Entidades trabalhistas lançam ofensiva contra medida provisória que dispensa o registro em carteira dos trabalhadores rurais temporários
De forma discreta, o governo atendeu a um pedido da bancada ruralista no Congresso e embutiu numa medida provisória que trata de financiamento e previdência rural dispositivo que pode dificultar o combate ao trabalho escravo.
Publicada no Diário Oficial da União em 28 de dezembro, a MP 410/07 libera as contratações temporárias no meio rural e dispensa o registro em carteira dos chamados safristas, trabalhadores contratados apenas durante as colheitas.
Entidades representativas de trabalhadores e procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT) afirmam que, caso as novas regras sejam aprovadas, poderão ser inviabilizadas as ações do grupo móvel de combate ao trabalho escravo do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Mais do que isso, alegam que a mudança pode incentivar a exploração desse tipo de mão-de-obra.
Desde 2005, 621 ações de combate ao trabalho escravo libertaram mais de 27 mil trabalhadores em todo o país. Procurado pelo Congresso em Foco, o MTE não quis se pronunciar sobre o assunto, apesar de a MP ter a assinatura do ministro da pasta, Carlos Lupi, presidente do PDT. Procurada pela reportagem, a Casa Civil da Presidência da República também se esquivou das perguntas sobre a MP. Limitou-se a dizer que as justificativas deveriam ser apresentadas pelo MTE.
Na justificativa da medida provisória, na há nenhuma menção à primeira parte da norma, a polêmica contratação temporária no meio rural. As mudanças na Lei 5.889/73, que permitiriam esse modelo contratação, são citadas apenas nas três primeiras linhas do documento, assinado por Lupi e pelo ministro da Previdência, Luiz Marinho.
Por outro lado, em 23 tópicos, são feitas considerações sobre a segunda parte da MP, que contém alterações sobre a aposentadoria dos trabalhadores rurais. Parlamentares ligados à questão agrária disseram ao site que o Ministério do Trabalho não foi sequer consultado pelo Palácio do Planalto antes de a medida provisória ser publicada.
Atropelo
Além de contrariar o MTE, o governo atropelou um projeto de lei que trata do mesmo tema e que está pronto para votação no plenário da Câmara. Trata-se do PL 1367/2007, de autoria do deputado Márcio Reinaldo Moreira (PP-MG), integrante da bancada ruralista.
As duas propostas são semelhantes. A única diferença entre o projeto do deputado mineiro e a medida provisória é o tempo de enquadramento para o chamado trabalho de pequeno prazo. A MP permite a contratação sem carteira assinada por até dois meses de trabalho continuado no período de um ano. Já o projeto de lei de Márcio Reinaldo amplia essa possibilidade para três meses. O Congresso em Foco tentou contato com o deputado do PP, mas não houve retorno.
O procurador do MPT em Barreiras, oeste da Bahia, Luciano Leivas, acredita que a dispensa de anotação na carteira de trabalho dos safristas pode comprometer o trabalho de fiscalização do grupo móvel do MTE. “Essa desobrigação pode incentivar o trabalho escravo”, avalia o procurador.
Incidência alta
A primeira unidade da Justiça do Trabalho chegou a essa região baiana de grande produção de grãos em agosto de 2006. Até então, todos os casos eram julgados em Salvador. De lá pra cá, 80% das 17 ações civis públicas em tramitação na corte diziam respeito a denúncias de trabalho escravo, estima Leivas.
No oeste da Bahia, como mostrou com exclusividade o Congresso em Foco no último dia 12, o pai do tricampeão de Fórmula 1 Ayrton Senna e outros dois sócios de um mega-empreendimento rural de mais de 6 mil hectares são acusados de explorar trabalho escravo.
A notícia de que 82 trabalhadores foram resgatados da fazenda Campo Aberto ganhou repercussão e nacional e internacional, sendo publicada inclusive no principal jornal de esportes da Itália, La Gazzetta dello Sport. Os sócios e os advogados do empreendimento negam a denúncia.
"Sem urgência"
A vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), Juliana Vignoli, acredita que a medida provisória dificulta e pode até impedir a fiscalização do grupo móvel de trabalho escravo do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). "O projeto tem relevância, mas não tem urgência para ser tratado por medida provisória. Isso retira da população o direito de debater o tema", afirma a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT).
Para Juliana Vignoli, que acompanhou ações do grupo móvel no Pará e em Minas Gerais, o principal prejuízo trazido pela MP 410/2007 é a desobrigação de anotação nas carteiras de trabalho dos safristas ou trabalhadores temporários. "A maioria dos trabalhadores retirados das fazendas em ações do grupo móvel não tinha carteira em 20 ou 30 anos de trabalho. Isso pode ser ainda ampliado com a medida provisória", diz.
