Mato Grosso do Sul

Irregularidade em frigorífico gera ação de R$ 3 mi contra Marfrig

Procurador que esteve na unidade de Porto Murtinho (MS) acusa empresa de negligência e de descumprimento da norma trabalhista. Grupo Bertin também assina acordo com MPT em que se compromete a cumprir 21 cláusulas legais
Por Maurício Hashizume
 20/10/2008

Se tivesse sobrevivido ao acidente em que foi atingido por 20 barras de ferro de 6,5 m de comprimento e 35 kg cada na unidade do frigorífico Marfrig em Porto Murtinho (MS), Valdecir Elias da Cruz – que era faqueiro e ajudava na manutenção de instalações internas – não seria atendido por um médico do trabalho, mas por um ginecologista.

A situação hipotética oferece um exemplo das irregularidades apontadas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) na ação civil pública pelo procurador Heiler Ivens de Souza Natali, que pede a condenação em R$ 3 milhões da Marfrig por dano moral coletivo. 

Protocolada na Vara do Trabalho de Jardim (MS) no final de setembro, a ação foi precipitada por uma inspeção feita por representantes de órgãos trabalhistas no frigorífico em fevereiro deste ano. Auditores da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Mato Grosso do Sul (SRTE-MS) e membros da Procuradoria Regional do Trabalho da 24ª Região (PRT-24) foram até Porto Murtinho (MS) para verificar o cumprimento de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) envolvendo a prefeitura local e ficaram sabendo da ocorrência que subtraiu a vida do funcionário da Marfrig.

Quando chegaram ao local, procuradores e fiscais encontraram o que Heiler classificou como "um rosário de irregularidades". Os pesados canos atingiram Valdecir, que estava numa pequena carreta junto com o material, após o desequilíbrio provocado pelo afundamento dos pneus do trator que puxava a carga em solo arenoso. O autor da ação vê negligência por parte da empresa, pois o acidente era "previsível".

Quando a equipe de fiscalização foi buscar a ficha do trabalhador, descobriu que a Marfrig vinha exigindo atestado de antecedentes criminais para contratação de funcionários, o que é ilegal. Segundo Heiler, empregados do frigorífico também vinham sendo induzidos a assinar advertências em branco para utilização em casos de faltas, atitude que pode ser caracterizada como assédio moral. Os intervalos previstos em lei também não eram devidamente cumpridos e a jornada de trabalho chegava a superar 15 horas por dia.

"A funcionária que era vice-presidente da Cipa [Comissão Interna de Prevenção de Acidentes] nunca tinha ouvido falar no Programa de Prevenção de Riscos Ambientais [PPRA]. Uma enfermeira muito pouco qualificada elaborava o PPRA", denuncia Heiler. Na sala reservada para a Cipa, aliás, uma das cadeiras estava sem roda. "O auditor que sentou quase sofreu um acidente no momento da fiscalização", relata o procurador.

O contrato do médico ginecologista – e não profissional da área especializada do trabalho – que prestava serviço para a Marfrig em Porto Murtinho também não atendia aos padrões. Ele comparecia com menos freqüência à indústria do que exige a lei. O pagamento de R$ 3 milhões de danos morais coletivos está sendo cobrado pelo MPT para a criação de um centro de reabilitação profissional em Jardim (MS), a construção de um centro de qualificação de mão-de-obra em Porto Murtinho (MS) e o custeio de cursos de capacitação de trabalhadores no mesmo município.

Empresa de capital aberto na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), a Marfrig possui um código de ética em que assume uma série de compromissos de respeito às leis e às normas de saúde e segurança do trabalho. "São juras hipócritas. O cumprimento deste código é fantasioso", critica o autor da ação, que diz ter apreendido documentos que atestam as ilegalidades apresentadas na ação civil pública. A responsabilidade pelo caso está agora com a Justiça do Trabalho, que deve ouvir o posicionamento da empresa.

