Herói e vilão

 17/02/2008

Há quem diga que o agronegócio é o herói da economia; há quem diga que é o vilão. O setor tem um pouco dos dois. Nas últimas semanas, o agronegócio foi atacado em várias frentes: aqui dentro, acusado de ser responsável pelo desmatamento; lá fora, enfrenta o embargo à carne pela União Européia. O setor tem se colocado como vítima, o que também não é. Ele tem grandes virtudes e erros inaceitáveis.

Parte da boa história econômica do Brasil nas últimas décadas não pode ser contada sem o agronegócio. O aumento impressionante de produção e produtividade da agricultura permitiu a queda dos preços dos alimentos em comparação a outros bens. A compra da comida passou a representar uma fatia menor do orçamento familiar. O dinheiro das famílias foi liberado para a compra dos outros bens de consumo. Casas mais bem equipadas melhoraram a qualidade de vida dos brasileiros. A indústria passou a vender mais. O agronegócio não explica tudo, mas explica parte da estabilização brasileira. Na outra ponta, a agricultura passou a exportar e conquistar mercados. Isso resgatou o país das aflições cambiais que nos atingiam nos anos 90. Não fizeram nada sozinhos, contaram com financiamento público e tecnologia da Embrapa, mas essa é a parte boa da história do agronegócio.

Existem também os erros. Toda agricultura tem algum impacto no meio ambiente, mas o impacto não tem de ser tão violento quanto o que o Brasil sofre. O país tem hoje um volume espantoso de terras deterioradas por uma agricultura agressiva ao meio ambiente e uma mentalidade atrasada que ainda hoje, em plena era do aquecimento global, resiste a se modernizar. O fato de produzirem alimentos tem sido usado por seus líderes como álibi para a destruição do meio ambiente. Não é mais aceitável essa mentalidade.

Os produtores foram para o Centro-Oeste e para o Norte do país com a atitude de destruição. O governo militar chamava a Amazônia de "inferno verde", em suas propagandas. Tinha uma visão militar e xenófoba da Amazônia: era o "integrar para não entregar". E integrar era ocupar desmatando. Nenhum governo civil fez, de fato, a mudança de paradigma. Os produtores agrícolas e seus lobistas-parlamentares jamais se modernizaram e por isso, ainda hoje, demandam coisas como o "direito de desmatar" 50% das propriedades da Amazônia.

E que "propriedades"! É difícil saber, no cipoal de ilegalidades da ocupação fundiária da Amazônia, o que é terra pública "privatizada" pela grilagem e o que é legal. Muita coisa mantém essa nuvem que impede o país de saber a fronteira entre o legal e o ilegal. O governo não tem controle sobre seu território e nunca conseguiu organizar a bagunça da ocupação selvagem da terra. Os órgãos financiadores oficiais nunca fizeram o básico: exigir documento de propriedade e comprovar o cumprimento da lei ambiental. Os produtores transitam entre legalidade e ilegalidade, negócios ligam os dois lados e, por isso, não há a demarcação da fronteira entre o legal e o ilegal. O consumidor não sabe o que come, desconhece as perversidades embutidas no produto que chega à sua mesa. Não tem como aferir.

O agronegócio do Sul e do Sudeste costuma ser apresentado como a parte moderna. O do Norte, como selvagem. O do Centro-Oeste, como tendo um pouco dos dois. Não há essa divisão territorial. Muitos empresários do Sudeste têm fazendas também no Centro-Oeste ou no Norte. Um mesmo empreendimento tem padrões diferentes de comportamento. Meio modernos; meio arcaicos.

Um caso emblemático ilumina essa duplicidade. O empresário paulista J. Pessoa de Queiroz Bisneto teve um flagrante de trabalho degradante de índios em sua usina de cana-de-açúcar em Mato Grosso do Sul. Ele tinha assinado o pacto contra o trabalho escravo, feito parte da campanha contra o trabalho infantil, era da Unica e membro do conselho consultivo do Ethos. No dia em que liguei para ouvi-lo, fui informada de que ele estava "sobrevoando suas fazendas". Tem sete, em regiões diferentes. Quando falei com ele, a resposta foi a de sempre: exagero dos fiscais. Conversei com funcionários do Ministério do Trabalho, da Polícia Federal e do Ministério Público que foram à fazenda, e os relatos do flagrante eram fortes e convincentes. Tratei dos detalhes em outras colunas. Liguei para a Unica. O economista Marcos Jank tinha assumido um pouco antes a associação dos usineiros paulistas para modernizar a imagem da entidade. Ele me disse: "Isso não aconteceu em São Paulo, não é com a Unica", esquecendo-se de informar que José Pessoa era diretor da entidade, não um diretor qualquer, mas o de Responsabilidade Social. O Ethos informou que o suspendeu do conselho. O assunto permanece nebuloso.

As entidades empresariais devem ao país um trabalho de separação de joio e trigo. Existem hoje técnicas de transparência, prestação de contas e rastreabilidade para se saber quem é quem.

A Europa nos pediu que fizesse isso num quesito apenas: a sanidade do rebanho. E o Brasil tem tropeçado nas próprias pernas ao cumprir o exigido pelo cliente. Outras exigências virão. Por protecionismo ou pela nova atitude do consumidor, o mundo não será conivente com nossa ambigüidade no agronegócio, com nossa aliança entre o legal e o ilegal, com a convivência do moderno com o arcaico. Quem já deu os passos para a modernização deve ajudar o país na inadiável tarefa de combater a vasta rede de ilegalidade que nos ameaça e sufoca.

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