Empregados da Floresta

 18/09/2008

Quando de sua visita relâmpago em Mato Grosso, o Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, mais uma vez, manifestou sua preocupação com o fechamento de postos de trabalho em função do embargo de madeireiras e serrarias que operam ilegalmente no norte do estado dizendo: “podemos fechar uma serraria em uma hora. Mas quanto tempo vamos precisar para criar cinqüenta empregos?" 
     
A preocupação é relevante, mas precisamos analisar com mais profundidade essa questão que tem sido muito debatida aqui e alhures. 
     
A análise deve começar com uma pergunta: será que esses empregos gerados pela exploração florestal, da maneira como é feita hoje, interessa ao estado de Mato Grosso e ao Brasil? Sem rodeios, afirmo que não interessa. Mas é necessário contextualizar a discussão do ponto de vista operacional, histórico, político e econômico. 
     
Do ponto vista operacional é fartamente sabido que a grande maioria da extração de madeira em Mato Grosso se dá de maneira ilegal e começa com o “torero” ou extrator ilegal de toras que é a ponta da lança da ilegalidade nas fraudes contra a gestão florestal. O “torero” é o “traficante de madeira”, é quem fornece a madeira ilegal para ser “esquentada” pelas madeireiras que fraudam os sistemas. Sem o “torero” não haveria fraudes, assim como sem o traficante de drogas não haveria o consumo ilegal de drogas. Ressalte-se que o “torero” procura sempre atuar em áreas remotas, geralmente no extremo norte do estado, em que, se utilizando da exploração de trabalho análogo ao escravo, monta acampamento e mantém os trabalhadores em precárias condições para extrair dessas áreas, de maneira totalmente clandestina, ou às vezes a mando de proprietários sem licença alguma, madeira para abastecer madeireiras que fraudam os sistemas de controle e gestão florestal. Esses infratores se aproveitam da total ausência da “longa manus” estatal nesses locais remotos para a prática de toda sorte de ilícitos que começa com a chamada escravidão branca e vai até o crime ambiental, passando por porte ilegal de armas e aliciamento de menores. 
     
Mas a extração legal da madeira também não foge muito a essa regra e conta também com o trabalho análogo ao de escravo em número bastante relevante e que tem sido muito difícil de dimensionar dada a informalidade com que é tratada essa questão pelo governo do estado, que mal consegue dimensionar a quantidade exata de madeira que é extraída no estado, quanto mais, de que forma ela saí da floresta. 
     
A segunda etapa da extração se dá nas madeireiras, responsáveis pelo beneficiamento rudimentar da madeira em Mato Grosso que, em sua grande maioria, também mantém os seus trabalhadores em precárias condições, tanto do ponto de vista da legalidade na contração, como das condições de trabalho e, principalmente, quanto à segurança do trabalho, pois essas madeireiras mantém ainda, nos dias atuais, altos índices de acidentes, onde trabalhadores sem EPI e EPC têm suas mãos e braços cruelmente decepados. 

O trabalho técnico especializado de beneficiamento da madeira feito por profissionais bem pagos e com condições dignas de trabalho é deixado para os grandes centros de produção de manufaturas no centro-sul do país, para onde é levada nossa madeira, praticamente in natura. 
     
Depois de extraída toda a madeira comercialmente viável, entram os empreiteiros, chamados “gatos” que também contratam mão de obra análoga à de escravos para fazer as derrubadas, para, em seguida, realizarem as queimadas para a inicial transformação das áreas em pastagens e, logo depois, transformá-las em monoculturas. 

Esse é o processo. Com algumas pequenas variações, mas ainda tem sido sempre assim que acontece, e do ponto de vista da geração de empregos, o que temos? Precárias condições de trabalho, salários aviltantes, exploração de menores, e por aí vai… Esses empregos, seguramente, não interessam a ninguém.

Do ponto de vista histórico, assiste razão, em parte, àqueles que defendem que houvera uma época, até o início da segunda metade do século passado, em que essas práticas eram estimuladas pelo governo. É verdade, mas isso foi há muito tempo. Assim como, também, em um passado bem mais longínquo, houvera uma época em que os colonizadores portugueses estimularam os Bandeirantes a interiorizarem suas ações, a fim de capturar e escravizar indígenas em Mato Grosso, e se recuarmos mais um pouquinho ainda, esses estímulos eram dados também aos traficantes de negros que os traziam da áfrica para serem escravizados nas plantações de cana-de-açúcar da colônia no nosso litoral. Todas essas práticas, embora sem a concordância de todos, eram instigadas pelo poder oficial de cada uma dessas épocas. 
      
Mas a sociedade tende a avançar e isso não quer dizer que essas ações estavam corretas, mesmo à sua época, e esse avanço da sociedade, em busca de melhores condições de vida para todos, vem demonstrando que essas práticas eram contraproducentes e deveriam, foram e ainda devem ser combatidas veementemente. 
      
Hoje, existem, assim como naquelas épocas também existiam, pessoas que ainda vêem com naturalidade o empregado doméstico ser tratado como trabalhador de segunda classe sem a maioria das garantias constitucionais dadas aos demais trabalhadores de outras categorias e, o que é mais absurdo ainda, existem pessoas que defendem que é melhor o cidadão trabalhando em condições análogas à de escravo do que sem trabalho! Os erros do passado não podem justificar os do presente. O discurso de mais empregos não pode se sobrepor aos princípios maiores de proteção à dignidade da pessoa humana. 
      
