Recife – O que já era previsível aconteceu: os problemas da geração de energia elétrica do país voltaram à baila, desta feita no governo Lula. Não foi por falta de aviso. Em fevereiro de 2005 editamos artigo na Internet criticando a forma precipitada com a qual o presidente Lula tratou essa questão. Naquela ocasião, segundo a ótica do presidente, os apagões eram páginas viradas na história do nosso país.
As análises que temos feito na última década sobre a realidade nordestina, principalmente as de sua região semi-árida, têm tido elevados índices de acertos. Sobre as questões energéticas, por exemplo, temos vários textos publicados em tons de profecia. As coisas estão acontecendo exatamente como havíamos previsto.
Embora seja um tema complexo, o que está ocorrendo hoje no setor elétrico brasileiro é simples de entender, por ser a geração de energia realizada preferencialmente em hidrelétricas. Esse fato preocupa pela recorrência no descompasso das caídas das chuvas em todo território nacional. Em 2001, por exemplo, as autoridades apostaram nas chuvas que não caíram, o que resultou na mais séria crise energética vivenciada na nossa história. Em 2008 não foi diferente. As coisas estão acontecendo de forma muito semelhante àquelas ocorridas em 2001, embora com menor gravidade. Os volumes acumulados nos reservatórios das principais hidrelétricas nacionais baixaram a níveis críticos, o que obrigou as autoridades ao acionamento das baterias de termelétricas movidas a gás, para manter a geração de energia em patamares satisfatórios. Essa alternativa, na nossa ótica, é paliativa, tanto pelas indefinições ocorridas nas remessas do gás da Bolívia ao Brasil, como por ter a Petrobrás informado que só tinha condições de fornecer às termelétricas cerca de 20% do gás sob sua tutela, com o conseqüente aumento tarifário do setor elétrico, penalizando o usuário da energia.
Entretanto, cremos que as discussões havidas a esse respeito estão fora de foco. Não cabe aqui discutir se irá ou não chover. As expectativas de 2001 não foram bem sucedidas, mas neste ano de 2008, as chuvas, apesar de atrasadas, já estão ocorrendo com muita intensidade no sudeste do país, o que irá ocasionar a subida dos níveis dos reservatórios daquela região. A discussão mais importante que tem que ser feita é se o rio São Francisco, com a baixa vazão que vem mantendo até agora, terá condições de suprir as demandas volumétricas dos projetos da região nordeste que estão sendo implementados em sua bacia hidrográfica, visando o consumo de suas águas. Em novembro de 2007, quando a represa de Sobradinho chegou a apenas 15% de seu volume preenchido, 158 municípios do estado da Paraíba estavam em estado de emergência motivado por uma seca que se anunciara e, conseqüentemente, pelo total desabastecimento das populações ali residentes. Na nossa percepção o rio já está no seu limite de uso, não tendo mais condições de suprir tais demandas.
Caso seja mantida a meta de crescimento do país de 5% ao ano, há necessidade de se injetar, à potência elétrica instalada do país, cerca de 5.000 mw/ano, volume de energia nada inexpressivo se considerados os 5.437 mw conseguidos nos três primeiros anos do governo Lula. E se não houver a preocupação com os aportes energéticos necessários ao nosso desenvolvimento, não irá demorar muito e teremos problemas de falta de energia elétrica no nosso país.
No Nordeste o caso é mais complicado ainda, tendo em vista ser o rio São Francisco responsável por mais de 95% da geração de sua energia, situação esta agravada pelos múltiplos usos a que é submetido, pelas formas lotéricas das caídas das chuvas e pelas características geológicas de sua bacia hidrográfica (escudo cristalino), resultando tudo isso na intermitência de seus principais afluentes. Os descompassos pluviométricos ocorridos em suas nascentes no final do ano passado e início deste ano resultaram em reduções significativas de sua vazão com conseqüente redução volumétrica na represa de Sobradinho, a qual em novembro de 2007, apresentava apenas 15% de seu volume preenchido (em igual período de 2006, a represa apresentava 60% de sua capacidade).
Ao denunciarmos essas questões com espírito desarmado, fomos invariavelmente classificados por nossas autoridades de “xiitas”, maus nordestinos e de técnicos que costumam colocar “areia” nas coisas.