A ANPT está mobilizando outras entidades ligadas à questão trabalhista para tentar derrubar a proposta do governo. Também são contra a medida provisória a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait). A mobilização envolve ainda a Federação da Agricultura Familiar (FAF), a Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (FERAESP) e a regional paulista da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
"Dispensado de quaisquer registros, o empregador certamente ficará tentado a não formalizar (leia-se legalizar) tais contratos de pequeno prazo e até outros de duração maior, podendo sempre alegar que a contratação é recente. Isso prejudicará todo o esforço de legalização das relações laborais no campo, afetando o combate ao trabalho escravo, degradante e superexplorado", diz nota da ANPT.
Emendas
Antes mesmo de começar a tramitar na Câmara, a MP 410/2007 já recebeu 45 emendas na comissão mista do Congresso responsável por receber as medidas provisórias encaminhadas pela Casa Civil. O item passa a trancar a pauta, ou seja, a impedir a votação de outras proposições no plenário a partir do dia 22.
Pelas regras regimentais, o colegiado deveria se reunir periodicamente para discutir a proposta com um relator. Mas até agora, ninguém foi indicado para relatar a mat&
eacute;ria. Além disso, a comissão não se reúne desde a chegada das medidas provisórias do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Uma das emendas feitas à MP 410 foi proposta pelo senador José Nery (Psol-PA), que defende a derrubada da proposta do governo. "Essa alteração na legislação trabalhista no meio rural é contra todos os esforços, inclusive do governo, contra o trabalho escravo. É um contra-senso algo desse tipo ser proposto sem discussão com o Ministério do Trabalho e no final do ano passado, quando o Congresso já estava de recesso", ataca o senador do Psol.
Na avaliação de José Nery, a MP é uma "afronta" aos direitos do trabalhador. "A melhor contribuição que o Congresso pode dar é rejeitar essa medida provisória e aprovar a PEC do Trabalho Escravo", considera.
PEC esquecida
A proposta de emenda à Constituição à qual o senador do Psol se refere é a PEC 438/2001, parada na Mesa Diretora da Câmara desde abril de 2007 e que tramita na Casa há seis anos.
O texto-base da PEC, aprovado em primeiro turno na Câmara em 2004, prevê que as propriedades rurais e urbanas em que forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo serão desapropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular. Não caberia indenização ao proprietário, após sentença judicial transitada em julgado, ou seja, quando não couber mais recurso.
A proposta também determina que os bens de valor apreendidos, decorrentes da prática de trabalho escravo, rural ou urbano, serão destinados a um fundo especial, cuja aplicação dos recursos será disciplinada por lei infraconstitucional.
A PEC é uma das bandeiras dos movimentos sociais ligados à questão agrária e de setores do governo que estão à frente de ações de combate ao trabalho escravo. No dia 12 de março, entidades como a Via Campesina, que tem o Movimento dos Sem Terra (MST) com um de seus principais articuladores, farão um ato nacional pela aprovação da PEC 438/2001.
"Excesso de proteção"
A polêmica MP 410 é responsável por uma proeza: está fazendo a senadora Kátia Abreu (DEM-TO), uma das principais articuladoras da derrubada da CPMF no Senado, apoiar uma iniciativa do Palácio do Planalto.
"É absurda essa vinculação com o trabalho escravo. A MP é o primeiro passo para a desburocratização sem perda de direitos. O excesso de proteção, assim como pode ocorrer com nossos filhos, é prejudicial ao trabalhador", compara a senadora Kátia Abreu (DEM-TO), uma das principais lideranças dos ruralistas no Senado e autora de cinco emendas ao texto do governo.
Uma das sugestões dela prevê o aumento de dois para três meses do prazo para a contratação de trabalhadores rurais temporários sem o registro em carteira assinada. Kátia argumenta que algumas culturas, como a da cana-de-açúcar, necessitam desse período mínimo para a colheita. "Eu mesmo fiquei com gente acampada na minha fazenda por três meses", afirma.
Em outra emenda, a senadora do Democratas estende a possibilidade de contratação temporária sem registro em carteira a pessoas jurídicas, empresas agropecuárias e agroindústrias.
"Eu trabalho para a maioria dos produtores rurais. O trabalho escravo é uma execeção. Além disso, os proprietários acusados estão se defendendo na Justiça. O Ministério do Trabalho não é dono da verdade absoluta", acredita a senadora.
Ex-líder do DEM na Câmara, o deputado Onyx Lorenzoni (RS) diverge frontalmente da colega de partido nesse caso. O deputado gaúcho acredita que a anotação na carteira de trabalho dos safristas não pode ser dispensada.
Além de fazer uma emenda obrigando a anotação da carteira, Onyx também pede a estabilidade no emprego temporário de gestantes, líderes sindicais e trabalhadores acidentados.
O deputado também quer que o prazo estipulado para a sazonalidade seja de 90 dias em vez dos dois meses propostos pelo governo. A emenda nº 18 também prevê que o período para o enquadramento do safrista seja de seis meses, e não de um ano, como prevê o texto enviado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). "Não existe trabalho escravo com anotação em carteira. O registro em carteira não pode ser dispensado, portanto, em nenhuma hipótese", disse Onyx ao site.
Lúcio Lambranho
26/02/2008