Festival da Abolição

Arte estimula debate e reflexão sobre trabalho escravo

Apresentações culturais da Mostra Artística das Comunidades refletem o envolvimento de escolas e comunidades com o tema. Maioria das inscrições veio de municípios onde houve cursos do projeto "Escravo, nem pensar!"
Por Beatriz Camargo
 16/05/2008

Araguaína – Nos últimos dias 13, 14 e 15 de maio, 40 apresentações de grupos de 17 municípios do Norte do Tocantins, além de São Geraldo do Araguaia (PA), participaram da Mostra Artística das Comunidades – um dos eventos do Festival da Abolição (que acontece na Semana da Terra Padre Josimo), realizado em Araguaína (TO). Peças de teatro, música, poesia, dança e artes plásticas abordaram a escravidão contemporânea e temas relacionados.

A maioria das 70 apresentações culturais inscritas veio de municípios onde houve cursos do projeto Escravo, nem pensar!, da Repórter Brasil. A iniciativa forma educadores e líderes populares para serem multiplicadores de ações de combate e prevenção do trabalho escravo no dia-a-dia de escolas e comunidades. Para Carolina Motoki, que coordena o escritório da Repórter Brasil em Araguaína e organiza o Festival, o que surpreendeu foi o envolvimento com o tema daqueles que não freqüentaram o curso. "Em Goiatins [TO], um único professor tinha feito o curso, mas conseguiu envolver toda a comunidade escolar: foram nove inscrições da mesma escola".

Teatro faz com que alunos sintam "na pele" o problema da escravidão (Foto: Fernanda Sucupira)

O professor citado por Carolina é Jesulê José da Silva, que além de incentivar as inscrições para o Festival da Abolição na sua escola, coordenou um grupo de adolescentes que apresentou uma peça de teatro sobre trabalho escravo. "O nosso envolvimento com o tema começou em 2006 com o curso do Escravo, nem pensar! em Araguaína. De lá pra cá, já fizemos dois simpósios que discutiram discriminação, racismo e trabalho escravo, com professores e alunos", conta Jesulê. Ele sublinha que, dessa vez, o envolvimento foi mais intenso. "Agora os alunos sentiram na pele o problema do trabalho escravo. Eles internalizaram o tema".

A experiência da encenação também fez com que os adolescentes da trupe Limite, ligada ao Centro de Direitos Humanos (CDH) de Palmeirante (TO), enxergassem a questão do trabalho escravo de uma forma mais direta. O texto da peça, baseado no poema "Navio Negreiro", de Castro Alves, faz comparações entre a escravidão antiga e a contemporânea. "Para incorporar o texto, a gente trabalhou bastante. Na parte do navio negreiro, em que o pessoal vivia como rato, teve toda uma preparação corporal", lembra o professor de educação física, Roberto Galdino de Lima, que ensaiou os jovens junto com a professora de educação infantil, Ana Paula Teles.

Coordenador da Campanha Contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e também organizador do Festival, frei Xavier Plassat viu nas apresentações "uma criatividade, uma alegria na abordagem do tema". Carolina completa que o mais importante é o processo por trás da apresentação. "É muito difícil envolver os jovens com esse tema. Acho válido utilizar coisas que eles gostam, como músicas da moda. Para fazer uma paródia, mesmo que simples, eles tiveram que discutir o tema", afirma. Entre as músicas apresentadas, estavam "Sinhá Moça", "Sinônimos" ("Sinônimo de amor é amar"), "Olodumaré", e composições da banda Forró Sacode.

Comunidade e escola
Em Centro dos Borges, povoado do município de Riachinho (TO), dançarinos do Lindô, dança tradicional dos antigos escravos, compuseram uma letra especialmente para o evento. São 23 pessoas, entre professores e funcionários da escola local e membros da própria comunidade (veja vídeo).

Grupos qurem fazer novas apresentações e mais pesquisas sobre o tema (Foto: Fernanda Sucupira)

A diretora da escola, Clévia Rejane Barbosa, explica que, como o povoado é pequeno (1,5 mil habitantes), há muita integração entre as atividades da escola e da comunidade. Ela também participou do curso Escravo, nem pensar! e avalia que a participação no Festival trouxe um novo sentido para a dança tradicional.

"Eu sou do Piauí e não conhecia o Lindô até vir para Riachinho, em 1999. De lá pra cá, eu aprendi e acho que não esqueço mais", completa Clévia. Junto com a comunidade, houve um resgate dessa cultura que, segundo ela, estava um pouco "esquecida", mas hoje é muito valorizada em Centro dos Borges. "Quando a gente dança na comunidade, junta muita gente para ver na quadra da escola", conta o orgulhoso Sebastião Franco dos Santos, um dos mais antigos do grupo, que reúne desde dançarinos com 60 anos até adolescentes de 16 anos.

Continuidade
A expectativa dos grupos agora é dar continuidade ao trabalho realizado para o Festival da Abolição, tanto se apresentando em outros lugres quanto ampliando a pesquisa sobre o tema. "É muito gratificante a gente poder se apresentar em outra cidade, muda a auto-estima desses jovens, que em geral têm pouca perspectiva", avalia Roberto. Para o grupo Abolição, de Goiatins, a peça de teatro é o início de um longo trabalho. "Vamos começar um projeto de pesquisa de campo na região: saber de onde vêm os trabalhadores, quem é o empregador, quem é o trabalhador… A peça vai entrar nesse projeto, para sensibilizar municípios com alto índice de trabalho escravo", expõe Jesulê.

Grande parte dos municípios que participaram do Festival (e dos Pré-Festivais) da Abolição estão entre os 11 que mais receberam denúncias de trabalho escravo no Tocantins, segundo dados da CPT. Araguaína, Xambioá, Colinas, Palmeirante, Riachinho e Wanderlândia são alguns desses exemplos. Apenas em 2007, foram 570 trabalhadores envolvidos em libertações no estado. Em São Geraldo do Araguaia (PA), o grupo móvel resgatou sete pessoas de trabalho degradante em operação que terminou segunda-feira (12).

Veja o vídeo da apresentação do Lindô da comunidade de Centro dos Borges, na Mostra durante o Festival da Abolição

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