Justiça do Trabalho

Juiz aposta em multas pesadas no combate ao trabalho escravo

Para João Humberto Cesário, da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia (MT), que condenou fazendeiro da região à multa recorde de R$ 1 milhão por danos morais coletivos, papel da Justiça é também “pedagógico”
Por Beatriz Camargo
 07/11/2007

 
João Humberto aposta em uma justiça próxima da sociedade, para além dos tribunais (Foto: Divulgação Anamatra)

Desde maio de 2006, os trabalhadores do Nordeste do Mato Grosso têm um aliado na Justiça do Trabalho: o juiz João Humberto Cesário, titular da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia (MT). A jurisdição que ele comanda abarca do meio do estado até a divisão com os estados Pará e Tocantins – área de fronteira agrícola do agronegócio, que pressiona a Floresta Amazônica com a expansão de plantações de soja e pastos para o gado."Essa região entre o Pará, Mato Grosso e Tocantins é conhecida como o Vale dos Esquecidos porque não existia a presença de poder público", define João Humberto. Mas, na opinião dele, isso começou a mudar, com a chegada da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho (MPT) ao município, em 2005. "Ainda falta uma DRT [Delegacia Regional do Trabalho] que a gente está querendo trazer, mas não existe mais essa sensação de impunidade que a ausência do poder público traz."

Em dezembro de 2006, o juiz condenou o fazendeiro Gilberto Resende a pagar R$ 1 milhão ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) num processo de danos morais coletivos por manter 16 pessoas em regime de escravidão na Fazenda Inajá, em São José do Xingu (MT). Decisões como essa, defende ele, são uma boa maneira de coibir esse crime. "Um dos elementos de combate [à escravidão] é punir pela lógica econômica. Porque o produtor se utiliza do trabalho escravo com o objetivo de obter o lucro. Se você pune com multas pesadas, acaba não valendo mais a pena economicamente ele usar esse tipo de mão-de-obra. Então acredito que tem um papel pedagógico nesse sentido."

A decisão recordista na fixação de indenizações por danos morais causou polêmica na região. Segundo o magistrado, a repercussão foi principalmente pela situação encontrada na fazenda, de tortura física aos trabalhadores: além de não receberem salário e terem jornada exaustiva, os libertados pela fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) eram ameaçados e espancados por funcionários armados. "Na época, muita gente divulgou o que aconteceu dizendo que não era um caso de trabalho análogo à escravidão, mas que se assemelhava muito à escravidão antiga", lembra.

O exame de corpo de delito de uma das pessoas que fugiu da Fazenda Inajá mostrou 29 escoriações nas costas e pescoço, entre outros ferimentos. João Humberto completa que houve relatos de espancamento com golpes de corrente, e que um trabalhador foi enforcado para servir de exemplo aos outros. "Quer dizer, além da situação de não pagamento de salários e condições degradantes, ainda tinha essa crueldade."

O titular da Vara de São Féliz do Araguaia avalia que o impacto da indenização milionária entre os fazendeiros locais foi positivo e pedagógico. "Ameaças veladas sempre existem, mas não quero tratar disso. O que vejo é uma mudança de postura, que considero um avanço." As associações patronais têm procurado o juiz para ministrar palestras. "Essas notícias de condenação estão gerando uma busca por melhora por parte dos produtores. Eles estão interessados, querem saber o que é trabalho escravo e como devem fazer para estarem de acordo com a legislação".

Papel do Judiciário
Na definição de João Humberto Cesário, além de punir o empregador com multas, o juiz deve garantir que o ambiente de trabalho ofereça boas condições ao trabalhador – o que é chamado de obrigações de fazer. "Precisamos garantir que o empregador faça as modificações necessárias no ambiente de trabalho e se enquadre à lei." Uma terceira ferramenta da Justiça do Trabalho é a inscrição dos empregadores na "lista suja", cadastro do MTE que relaciona àqueles que utilizaram mão-de-obra escrava, após um processo administrativo. Os inscritos na "lista suja" ficam impedidos de conseguir financiamento público ou de obter empréstimos em diversos bancos. "Esta é mais uma sanção pela lógica econômica", frisa o juiz. 

Uma última vertente de ação seria o processo criminal, hoje julgado pela Justiça Federal. "Já fazemos julgamentos na área trabalhista, na área cível e do direito administrativo, que são os procedimentos para a inclusão na lista suja. Então, não faz sentido que um outro poder fique com a parte criminal. Seria mais lógico que o crime de trabalho escravo corresse também no âmbito da Justiça do Trabalho. Eles andariam em processos diferentes, mas todos na Justiça trabalhista", explica.

Para ele, a Justiça Federal é muito lenta, enquanto a Justiça do Trabalho tem mais rapidez. "Tanto não é benéfico [que o julgamento seja pela Justiça Federal] que não temos notícia de condenação pelo crime de trabalho escravo." O juiz sublinha, ainda, que a Justiça Federal não está "capilarizada" no interior dos estados, ficando mais distante da realidade local.

Outro argumento para mudar a competência de crimes de trabalho escravo é a diferença de formação nas carreiras. "Tanto o juiz do Trabalho quanto o procurador do Trabalho têm uma formação que sensibiliza para essa questão. O nosso foco é justamente esse: a promoção da dignidade no trabalho humano. Os magistrados e procuradores da Justiça Federal têm uma formação em outro sentido. Para nós, a erradicação do trabalho escravo é uma prioridade; para eles. não."

Proximidade
Para erradicar a escravidão, João Humberto defende uma "
nova Justiça do Trabalho", mais próxima da sociedade, com magistrados agindo dentro e fora dos tribunais. "São vários os fatores que levam ao trabalho escravo, um deles é a falta de informação. Então, é também função da Justiça conscientizar o trabalhador de seus direitos." Isso se traduz, por exemplo em cartilhas e palestras – que o juiz tem ministrado em sindicatos, associações patronais e outras entidades da sociedade civil. "Mesmo nos autos [julgamentos], é possível interagir bastante e exercer uma função pedagógica. É possível aprender muito com as pessoas durante os autos."

João Humberto vê melhora na situação do trabalho escravo no nordeste matogrossense, mas critica a falta de fiscalização para as denúncias. "Eu aposto que no interior do estado tem muito caso de trabalho escravo que a gente nem fica sabendo. Aqui na região tem um bom sistema de captação de denúncias, o pessoal da CPT [Comissão Pastoral da Terra] é muito competente e comprometido. O principal problema é a falta de estrutura da fiscalização", considera. "O MTE está fazendo um bom trabalho, mas está completamente desaparelhado para dar conta de todas as ações."

Ele pontua que ainda restam muitas denúncias sem atendimento e outras que, pela demora da apuração, acabam sendo desperdiçadas. "O trabalho escravo é sazonal. Se demora muito para a fiscalização ir verificar, ele muda de lugar."

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