam uma ligação dos "caranguejos" com o mundo tecnológico. Embora as diversas bandas do movimento não tenham uma batida padronizada, a forma Mangue Beat acabou prevalecendo.

Release-manifesto

Com o texto "Caranguejos com cérebro" Fred Zero Quatro lançou o Mangue Beat nacionalmente

Pode-se afirmar que o segundo encontro fundamental para a concepção do Mangue Beat foi o que ocorreu entre Chico Science e Fred Rodrigues Montenegro (o Fred Zero Quatro, da banda Mundo Livre S/A). Quando estudava comunicação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Zero Quatro idealizou, com alguns colegas, o projeto do "Gueto", um jornal destinado a dar visibilidade às "subculturas da periferia". Certo dia, em 1986, ele foi cobrir uma roda de break no centro da cidade e lá conheceu Chico Science. Anos mais tarde, já na década de 1990, os dois organizariam o festival Viagem ao Centro do Mangue, que atraiu a atenção dos jovens para o novo conceito. Então, com seu tino jornalístico, Zero Quatro decidiu escrever o famoso release que divulgou a movimentação cultural que crescia na cidade.

Até que o texto chegasse à mídia, no entanto, houve uma série de eventos que, embora à primeira vista parecessem desfavoráveis, acabaram propiciando as circunstâncias que levaram Zero Quatro a escrevê-lo. Depois de ser demitido de um canal de televisão, ele foi contratado por outra emissora, mas, em seu primeiro dia de trabalho, sofreu um acidente de carro e te
ve de ficar três dias afastado, em licença médica. Durante esse período, acabou desistindo do emprego e fez contato com uma produtora de Olinda, que, como primeira tarefa, lhe pediu que escrevesse um roteiro para as imagens já gravadas de um documentário. "Era sobre os manguezais de Pernambuco. Tive de pesquisar muito, reunindo inclusive informações de cunho científico. Foi uma grande coincidência!", lembra ele.

Escultura de metal em Recife reverencia os caranguejos do Mangue Beat

Feito o serviço, era hora de investir na cena cultural do Mangue Beat. Com tempo livre e munido de aparato teórico, Zero Quatro foi além dos releases burocráticos ao escrever "Caranguejos com cérebro". Cerca de dois meses depois, uma equipe da Music Television (MTV) brasileira – que tinha ido ao Recife fazer uma reportagem sobre expoentes culturais e tomara conhecimento do release – aproveitou para gravar uma entrevista com o pessoal do Mangue Beat, com imagens dos grupos Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi. "Passaram-se os meses de outubro, novembro, dezembro… e nada de a matéria ir ao ar. A gente pensou que havia sido engavetada ou não tinham aprovado a pauta. Em janeiro de 1993, durante a transmissão exclusiva da MTV do show do Nirvana no Hollywood Rock, soltaram a matéria no intervalo." Era o que faltava para projetar nacionalmente a produção musical dos caranguejos , cuja consagração viria com o primeiro festival Abril pro Rock, em 1993.

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