Comunidade do Jardim Scaff aguarda visita do juiz |
Gersino Donizete, juiz da 7ª Vara Cível da Comarca de São Bernardo (SP), saiu do seu gabinete nesta segunda-feira (13) para conhecer o Jardim Scaff, comunidade pobre na periferia de São Bernardo do Campo (SP). Localizada em área de manancial da Bacia Hidrográfica da Billings, ela abriga mais de mil pessoas que, desde 1997, enfrentam a perspectiva de serem despejadas devido a uma ação de reintegração de posse em trâmite no Fórum da cidade.
Em maio deste ano, a Justiça chegou a determinar a reintegração do terreno em favor da família Scaff, que reclama sua posse. Mas a intervenção de entidades de apoio à comunidade local conseguiu adiar a execução da medida e articular uma visita de Gersino, o juiz responsável pelo caso, à comunidade. Após uma vistoria na favela – onde os moradores vivem em condições precárias, com esgoto a céu aberto e ligação clandestina de energia elétrica – ele decidiu suspender por tempo indeterminado a reintegração de posse, até que haja algum entendimento entre proprietário, moradores e poder público capaz de equacionar os interesses das partes. "Eu não posso violar nem o direito à propriedade e nem o direito de moradia dessas pessoas", diz ele.
A área é requerida por parentes do falecido George Celim Scaff, proprietário original das terras em litígio. Alguns dos moradores, no entanto, questionam a ação amparados em documentos de posse de lotes localizados no perímetro do terreno – que teriam sido vendidos, segundo eles, pelos próprios autores do processo. A região faz parte da área de influência do trecho sul do Rodoanel, obra de interligação viária entre as principais rodovias que atravessam a região metropolitana de São Paulo. "A perspectiva de valorização imobiliária é o que motiva essa ação", acredita Humberto Rocha, presidente da Central de Atendimento aos Moradores e Mutuários do Estado de São Paulo (Cammesp).
Além das pendências relacionadas à posse da terra, outro complicador para a permanência dos moradores é a legislação de proteção aos mananciais, fundamentais para evitar prejuízos aos recursos hídricos que abastecem os municípios paulistanos. Para construir casas nesses locais, é exigido licenciamento ambiental.
E foi justamente a falta de adequação ambiental que motivou o despejo dos moradores do Jardim Falcão, área próxima ao Jardim Scaff, também no entorno da Billings, desocupada por força policial há nove anos. Na ocasião, cerca de 350 casas foram demolidas, num episódio marcado por confrontos entre a polícia e a comunidade local. Motivada por uma ação do Ministério Público, a desocupação foi feita em nome da recuperação ambiental da área e do respeito à legislação de mananciais.
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Falta de regularização ambiental e fundiária acarreta em transtornos para moradores de mananciais |
Até hoje os ex-moradores do Jardim Falcão buscam na Justiça reparação por danos morais e econômicos. Ludibriados por loteadores que comercializaram a área de forma irregular, eles foram desalojados sem indenização. "Grande parte dessas pessoas continua morando na região, em situação precária e em áreas de mananciais", revela Sônia Maria dos Santos, coordenadora geral da Associação de Luta dos Proprietários do Jardim Falcão. Humberto, da Cammesp, afirma, por sua vez, que a ação teve resultados inócuos no que diz respeito ao meio ambiente. "É só ir lá para ver que a área hoje é um verdadeiro lixão, encontra-se em total abandono", atesta.
As histórias dos jardins Scaff e Falcão são apenas dois exemplos do nó social, ambiental e fundiário fomentado pela ação de loteadores criminosos e pela falta de atuação do poder público que se tornaram as ocupações em mananciais da região metropolitana de São Paulo. Somente nas bacias hidrográficas da Billings e Guarapiranga, responsáveis pelo abastecimento de cinco milhões de pessoas segundo o governo estadual, vivem pelo menos 1,7 milhões de habitantes, a maioria em situação precária e irregular. Até 2021, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a expansão populacional pode trazer a essas duas áreas mais 700 mil novos moradores.
Marco legal
Para Maria Lucia Martins, do Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), o intenso processo de urbanização, aliado ao esgotamento da oferta de lotes precários e de baixo custo a partir de meados da década de 1970, acabou empurrando a população de baixa renda justamente para as áreas ambientalmente mais frágeis, desprezadas pelo mercado formal. "É um quadro extremamente delicado devido às dimensões da exclusão habitacional e a incapacidade do Estado em enfrentá-la", diz ela em texto apresentado no Seminário de Regularização Fundiária de São Paulo, realizado em 2003.
Em 1997, foi sancionada a Lei Estadual nº. 9.866, atualizando as normas para a proteção e recuperação dos mananciais nas bacias hidrográficas de São Paulo. Ela determina a necessidade de aprovação, por um órgão gestor participativo representando cada bacia, de um plano de desenvolvimento com ações prioritárias, incluindo o zoneamento das áreas. Grande parte bacias hidrográficas do estado ainda não aprovou esse importante instrumento de gestão.
"Durante anos direcionou-se o desenvolvimento econômico para áreas próximas aos mananciais, sem que houvesse políticas habitacionais acompanhando", ressalta Marrusia Wathely, coordenadora do Programa de Mananciais do Instituto Socioambiental (ISA). A entidade tem assento, representando as organizações da sociedade civil, no Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, que engloba, entre entre outras bacias, Billings, Cantareira e Guarapiranga. "Muitas vezes são as próprias políticas públicas que incentivam esse tipo de ocupação", reflete. Atualmente, a implementação do Rodoanel já traz indícios nesse sentido em municípios como, por exemplo, Osasco.
O Projeto Mananciai
s, coordenado pelo governo estadual e em fase de preparação, é atualmente a mais ambiciosa aposta política visando trazer ordenamento e melhorias à condição de vida nas regiões de mananciais. Englobando recursos previstos do Banco Mundial e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), pretende destinar mais de US$ 1 bilhão em ações para recuperação ambiental e urbana. Segundo Ricardo Araújo, coordenador do programa, a meta é que 45 mil pessoas sejam diretamente beneficiadas por obras de infra-estrutura e que 6,6 mil unidades habitacionais sejam construídas.
De acordo com Ricardo, as iniciativas visam consolidar as ocupações em bases socialmente e ecologicamente mais qualificadas, sendo a remoção de populações – prevista, segundo ele, para cerca de 2,5 mil pessoas – figura de exceção do Projeto. "Pesquisas mostram que população deseja permanecer no local, que é onde estão seus laços sociais, mas não é possível urbanizar sem tirar gente. Em geral, entre 10% a 15% dos moradores precisam ser realocados em ações desse tipo", diz. "Nas margens dos reservatórios que abastecem à população, também é necessário garantir que não haja ocupação."
Marrusia lembra, contudo, que as ocupações urbanas não são as únicas que pressionam a sustentabilidade dos recursos hídricos. A agricultura, a extração e o reflorestamento são outras fontes de degradação impactantes nesses locais, que também precisam ser controladas. Em 2005, o ISA realizou um diagnóstico na Bacia do Guarapiranga. Os resultados indicaram que a ocupação urbana ocupa 17% da área pesquisada, ante 42% de ocupação relacionada a outros usos – como, por exemplo, mineração.