E é com propriedade que trato dessa questão do trabalho análogo ao de escravo, pois meu pai, o famoso Riviria, que já não está mais entre nós há mais de 20 anos, em sua época, foi um desses Bandeirantes que, estimulado pelos governantes e financiado pelos grandes proprietários rurais atuou como empreiteiro ou “gato” em grandes empreendimentos, nas décadas de 60 e 70 do século XX, para aberturas de novas áreas. 
      
Ele desmatou, nessa atividade, mais de um milhão de hectares, segundo as contas de minha mãe. Riviria ou Rivirado, como era chamado quando estava no mato, era um fenômeno, pois com suas poucas letras e sem ter dado uma &uacu
te;nica entrevista em jornal, rádio ou televisão, era, e ainda é, personagem muito conhecido em todo o estado de Mato Grosso, sul de Rondônia e norte do Pará. A diferença dele para os demais importantes personagens da história de Mato Grosso é que ele nunca foi prestigiado como o são àqueles que sempre tiveram poder político e econômico em Mato Grosso, daí, apesar da sua importância, por ser homem simples do povo, jamais teve ou terá uma rua ou uma praça com placa de inauguração com o seu nome nela inscrito, como se têm, aos montes, dos poderosos, desde Pascoal Moreira Cabral, caçador de escravos indígenas, até os atuais grandes agropecuaristas, grandes infratores ambientais, que, muitos ainda em vida, podem ver seus nomes espalhados por ruas, avenidas, rodovias e praças por todo o estado. 
      
Naquela época, o trabalho análogo ao de escravo, também não era uma prática admissível, mas era uma prática muito mais aceita do que é hoje e que, atualmente, vem sendo combatida com mais força, como deveria ter sido também no passado. E urge mesmo que avancemos, pois a sociedade mundial vem descobrindo, muito rapidamente, que se não enfrentarmos a questão socioambiental no nosso planeta, Gaia não sobreviverá para nos abrigar. 
     
Nessas questões temos que agir como novos abolicionistas, lutando até mesmo contra nossas origens e, principalmente, contra os grandes infratores (os Senhores da Casa Grande da atualidade), libertando dos grilhões, esses trabalhadores que, como os índios e escravos de outrora, não têm outras alternativas! Grilhões esses, que antes eram feitos em ferro fundido e, agora, são forjados em uma massa embrionária sofrida de desvalidos de toda a sorte. 
     
Do ponto de vista político, as instituições que combatem todas essas mazelas sofrem e enfrentam muitos problemas para concretizar as suas vocações, muito pela falta de recursos e meios materiais provenientes dos parcos orçamentos aprovados pelas Casas Legislativas, que têm grande maioria de representantes dos setores do agronegócio e do setor madeireiro, e que ora, propugnam pela geração de mais desses empregos aqui analisados. 
     
Mas muito mais ainda, pela falta de sensibilidade e apoio dessa mesma classe política mato-grossense que vêem, nessas instituições, grande ameaça aos seus interesses. Um exemplo claro disso, foram as intervenções de apoio da classe política aos infratores ambientais na região de Alta Floresta, com comícios e pronunciamentos nos vários fóruns à que tiveram acesso esses “representantes do povo” e que culminaram com o cárcere privado de 39 Fiscais do IBAMA na câmara legislativa do município de Paranaíta em 12/06/2007, ação essa que se transformará, com certeza, em Denúncia Criminal dos implicados. 
     
E por derradeiro, do ponto de vista econômico é um verdadeiro desastre a continuidade dessas políticas que degradam o meio ambiente e maltratam os trabalhadores, pois, cada vez mais, insisto nessa tecla por importantíssima que é, os consumidores nacionais e internacionais trazem em suas carteiras de negócios exigências que não deixarão passar esses abusos, o que provocará, mais cedo ou mais tarde, o boicote aos nossos produtos e trazendo com ele a total falência dessa política do atraso. 
      
A solução para a geração de empregos dignos está na regularização fundiária justa; no licenciamento ambiental sério; na universalização da reforma agrária com condições mínimas de assistência social, técnica e financeira; no cumprimento incondicional da lei com fortalecimento das instituições de fiscalização e fomento; na adoção de políticas de compensação com justiça social e em investimentos massivos em educação. 
      
Não podemos mais aceitar que cidades inteiras do interior dos estados de Mato Grosso, Pará e Rondônia vivam com suas crianças vendo seus pais fugindo da legalidade, renegando a elas o direito de terem em casa o exemplo de cidadãos ciosos e cumpridores da lei, pois, que futuro terão essas crianças, se, desde cedo, aprendem a conviver com a ilicitude escamoteada? 
      
As Florestas brasileiras não são culpadas do abismo social entre pobres e ricos no Brasil e sua vocação para grande regulador do clima do planeta não pode ser renegada! Na questão da preservação e da utilização sustentável das Florestas, temos muito a aprender com os povos indígenas e com os caboclos amazônicos, e só não vê quem não quer: Gaia nos reservou a grande tarefa de cuidar desse pulmão, nos deu o melhor e, num futuro muito próximo, mais bem remunerado emprego do Mundo! 

Autor do artigo acima, Adamastor Martins de Oliveira é analista ambiental – agente federal de fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). E-mail: [email protected]

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