Especial – Tortura

Impunidade e monitoramento débil favorecem abusos

Inúmeros obstáculos dificultam controle da sociedade civil sobre o que acontece dentro do cárcere. Lei de Tortura de 1997 prevê agravante de pena quando o agressor é agente público. Condenações, contudo, são escassas
Por André Campos
 26/03/2008

Leia também a primeira parte do Especial – Tortura:
Violência contra detentos perdura e questiona poder do Estado

Deficiências na perícia e o uso da burocracia como "escudo" dificultam a produção de provas em casos de tortura no cárcere. A falta de monitoramento, no entanto, surge como um dos principais obstáculos para que as próprias denúncias ocorram. Nas palavras de Pedro Montenegro, da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), os locais onde há presos no Brasil são "muito opacos" – quem deveria fiscalizar não o faz e quem quer fazer isso é barrado.

"Em alguns locais, associações da sociedade civil fazem visitas regulares, mas ainda é pouco diante do número de unidades prisionais que existem no país", alerta Sylvia Dias, consultora da Associação para a Prevenção da Tortura (APT), entidade internacional com sede na Suíça. A APT realiza cursos que capacitam organizações não-governamentais (ONGs) e representantes do poder público para monitorar as prisões brasileiras.

 
Obstáculos ao monitoramento externo
inibem denúncias (Foto: Arq. ACAT)

Desde fevereiro de 2007, vigora no país o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes – documento da Organização das Nações Unidas (ONU) que prevê a criação de um órgão de visitas independente, com acesso livre a centros de detenção. Ele estabelece prazo de um ano – já vencido – para a criação dessa entidade. Tal incumbência está sendo capitaneada pela SEDH e, segundo Pedro, a plena implantação ocorrerá ainda em 2008.

Fernando Salla, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), mostra ceticismo quanto à possibilidade de uma nova estrutura responder por uma função de fiscalização que, de certa forma, já está prevista na legislação. "As coisas são criadas por lei, mas as condições para que funcionem não são dadas", diz. "Fica esse desajuste e opta-se sempre pela solução mais barata, que é, em geral, fazer novas leis."

Segundo ele, um exemplo disso é a própria Lei de Execução Penal, que delega a uma série de instituições o papel de vistoriar unidades prisionais, incluindo órgãos federais, estaduais, promotores e juízes de execução penal – estes últimos, aliás, incumbidos de inspeções mensais. A negligência dessas autoridades, contudo, é motivo de constantes queixas.

Ainda de acordo com essa lei, sancionada em 1984, deve haver em cada comarca do país um conselho com representantes da comunidade incumbido de fiscalizar as prisões. No entanto, tal órgão ainda não foi constituído em grande parte delas – responsabilidade que cabe ao juiz de execução penal. Dados coletados pela Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) indicam que o estado de São Paulo tinha, em 2004, 97 desses conselhos instalados – em menos da metade das 225 comarcas de então. Para Fernando, poderia haver uma determinação do presidente do Tribunal de Justiça exigindo que todos os juízes instalassem estes conselhos. "O que muitas vezes se fala em termos da tortura é a figura do carrasco, na linha de frente. Mas as estruturas que favorecem isso são impressionantes", reflete.

"A grande dificuldade é conseguir que a vítima tenha um mínimo de esperança de Justiça", desabafa Paulo Sampaio, da Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (Acat) – entidade que, além de visitar locais de detenção, presta assistência jurídica a pessoas que sofreram abusos.

Para exemplificar o tamanho das negligências, Paulo conta um caso ocorrido em 2002, quando a Acat visitou um centro de detenção provisória juntamente com o juiz-corregedor dos presídios responsável pela jurisdição. Na ocasião, diz ele, foi encontrado em uma sala, na presença do juiz, um aparelho de choque, fios desencapados e barras de ferro. "Ele deixou todas as máquinas e materiais de tortura lá, com o diretor como responsável", diz Paulo. "Ninguém tomou nenhuma providência. Até hoje eu estou engasgado."

Paulo descreve ainda um cenário de grandes empecilhos para as organizações que monitoram presídios e delegacias de polícia brasileiros. A burocracia imposta para dificultar a entrada e a freqüente intimidação por parte de policiais e agentes – que evitam deixar os integrantes dessas entidades sozinhos com os presos – são alguns dos mais comuns.

No tribunal
Em 1997, após anos de reivindicações, foi aprovada a Lei de Tortura, que torna a prática dessa violação um crime inafiançável, com reclusão mínima de dois anos. Porém, em casos que envolvem lesão corporal grave, morte ou outros agravantes, a pena pode chegar a mais de duas décadas. A lei identifica como tortura, entre outras circunstâncias, o emprego de violência e ameaças graves para obter informação, castigar ou obrigar alguém a cometer atos ilícitos.

Passados mais de dez anos, contudo, o balanço é geralmente negativo quando se analisa a aplicação desta lei. "Ela não está resultando em condenações", atesta Antonio Funari, ouvidor da Polícia de São Paulo. As estatísticas da ouvidoria paulista indicam que, desde 2004, ao menos 89 denúncias de tortura foram levadas ao órgão. No entanto, segundo ele, há informações sobre apenas duas condenações entre os casos acompanhados pela entidade.

