Marina e a opção por não fazer marolas

 15/05/2008

Existe mais em comum entre a demissão da ministra Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente, os conflitos para demarcação da reserva indígena Raposa Terra do Sol e a absolvição de um dos culpados pela morte da missionária Dorothy Stang, no Pará, do que sonha a vã filosofia. Esses conflitos se desenrolam em terras da União – o que está em jogo é se a propriedade pública vai ser reconhecida como reserva indígena ou se os arrozeiros terão direito à posse definitiva da terra invadida; se madeireiros continuarão a desmatar território que não é deles e abrir fronteiras primeiro para gado, depois para o plantio; se os grileiros de terras da União, assentados em grandes propriedades invadidas, vão se sobrepor aos posseiros de pequenas áreas, relegando ao passado áreas de cultura extrativista. São nessas terras da União que a ex-ministra enfrentou mais resistência à política de meio ambiente que propunha. A Amazônia Legal é, em sua grande parte, território do governo. É lá que se desmata.

A região amazônica é conflagrada e os conflitos são mediados da pior maneira pela Justiça local. Vide o segundo julgamento da morte da missionária Dorothy Stang – na semana passada, a Justiça inocentou o fazendeiro acusado de ser o mandante do assassinato. A União não é parte dessa mediação política e, quando se mete, acaba pendendo a balança para a grande propriedade. Quando as decisões de governo vão em outro sentido, a Justiça entra em campo, como no caso do Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu a remoção de arrozeiros em terra demarcada de indígenas, a Raposa Terra do Sol. Governo, Justiça e cidadãos estão lidando, neste caso, com um "direito de propriedade" que não é privado, mas pode se tornar na medida em que a apropriação de um bem público for reconhecida como legítima. É o capitalismo flagrado em seu pecado original: na apropriação privada do que é público.

As alianças políticas feitas pelo governo Lula vão na direção oposta dos interesses de índios, posseiros ou mesmo a simples preservação da mata na solução desses conflitos. A Amazônia Legal é bangue-bangue – uma ocupação selvagem da terra pública, onde grandes propriedades são conquistadas à bala, ou por força de corrupção. Os fazendeiros, por sua vez, enriquecem e garantem a impunidade e a influência sobre a política institucional, aliando-se a sucessivos governos para neutralizar a ação pública em favor da preservação do patrimônio da União. Por irônico que seja, o direito de propriedade privada reclamado (por arrozeiros, madeireiros, plantadores de soja, donos de fazendas de gado etc.) é o direito de apropriação da propriedade pública. Essa reivindicação, todavia, não é vista como um atentado à propriedade, mas como "regularização" dela.

Governo "esqueceu" a política agrária
A aprovação pela Câmara de uma medida provisória que aumenta o limite de área que pode ser concedida pela União para uso rural, sem processo de licitação, de 500 para 1,5 mil hectares na Amazônia Legal, no mesmo dia em que a ministra Marina Silva pedia demissão, não foi inocente. Aliás, foi quase uma provocação. Essa MP substituiu um projeto do deputado Asdrubal Bentes (PMDB-PA), por negociação com a chamada bancada ruralista. Como MP, já produzia efeitos que dificilmente podem ser revertidos: permite aos grileiros da Amazônia Legal "comprar" do Incra, mediante preço que o Instituto tem o poder de definir como justo, a terra que foi apropriada à bala, desmatada e – não raro – explorada com trabalho escravo. É a institucionalização da grilagem.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao longo dos cinco anos em que a ministra Marina Silva esteve no seu gabinete, assumiu opções políticas que não foram as dela. Em alguns momentos, chegou a ridicularizar as diferenças com ela em torno das questões do meio ambiente (que, entenda-se, são indissociáveis do conflito agrário na Amazônia Legal). É o presidente Lula que não impõe filtros às "exigências" da bancada ruralista. Manteve também frouxas as relações do governo com os movimentos sociais, de forma que, se dá liberdade de ação a eles, cede muito mais ao outro lado. Lula vale, segundo líderes de movimentos sociais, pela liberdade de ação que dá, pura e simplesmente. De resto, a política agrária do governo, exceto por políticas de apoio à propriedade familiar, não existe. Nessa área, como ela envolve direito de propriedade, nunca o governo cedeu à esquerda.

A demissão de Marina Silva não foi uma surpresa. Foi uma escolha que o presidente Lula fez no seu primeiro dia de seu governo. Não foi feita nenhuma ousadia na área de meio ambiente, nem na de reforma agrária. Pelo contrário. A opção, clara, foi a de não fazer marola, e manter o status quo.

Artigo
Maria Inês Nassif é editora de Opinião
15/5/2008

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