Na semana que antecedeu o final do segundo jejum de Dom Luiz Cappio, aconteceu de tudo na imprensa pernambucana. Fomos acusados inclusive de “termos feito a cabeça” de Dom Luiz nas questões sanfranciscanas e de outras bobagens semelhantes. Dom Luiz é um autodidata por excelência. Vive na região semi-árida nordestina há mais de 30 anos e peregrinou durante um ano inteiro da nascente do Velho Chico à sua foz, interagindo com o povo e levantando os problemas existentes em toda a bacia hidrográfica do rio. Portanto, conhece a realidade da região como ninguém. Apesar de ser paulista, Dom Luiz é mais nordestino do que muitos nordestinos ilustres que fizeram o caminho inverso.
Ainda no tocante aos múltiplos usos das águas do rio São Francisco, existem projetos que estão sendo postos em prática, os quais irão agravar mais ainda o quadro de penúria hídrica ali existente. Referimo-nos ao projeto de transposição de suas águas e, mais recentemente, à ampliação de nossa fronteira agrícola com o plantio de cana-de-açúcar irrigada com as águas do Velho Chico para a produção de etanol. Na nossa avaliação o rio São Francisco já não dispõe dos volumes necessários à satisfação das necessidades desses projetos. Ora, se atualmente no São Francisco não existem volumes sequer para gerar energia, como é que querem retirar água para o atendimento do agronegócio? Fala-se na irrigação de cerca de 90 mil ha de cana, área esta que demandará volumes significativos de um rio já debilitado. Para se ter uma idéia da gravidade dessa situação, para se produzir um litro de álcool combustível são necessários cerca de 2.500 litros de água. Na nossa ótica, caso esses projetos sejam executados, essas questões en
tram na esfera da irresponsabilidade, em um momento em que é preciso sentar-se à mesa de negociações para se discutir o uso de qualquer gota d`água disponível, sob pena de entrarmos em um processo de exaustão de nossas riquezas naturais, de difícil solução.
O uso das águas do rio São Francisco para o agronegócio já dividiu o Nordeste ao meio. Atualmente, fala-se em nordeste setentrional e nordeste meridional. Além de dividir os habitantes das duas regiões, o projeto dividiu também a igreja católica. Os religiosos desinformados do nordeste setentrional são favoráveis a essas iniciativas, enquanto aqueles do nordeste meridional, mais informados, são contrários. Ao participarmos da Caravana em defesa do São Francisco, que visitou 11 capitais brasileiras discutindo a realidade da região semi-árida, observamos claramente essa dicotomia de opiniões. Ao chegarmos na Paraíba, por exemplo, nos deparamos com a notícia de que o arcebispo emérito da capital paraibana, Dom Aldo Pagotto, havia sido entrevistado no “Bom-Dia Paraíba” (noticiário local da Rede Globo) e teria dito que o grupo em visita à Paraíba era “a caravana da morte”, pois estava negando um caneco d´água a quem tem sede. Iludem-se aqueles que acreditam que a transposição irá resolver os problemas de abastecimento da população difusa nordestina. Ao contrário, a transposição servirá única e exclusivamente a interesses empresariais e, portanto, não irá atender às necessidades dos sertanejos. Trata-se da perpetuação da indústria da seca. A esse respeito, gostaríamos de esclarecer que ao participarmos da dita caravana não estávamos brincando, nem tampouco fazendo turismo. A missão da caravana foi de paz e, sobretudo, de esclarecimento.
Ano eleitoral
Caso semelhante ocorre no meio político regional. Políticos do nordeste setentrional, por exemplo, são favoráveis ao projeto transpositório, enquanto os do nordeste meridional são contrários. Sobre essas questões, caso curioso ocorre com aqueles que têm seus redutos eleitorais nas regiões por onde irão passar os canais do projeto. Existe um empenho enorme por parte deles para a implantação desses canais, o que na nossa opinião não passa de uma tentativa de garantir o voto do eleitorado iludido e desinformado. Lembramos que o ano de 2008 é eleitoral e, portanto, o estrago advindo dos votos desses eleitores (em número) será diretamente proporcional à vontade e ao empenho desses políticos na realização da obra.
Aliás, somos da opinião de que as questões ambientais do país, quando tratadas no meio político, costumam ser complicadas, desgastantes e com resultados diversos do previsto. Notem o caso da febre amarela ocorrido recentemente na região Centro-Oeste. Houve alguns casos isolados naquela região o que motivou o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, a dar declarações na mídia televisiva com o propósito de acalmar a população, numa tentativa de convencimento de que não haveria epidemia e, portanto, a vacinação só seria aconselhável para aqueles casos em que as pessoas fossem viajar para regiões de ocorrência da doença. O que se viu no dia seguinte à fala do ministro, foi uma corrida desenfreada da população brasileira em busca da vacina, o que levou a extinção de seus estoques nos principais centros de saúde em todo território nacional.
