Segundo maior produtor de cacau do Brasil, o Pará continua sendo palco de casos que justificam a primeira posição em outro ranking: a de campeão nacional em libertações de trabalhadores submetidos à escravidão. Desta vez, a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Pará (SRTE/PA) encontrou 120 trabalhadores e mais 30 crianças em situação análoga à de escravo em domínio da Perfil Agroindústria Cacaueira S/A, no município de Placas (PA), em área de difícil acesso, às margens da Rodovia Transamazônica, a 1,2 mil km da capital Belém.
A fazenda pertence a Juarez Marinho dos Santos e Nivaldo Rodrigues da Silva. E a administração estava por conta de Agenilson José dos Santos, que deixou seus pais Agenor e Eulalice dos Santos tomando conta da fazenda.
Crianças trabalhavam para ajudar as famílias na tentativa de "honrar" dívidas (Foto: SRTE/PA) |
A equipe que libertou 150 pessoas chegou à fazenda em 16 de setembro e permaneceu no local até 4 de outubro. Faustino Pimenta, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) de Belém que participou da fiscalização, conta que as 30 crianças foram levadas a abrigos pela prefeitura, mas as 70 famílias (172 pessoas) continuaram no local. Segundo ele, o município é carente e o isolamento da fazenda dificulta a retirada das pessoas, que receberam cestas básicas e atendimento médico.
O caso se agravou ainda mais porque, com o retorno do grupo fiscal, não se conseguiu providenciar a segurança das famílias que permaneceram. Os policiais que participaram da ação também tiveram que deixar a fazenda de cacau para participar de outra operação: a do primeiro turno das eleições, ocorrida no dia 5 de outubro.
"Encaminhamos um pedido para a Secretaria de Justiça [e Direitos Humanos do Estado do Pará (Sejudh)] enviar, pelo menos, dez policias ambientais para garantir a segurança das famílias. Mas isso não foi possível", conta José Ribamar Miranda da Cruz, auditor fiscal da SRTE/PA e coordenador da ação. Infelizmente, a preocupação da equipe de fiscalização acabou se confirmando.
Sem a presença de representantes do poder público, um dos trabalhadores escravizados acabou sendo espancado. Existem indícios inclusive de que ele tenha sido vítima de torturas praticadas por policiais militares locais, mas não há provas de que as agressões tenham a ver com a fiscalização. Versões não confirmadas aventam a suposta participação do mesmo trabalhador como réu em outro crime. "Isso não justifica esse tipo de violência. A polícia tem que instaurar o inquérito e investigar", coloca o procurador Faustino.
"Esse funcionário foi justamente o que forneceu mais informações para a fiscalização", conta o auditor José Ribamar, reforçando a tese de possível represália. O trabalhador espancado foi removido para Santarém (PA).
Na opinião do procurador Faustino, a resposta do governo estadual, que deveria garantir a segurança do trabalhador, não foi satisfatória. Ele conta que chegou a encaminhar uma requisição oficial à Sejudh, solicitando a proteção dos libertados da escravidão. "Nessas horas, a contrapartida do Estado precisa ser incontestável. Ainda mais quando o governo estadual tem uma agenda de combate ao trabalho escravo. Não foi o que aconteceu".
No ano passado, a governadora Ana Júlia Carepa instalou a Comissão Estadual de Combate ao Trabalho Escravo (Coetrae-PA) e anunciou uma série de ações conjuntas com outros estados para atacar esse tipo de crime. A Repórter Brasil tentou entrar em contato com a Secretaria de Justiça e de Direitos Humanos do Pará, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.
Os trabalhadores da fazenda que mantém uma produção milionária de cacau estavam submetidos à escravidão por dívida. Quando chegavam até a propriedade para pedir emprego, eram logo "convocados" a assinar um contrato com determinadas obrigações. "Nas primeiras linhas, esse documento já deixava claro a exploração dos empregados", relata Faustino, do MPT.
E antes mesmo de iniciar o serviço, os empregadores encaminhavam o contratado até um comprador de cacau. Esse último fazia uma "permuta" com os trabalhadores: em troca de toda a produção, ele "concedia" produtos alimentícios e materiais para a construção do barraco onde as famílias morariam pelo período do trabalho. Fertilizantes e agrotóxicos, bem como outros equipamentos necessários para o trabalho, entravam na conta.
Os fiscais encontraram casos como o de um trabalhador que assinou uma nota promissória, em um dos estabelecimentos dos compradores de cacau, se comprometendo a fornecer oito toneladas em troca de alimentos. Só o empregador ganhava no sistema, salienta José Ribamar.
Para tentar pagar a dívida, os trabalhadores colocavam a família toda para trabalhar, incluindo crianças, algumas com apenas cinco anos. "O que ocorre é um acumulo do débito, caracterizando trabalho análogo à de escravos", explica o coordenador da ação. "Ouvimos ainda relatos de violências, ameaças e todos os tipos de violações aos direitos humanos. Por exemplo, algumas pessoas foram agredidas por policiais, que foram chamados pelo patrão por reclamarem das condições de trabalho", adiciona o procurador Faustino, corroborando a tese de possível vinculação de integrantes da força policial com o quadro de exploração de mão-de-obra escrava.
No local havia 70 famílias, totalizando 172 pessoas. "Encontramos 52 crianças, mas trinta delas trabalhavam, as outras eram muito novas, com menos de cinco anos", complementa o auditor fiscal. Ainda de acordo com ele, algumas famílias vieram de áreas próximas de Placas (PA), na região central do estado, e outras de cidades do Maranhão.
Como se não bastasse, uma criança ainda ficou cega após acidente de trabalho. "Ela estava carregando o cacau, quando tropeçou em um tronco e caiu com o olho esquerdo em um toco
de madeira", conta José Ribamar. A maioria da crianças está doente, algumas com leishmaniose e outras com úlcera de Bauru. "Nessa área há muitas cobras, escorpiões, carrapatos, entre outros bichos. Essas pessoas não têm nenhum tipo de proteção contra isso".
"Achamos casas cobertas de lona, de palha, muitas sem parede lateral e de chão batido, algumas com teto feito de placas de madeira, enfim, todas sem as mínimas condições de abrigar uma família", conta José Ribamar. Ele salienta que as construções de abrigos ficavam por conta dos próprios trabalhadores, em desacordo com a lei. Uma das famílias trabalhava no local há seis anos.
A exploração também se dava por meio do preço "pago" – na maioria das vezes, descontado da dívida contraída anteriormente – pelo quilo do cacau. Em média, o quilo custa entre R$ 4 e R$ 5, mas para os trabalhadores eram "pagos" R$ 3, no máximo.
De acordo com levantamento feito pelo MPT, o projeto foi financiado pela antiga Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), que se tornou notória no passado pelos escândalos de desvios de verbas federais. A fazenda teria sido beneficiada por R$ 9,6 milhões, em 1998.
Até o momento, os proprietários – que não comparecem ao local e negociam por meio de um advogado – cederam apenas um cheque para depósito judicial de R$ 45 mil. Houve negociações para o pagamento aos trabalhadores por acordo extrajudicial, mas não houve acerto. Hideraldo Luiz de Sousa Machado e outro integrante da Procuradoria Regional do Trabalho (PRT) da 8a Região, em Belém, estiveram na fazenda e obtiveram uma confissão da existência de dívida por parte de Agenilson, encarregado da fazenda. A partir disso, o MPT deve encaminhar uma ação civil coletiva que deve garantir o crédito aos escravizados mediante juízo, além de outras medidas judiciais cabíveis.
*atualizado às 19h desta quarta-feira (15)
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