Especial Mangue Beat III

Revolução musical

Movimento do Mangue Beat enriqueceu musicalidade das bandas tradicionais, deu projeção a novos artistas populares e contribuiu para mudar a vida dos jovens da periferia em Pernambuco
Texto
 26/07/2007
Ariano Suassuna é contrário à influência musical estrangeira, mas reconhece a importância do Mangue Beat

Desde que a antena parabólica dos mangueboys sintonizou a cultura pop mundial, Recife não foi mais a mesma. Quando atingiu aquele rio, a água do mar retornou diferente ao oceano, deixando, no entanto, sua marca salina no estuário.

A transformação provocada pelo Mangue Beat – talvez até sem intenção – atingiu os baluartes da cultura tradicional. Já nos anos 1960, com o advento do Tropicalismo, a influência estrangeira havia preocupado os componentes do que viria a ser o Movimento Armorial, liderado pelo escritor Ariano Suassuna. Fundado em outubro de 1970, sob a tese de preservação da arte genuína brasileira, esse grupo pesquisava a herança colonial deixada na cultura popular sertaneja, que possivelmente não teria sofrido alterações devido à distância dos meios de comunicação. Ou, segundo a interpretação do professor Herom Vargas, da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (Imes), buscava retomar elementos culturais mantidos quase inertes no sertão árido do nordeste, provenientes da península Ibérica, com traços cristãos e mouros, e das culturas indígenas. Depois do garimpo, os armoriais executariam tal música, só que de maneira erudita, adequando-a aos grandes salões.

Para o pesquisador Herom Vargas, a mistura de diferentes culturas é o ponto crucial na formação da música brasileira

Vargas é autor da tese de doutorado "Chico Science & Nação Zumbi: Um estudo sobre o hibridismo e as relações entre música popular, mídia e cultura" (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2003), publicada recentemente em livro pela editora Ateliê. O pesquisador procurou demonstrar que a dinâmica híbrida, longe de ser um desvio, tal como é tratada pelos tradicionalistas, é o ponto crucial na formação de gêneros da música popular latino-americana: "Os armoriais revelam uma visão conservadora. Como é possível manter uma essência, algo que seria puro, se aqui não há pureza alguma? A América Latina historicamente é lugar de cruzamentos: vários tipos de africanos e de europeus vieram para cá. O português e o espanhol já são ocidentais misturados com árabe, chegaram aqui e encontraram mil indígenas diferentes", comenta Vargas.

A polêmica conceitual entre mangueboys e armoriais virou até letra de música, composta por Zero Quatro e gravada no CD Carnaval na Obra, do Mundo Livre S/A. No refrão, ele indaga, após mencionar a presença da matriz africana em diversos estilos musicais do novo continente: "Mas é o Ariano que ignora o africano ou é o africano que ignora o Ariano?" Zero Quatro foi aluno de Suassuna na faculdade de comunicação. "Ele tem um humor muito aguçado. Na verdade, eu adorava as aulas dele. Mas como analista cultural… Nunca conseguiu engolir Tom Jobim, que para ele é um colonizado pela cultura americana", comenta o vocalista do Mundo Livre S/A. Por sua vez, Ariano Suassuna, atual secretário de Cultura de Pernambuco, conta que, na época em que soube do Mangue Beat, uma jornalista perguntou-lhe se receberia Chico Science, ao que respondeu afirmativamente. "Chico veio me conhecer e disse: ‘Mestre [era assim que ele me chamava], eu sou armorial‘. Então eu disse a ele: ‘Mas por que se chama Chico Science? Mude seu nome para Chico Ciência que subo com você no palco‘. Evidentemente, quando falei isso estava simbolizando duas coisas: achava que na parte Chico estava o que ele tinha de maracatu rural, e na Science o que tinha de rock, que não gosto. Ele achou graça e fizemos uma grande amizade."

Parceria com grupos ligados ao Mangue Beat rendeu boas oportunidades para o Maracatu Estrela de Ouro

Apesar de continuar discordando da posição de Science, Suassuna reconhece: "A juventude classe média, que talvez nunca prestasse atenção ao maracatu rural, passou a dar importância a ele". Mais que isso. O intercâmbio entre o Mangue Beat e artistas da cultura popular pernambucana mostra ainda hoje muitos reflexos positivos. Se por um lado as bandas tiveram sua musicalidade enriquecida, por outro os artistas populares ganharam uma projeção nunca antes vista. O presidente do Maracatu Estrela de Ouro, de Aliança (PE), José Lourenço da Silva, menciona com satisfação as parcerias com grupos ligados ao Mangue Beat, que alcançaram grande repercussão, redundando inclusive em convites para turnês internacionais, além do contato com pesquisadores de vários lugares do mundo, que vieram procurá-los.