A situação não foi diferente com o recém empossado ministro de Minas e Energia, Edson Lobão. Na tentativa de acalmar a população brasileira sobre as possibilidades da volta dos racionamentos de energia, o ministro, diante de reservatórios praticamente vazios, afirmou que não haveria racionamento – pois as termelétricas estavam operando – mas apenas um ajuste nas tarifas de energia para compensar os gastos com a utilização do gás, sendo obrigado a desfazer, no dia seguinte, tudo aquilo que havia dito no dia anterior.
O próprio presidente Lula informou à nação que o seu governo foi o que menos desmatou a região amazônica. No dia seguinte a essa declaração, a Organização das Nações Unidas divulgou um relatório considerando 2007 o ano em que mais se desmatou a região, o que motivou, durante uma semana inteira do mês de janeiro, uma discussão acalorada entre as autoridades governamentais as quais está afeto o meio ambiente. Para nós, o caso mais emblemático foi o da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que concedeu a licença ambiental ao projeto de transposição, por entender que o mesmo era ambientalmente seguro. Como é “seguro” o projeto que está sendo implantado se a população brasileira testemunhou, através do Jornal Nacional, na edição do dia 29 de janeiro, um cidadão atravessando o rio de moto (de Porto Real do Colégio – AL, até Própria – SE), num percurso trágico, em local muito próximo à sua foz, onde, conforme o ex-ministro Ciro Gomes havia afirmado à nação brasileira, o rio São Francisco estaria “perdendo” muita água para o mar? A atitude da ministra pode ser justificável pelo fato de ser nativa de região superúmida do país e, portanto, não conhecer em profundidade a realidade do nordeste seco. Mas, na nossa opinião, isso não a isenta de ter baixo compromisso com a região.
Doravante, é possível que os políticos, que costumam iludir seu eleitorado com propostas mirabolantes visando tão somente à obtenção de votos, passarão, mais cedo ou mais tarde, pelo constrangimento de verem suas candidaturas inviabilizadas pela insuficiência de votos nas urnas. Para os religiosos desinformados, que costumam iludir seus fiéis, cremos que no dia do juízo final será dada como certa uma passagem pelo purgatório, nem que seja de forma rápida.
Finalmente, entendemos que a melhor classificação que foi dada às alternativas de abastecimento do povo nordestino ficou por conta de João Bosco, secretário de Recursos Hídricos do governo do estado de Pernambuco. Em evento sobre Água e Energia promovido no Recife, em novembro de 2007, pela Fundação Gilberto Freyre e pelo governo do estado, o secretário a elas se referiu, na tentativa de defesa do projeto de transposição, quando submetido aos nossos argumentos. Segundo o secretário, que estava falando para uma plenária de cerca de 200 pessoas, as disputas sobre as alternativas de abastecimento do povo do Semi-árido eram por recursos financeiros: a escolha era pelo projeto mais caro. Que era por dinheiro, isso todos nós já sabíamos. O fato curioso é que essa asser
tiva partiu de um secretário de estado, que estava ali numa situação difícil tentando defender um projeto que não irá resolver a situação de abastecimento das populações carentes nordestinas. Para nós este fato servirá de munição para próximas investidas, ajudando-nos a continuar mostrando, de forma transparente, a insustentabilidade técnica do projeto. Fica claro que, diante das alternativas atualmente existentes – como as do Atlas Nordeste de abastecimento urbano de água, orçado em R$ 3,6 bilhões e o projeto de Transposição, que pode chegar a R$ 20 bilhões, em 25 anos – é lógico que a escolha das autoridades recairá no projeto que for mais caro, ou seja, o da transposição.
Diante de todo esse relato, entendemos que não se pode colocar a vontade política acima das possibilidades técnicas de se promover o desenvolvimento do nosso país, sob pena de continuarmos seguindo firmes na rota da escuridão. Antes, escrevíamos sobre os riscos que podiam surgir caso a obra fosse iniciada. Agora, diante das obras em andamento iremos começar a escrever sobre as suas conseqüências.
* João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.