 
Fim das celas em delegacias é medida contra
a tortura (Foto: Ciete Silvério/ GOV SP)

Também pesquisadora do NEV-USP, Gorete Marques é autora de um estudo baseado em cerca de 60 processos de tortura localizados em varas da capital paulista entre 2000 e 2005. Uma de suas constatações é justamente a maior impunidade dos agentes públicos em relação a outros réus. Em 68% dos casos analisados, os supostos agressores eram agentes do Estado. Entretanto, entre os casos em que houve condenações, apenas um terço envolvia esses profissionais – sendo o restante dos processos, em sua maioria, relacionados a violência doméstica ou vingança.

A absolvição, verificou Gorete, está associada predomin
antemente em duas situações: quando há poucos indícios de marcas na perícia médica – lembrando que, muitas vezes, ocorre demora para o Instituto Médico Legal (IML) fazer o exame -, questiona-se a falta de provas.

Já quando há fortes indicadores de lesões, a autoria é posta em xeque. "Em algumas sentenças, a defesa alegava que o preso se autoflagelou para incriminar o funcionário da penitenciária, por conta de rixas. E a justificativa era acolhida pelo juiz", conta. Também há situações em que o magistrado não considera ter acontecido tortura, mas delitos como o de lesão corporal – cujas penas são sensivelmente mais brandas – podendo, em certos casos, ser convertidas no pagamento de cestas básicas.

Gorete afirma ainda que um dos principais obstáculos para a aplicação da lei é a pouca credibilidade dada aos acusadores – sobre quem paira todos os estigmas relacionados à imagem de contraventor. Além disso, via de regra, a maioria das testemunhas ouvidas são agentes públicos.

Outra polêmica que envolve o Judiciário diz respeito à freqüente aceitação, perante os tribunais, da confissão de crimes que o réu afirma ter sido induzida por tortura. O Plano de Ações Integradas do governo federal defende, nesses casos, a inversão do ônus da prova – para que essas confissões tenham validade, caberia à promotoria provar que não foram obtidas por meios ilícitos.

Nesse contexto, Luciano Maia, procurador regional da República, ressalta a importância de medidas que legitimem os interrogatórios, como o estímulo à sua gravação em vídeo e a garantia de que ocorram somente com um advogado de defesa no local. A presença de um defensor, diz ele, já está prevista no Código de Processo Penal, e a gravação tem sido adotada em todas as grandes investigações da Polícia Federal (PF) – que envolvem, em geral, crimes do colarinho branco. "Fazem isso para se preservar, pois sabem que esses graúdos têm advogados poderosos para argumentar contra eles", explica. "A polícia, quando adota essas salvaguardas, fortalece a si mesma."

Luz no horizonte
Apesar dos inúmeros obstáculos, algumas ações pontuais indicam caminhos possíveis no combate à tortura. Em São Paulo, Funari vislumbra uma diminuição dos casos que envolvem policiais por conta da desativação das celas nas delegacias e da realocação dos presos que nelas se encontravam para centros de detenção provisória. Iniciada na gestão de Geraldo Alckmin, a política já foi aplicada na grande maioria das unidades de polícia da capital, e agora se expande pelo interior. "Aquele que prende não deve guardar o preso", reitera o ouvidor. No Rio de Janeiro, o Programa Delegacia Legal, que também prevê a desativação das carceragens, é outra iniciativa elogiada.

No entanto, na cidade de São Paulo, há relatos sobre retrocessos. Em fevereiro deste ano, reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo indicava a presença de 84 detentos em cinco celas do 2º DP de Bom Retiro. Já no 9º DP de Campo Grande, 20 detentos dividiam uma cela de 6 m2.

Em relação à aplicação da Lei de Tortura, Luciano vislumbra progressos nos últimos meses, com mais condenações no país, inclusive em segunda instância. A seu ver, é possível perceber, ao menos em alguns estados, uma melhor compreensão da dinâmica desse crime como algo feito às escondidas, e normalmente sem provas. Por isso, ressalta o procurador, é preciso muito respeito pelo relato da vítima, especialmente se corroborado por outros indícios.

Padre Gunther Zgubic, da Pastoral Carcerária, acredita que, em algumas regiões do Brasil, como São Paulo, há de fato uma diminuição da tortura no sistema penitenciário. Entre as razões, ele destaca o crescimento das denúncias e a melhor abordagem do tema na Escola de Administração Penitenciária, responsável pela formação de agentes.

No entanto, na sua opinião, essa mudança não deriva basicamente de políticas públicas, mas da falta delas. O padre diz estar convicto de que, nessa equação, o fortalecimento de facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) desempenha papel fundamental. "Desde a megarrebelião de 2001 [quando ocorreram levantes em 29 presídios em São Paulo e em outros estados], os funcionários morrem de medo de mexer com o preso", ressalta.

Nesse contexto, diz Gunther, surgiram novos meios de coerção, que se valem da própria organização dos encarcerados em facções: a ameaça sistemática de transferência para presídios comandados por inimigos, onde o risco de morte é a conseqüência mais óbvia. "São novos mecanismos de tortura".

Especial – Tortura:
Parte I – Violência contra detentos perdura e questiona o poder do Estado
Parte III – Histórias de quem foi algoz e vítima em casa de reclusão

*Esta série de reportagens foi publicada em parceria com a revista Problemas Brasileiros

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