Sem tomar o poder
Ao Mangue Beat é atribuída uma série de conquistas na produção cultural pernambucana. A lama da rapaziada partiu da música e invadiu o cinema, o teatro, a moda, a literatura, enfim, catalisou expressões artísticas em quase todos os campos. O marco do casamento com a sétima arte ocorreu na trilha sonora do longa-metragem Baile Perfumado (1997), dirigido por Lírio Ferreira e Paulo Caldas, no qual atuaram inclusive alguns músicos do movimento.

Fred Zero Quatro associa sua experiência vivida durante os anos 1990 ao livro Mudar o Mundo sem Tomar o Poder, de John Holloway. "A gente não precisou pegar em armas, constituir um partido, montar uma guerrilha ou frente política, nem fazer um levante de rua, nem passeata, nem nada. Num sentido cultural, porém, podemos dizer que contribuímos para mudar bastante a qualidade de vida do jovem daqui", avalia o músico. Com o passar do tempo, os órgãos de cultura locais foram vendo cada vez mais a juventude do Mangue reivindicar palcos anteriormente vazios ou "atrofiados".

Entretanto, a ideologia, no Mangue Beat, assumiu conotações diferentes, segundo as características de cada banda. As composições de Zero Quatro, por exemplo, aliam temas suaves do cotidiano – como amor e futebol – à visão crítica da conjuntura brasileira e internacional. "Há uma aparente contradição entre manter uma postura de resistência ao imperialismo, aos produtos das grandes corporações do entretenimento, e ficar isolado num gueto, algo como ‘macumba para turista‘. A gente faz música pop, só que rejeita a idéia de que ela tem necessariamente de ser pasteurizada, alienada, sem escrúpulos. Existe público para se fazer um som jovem, de
consumo, urbano, com forte ligação com a cultura local e ao mesmo tempo manter um certo grau de inteligência, de provocação, de contestação ao pensamento único globalizado", explica Zero Quatro.

Segundo Paulo Marcondes Soares, professor do programa de pós-graduação em sociologia da UFPE, a arte pode ser política mesmo sem elaborar um discurso explícito. "Essa relação é mais forte quando a arte se manifesta por uma constante experimentação da linguagem, lidando com elementos que, em certa medida, rompem as características do instituído. Dessa maneira, ela é mais vigorosamente política, revolucionária até, que aquela que fala de maneira prosaica em nome de uma política." Soares, que também é compositor, acompanha a evolução musical recifense desde os anos 1980. Em sua opinião, o Mangue Beat gerou na cidade um público para a produção artística local.

Com acesso à mídia, os mangueboys ajudaram também a divulgar grupos que a princípio permaneciam isolados em suas comunidades. Dessa maneira, passaram a fazer parte do cenário cultural local, por exemplo, algumas bandas do Alto José Pinho, bairro da periferia do Recife em que desde o final dos anos 1980 já estava em atividade uma cooperativa de músicos.

Cannibal, do grupo de punk rock Devotos, afirma que a nova música ajudou a elevar a auto-estima dos jovens suburbanos

Marconi de Souza Santos, o Cannibal, do grupo de punk rock Devotos, via o Mangue Beat com algumas ressalvas, até que percebeu a plataforma comum no ideal de elevar a auto-estima dos jovens suburbanos. A atuação conjunta dos membros das bandas Devotos, Faces do Subúrbio, Matalanamão, entre outras, resultou na criação da Rádio Comunitária Alto-Falante, registrada em 2002, assim como na promoção de eventos sociais, coletâneas, shows e oficinas. De certa forma, a comunidade foi transferida das páginas policiais para a agenda cultural da cidade. Hoje, conta até com um dos palcos oficiais do carnaval do Recife, o Pólo Mangue do Morro. "A gente conseguiu o que queria: mudar um quadro social através das bandas", afirma Cannibal.

Evolução da cena
Notam-se, ainda, desencontros conceituais quanto ao Mangue Beat. Há quem continue a defini-lo como mescla de pop com música regional; ou quem o limite às atividades das bandas Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, por continuarem em atividade; ou ainda aqueles que atestem seu fim. Mesmo a palavra "movimento" não é muito aceita, devido à falta de uma plataforma reivindicativa comum aos possíveis membros.

