Houve um tempo em que as terras do Araguaia-Tocantins eram livres, os rios formavam as principais vias de circulação e os povos indígenas compunham a diversidade social e ambiental do lugar. Eram dias de floresta frondosa.
A rica sociobiodiversidade, no entanto, não mereceu reconhecimento dos planejadores da ditadura militar – que, no apagar das luzes da década de 1960, decidiram “integrar” a região e ocupar o que consideravam como “vazio demográfico”.
No papel de indutor do processo, o Estado fez par com o capital nacional e internacional. Amparadas em políticas de renúncia fiscal e financiamentos públicos, empresas e bancos do Centro-Sul do país passaram a dominar grandes extensões de terra. As rodovias passaram assim a cortar territórios e incentivar a “conquista” da fronteira agromineral.
Como nos tempos de Cabral, a matriz desenvolvimentista ancorada no uso intensivo dos recursos naturais estabeleceu a escalada predatória. Institucionalidades ganharam corpo com a criação da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e o Banco da Amazônia (Basa), verdadeiras “mães” numa ordem marcada pelo patrimonialismo.
A extração de madeira, a pecuária e a mineração consistiram nas atividades econômicas centrais para a “ocupação” da região. Eixos de integração para facilitar a circulação de mercadorias, em particular grãos (com ênfase na soja), são prioridades até hoje. Uma rede multimodal de transportes (rodovias, ferrovias e hidrovias) desponta dos croquis do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), que em nada destoa de planos pretéritos.
A lógica dos planos socializa chagas como a miséria, a destruição da natureza, o trabalho escravo e outras ilegalidades – representadas pelo vasto rosário de casos de violência e de crimes impunes contra trabalhadores rurais, advogados, religiosos, ambientalistas, militantes da reforma agrária. Um lugar tão rico e tão pobre, que vê a riqueza se esvaindo todos os dias para ser usufruída por outros. Não há nada de novo front além da chancela do enclave. A Vale, que abandonou a sigla da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), é a grande empresa que traduz o poder econômico e político da região.
Carajás reúne um mundaréu de gente – índios, camponeses, assentados da reforma agrária, garimpeiros, madeireiros, guseiros e pecuaristas. Pesquisadores e jornalistas se fartam e produzem estudos e panoramas de variados ângulos sobre a dinâmica de redes econômicas, políticas e sociais da região.
A disputa pela terra e pelos recursos naturais é marcada pela assimetria de forças e está encharcada de sangue dos pobres. Só na década de 1980, tombaram muitos como Expedito Ribeiro e João Canuto. Houve chacinas nas fazendas Ubá e Princesa, entre tantas. Ainda hoje vivas sob o manto da impunidade.
Ninguém ousou imaginar que o camponês se fixaria na região. Foi a partir do massacre de Eldorado dos Carajás, em 17 de abril de 1996, que inúmeras áreas ocupadas passaram a ser homologadas como projetos de assentamento rural. Lá estão hoje mais de 80 mil famílias distribuídas em 478 projetos de assentamento que, somados, resultam em porcentagem significativa de toda a região. Parte dessa gente está organizada em frentes sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Pará (Fetagri).
Não são poucas as organizações que questionam o modelo de desenvolvimento ora desenhado. Os dias são delicados, marcados por uma agenda de grandes obras, como a construção de hidrelétricas para a garantia de fornecimento de energia das empresas do setor de alumínio no Maranhão (Alumar/Alcoa) e no Pará (Albras/Alunorte/Vale). Há ainda a tentativa de efetivação do Distrito Florestal Sustentável (DFS) de Carajás, que abre espaço para a expansão da monocultura de eucalipto com o intuito de alimentar o Pólo Siderúrgico de Carajás. Isso sem citar várias frentes de mineração da CVRD.
Os trabalhadores rurais e suas famílias permanecem em Carajás, sem saber ao certo se vão ficar. Sabem que é muito difícil inverter a agenda dos grandes projetos e reivindicam ações do Estado para reduzir o hiato entre ricos e pobres. A agenda dos centros de pesquisa ainda não foi redirecionada, e no horizonte, não existe um projeto de desenvolvimento alternativo que se apresenta com nitidez a essa população excluída e pressionada.
Eles lutam dia após dia enfrentando as intempéries do que restou de floresta e batendo de frente com os projetos homogeneizantes de desenvolvimento. Feito bambu, que verga, mas não quebra. Estão ali para desafinar o coro dos contentes.
*mestre em Planejamento do Desenvolvimento Regional e colaborador do Fórum Carajás, do Ecodebate e do Ibase, entre outros. É autor do livro Araguaia-Tocantins: fios de uma História camponesa.