Atualmente, privilegia-se o termo "cena", usado de forma mais abrangente: "O Mangue é apenas uma parte. Antes a rapaziada achava que ele era tudo, mas agora percebe que a ‘cena‘ é o montante, o todo", explica Aílton da Silva, o Pácua, que participou dos primeiros projetos com Chico Science, mas logo montou sua própria banda, a Via Sat, que está no 14º ano, com dois CDs lançados (o mais recente intitulado Organic Hi-tec Jungle) e participação em várias coletâneas. É possível, nesse sentido, comparar o Mangue Beat ao estilo baiano da axé music, cujo rótulo identifica diferentes bandas num mesmo contexto. Como lembra Pácua, o próprio Chico Science dizia: "O Mangue é só um cartão, uma marca".

Para o músico Charles Teony, a "cena" do Mangue propiciou diversidade e pluralidade à musica produzida em Recife

Numa mesa de bar do Mercado do Varadouro – uma das portas de entrada da cidade histórica de Olinda -, ao lado de Pácua estão Felix Cavalcanti, o Fekinho, vocalista da banda Etnia, e Charles Teony. "A cena hoje tem um conceito muito mais firme, está mais madura. As pessoas sabem o que fazem e estão cobrando de si mesmas. Quem faz funk com maracatu tem de conhecer tanto de um quanto do outro, porque é questionado por todo mundo", comenta Teony, vocalista do grupo que leva seu nome. Recém-chegado da turnê do CD Tambor do Mundo, ele parece animado com o mercado internacional. Diz que o carnaval do Recife tem hoje a mesma concepção de um festival europeu: diversidade e pluralidade, por conta das bandas brasileiras que tocaram no exterior e perceberam a possibilidade de apresentar de tudo, "de heavy metal a salsa, jazz, rock, música eletrônica, punk".

Fekinho está gravando Um Novo Momento, o segundo CD do Etnia, banda formada em 1995. Ele, Pácua, Teony e seus grupos mantêm um certo espírito cooperativista, típico da "cena" pernambucana. Fekinho e Pácua, por exemplo, colaboram na montagem da Associação de Música Urbana (Amur), destinada a incentivar a cadeia produtiva da música independente. Pácua também dá aulas de capoeira no projeto social idealizado por ele, o Instituto Via Sat Zambo, em Peixinhos. "Se você não ajudar a favela, sua música vai acabar, porque a favela é a fonte. Se a favela acabar em termos de música, você não vai beber mais em canto nenhum", sentencia ele.

"O Mangue nasceu dos mais necessitados, e se a gente não continuar dando uma força para a ‘quebrada‘, como diria a galera, ‘a caveira do Chico lá embaixo vai ficar se remoendo‘, porque, mais do que ninguém, ele falava em estender a mão ao próximo", conclui Fekinho.

Vôo interrompido
No dia 2 de fevereiro de 1997, o carro guiado por Chico Science se chocou contra um poste, próximo ao Complexo do Salgadinho – região de divisa entre Recife e Olinda -, interrompendo bruscamente sua vida. Aos 30 anos de idade, com dois CDs lançados e três turnês internacionais com a banda Nação Zumbi, ele havia apenas alçado o vôo que certamente o teria levado muito mais longe.

No aniversário de dez anos de sua morte, quase toda a mídia do Recife e de Olinda lembrou a trajetória do artista, abordando principalmente sua atuação à frente do movimento Mangue Beat.

As homenagens a Chico Science são constantes. Ele é formalmente lembrado em nomes de parque, túnel e num shopping do Recife; ganhou estátua e pinturas de grafite; é tema de livros e teses, e até o título de uma coletânea de bandas portuguesas, "Tejo Beat", foi inspirado no movimento brasileiro.

Chico Science ia além da palavra, preocupando-se muito também com o desempenho no palco; em suma, buscava a concepção global do artista. Segundo amigos e parentes, era do tipo obstinado, que saía com a fita demo na mão para divulgar o trabalho da banda. Ao mesmo tempo, mostrava-se exigente quanto à qualidade de seu trabalho, a po
nto de, nas gravações, repetir frases musicais quantas vezes fosse necessário. Unia a isso o bom humor de quem não se arrependia de ter ficado em casa dormindo no dia do vestibular.

Na atual cena pernambucana, formada em sua maioria por bandas jovens, o legado de Chico Science se revela na valorização de traços e imagens locais, que gerou uma espécie de "estética mangue". Muitos artistas, por influência do Mangue Beat, perceberam a possibilidade de aliar manifestações culturais populares à música pop internacional, sem abrir mão de uma visão crítica da estrutura social.

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