Inaugurada em 2006, a unidade do Marfrig em Porto Murtinho, na região de fronteira com o Paraguai, nunca havia sido fiscalizada pelo MPT e nem por fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). "Trata-se de uma planta relativamente nova, que deveria estar dentro dos padrões exigidos atualmente. Os problemas encontrados mostram a falta de compromisso da empresa", complementa Heiler. Desde fevereiro até o final de setembro, houve negociações do MPT com advogados da empresa. Nas palavras do autor da ação, porém, a direção da empresa não aceitou pagar os valores propostos para que um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) fosse firmado.

Apenas no ano passado, o faturamento do Marfrig bateu R$ 2,7 bilhões. O grupo é o quarto maior produtor mundial de carne bovina. Conseguiu captar cerca de R$ 1 bilhão em julho de 2007, quando colocou ações à venda na Bovespa. A empresa, que recentemente comprou outras 20 empresas dentro e fora do país, possui dez unidades de abate de gado bovino no Brasil – duas delas no Mato Grosso do Sul, uma em Porto Murtinho e outra em Bataguassu -, cinco na Argentina e outras quatro no Uruguai; o frigorífico também processa carnes de aves e de suínos.

O Marfrig declara que ainda não havia sido citado a respeito da ação civil pública até a última sexta-feira (17). O grupo alega que cumpre o código de ética adotado no final de 2007 e que "o bem-estar e a segurança" dos seus empregados são "preocupação máxima da empresa". Segundo o frigorífico, o cumprimento da legislação em relação à saúde e segurança do trabalho é objeto de "vigilância constante", "com cursos constantes de aperfeiçoamento profissional, fornecendo todos os equipamentos de segurança do trabalho necessários ao exercício da função, bem como o treinamento orientações necessárias para o uso dos mesmos".

O frigorífico também declara que promove campanhas para a prevenção dos acidentes no trabalho e que implantou, há cerca de 45 dias, uma lista de checagem das normas regulamentadoras de segurança na maior parte de suas plantas, com previsão de controle mensal por parte da diretoria de recursos humanos. O Marfrig diz atuar ainda para prevenir doenças ocupacionais.

De acordo com a empresa, a somatória de 44 horas semanais de trabalho é respeitada "integralmente" e apenas em alguns casos há um adicional de duas horas na jornada diária, conforme prevê a lei e as convenções acertadas entre o Marfrig e os sindicatos de cada localidade. "Por lidar com produto perecível, há situações em que a jornada pode sofrer uma extrapolação, hipótese essa também prevista em lei (art. 61 da Consolidação das Leis Trabalhistas)", adiciona a nota da empresa.

Compromisso acordado
Por causa de irregularidades flagradas em unidade no município de Naviraí (MS), outro grande frigorífico brasileiro assinou um TAC com 21 cláusulas para
o devido cumprimento da legislação e das normas trabalhistas. Por meio da atuação do procurador Gustavo Rizzo Ricardo, o grupo Bertin se comprometeu a não mais permitir a ocorrência de assédio moral, abuso de poder ou práticas discriminatórias no ambiente de trabalho – de acordo com os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Constituição Federal.

O termo exige que a empresa providencie a realização de palestra sobre assédio moral – durante o horário de trabalho e sem qualquer tipo de desconto nos salários – e forme ainda um comitê de empregados para avaliar possíveis casos de abuso e irregularidades.

Informações do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Dourados (MS) dão conta de que existem procedimentos instaurados quanto ao descumprimento da legislação trabalhista da parte do Bertin – como Comunicações de Acidentes de Trabalho (CAT) não emitidas, jornadas de trabalho exaustivas, desrespeito às Normas Regulamentadoras 17, 7 e 19, PPRA em desacordo e problemas no exame médico – há pelo menos três anos.

O acordo assinado em meados de setembro cobra jornadas regulares (com devido pagamento de hora extra), a implantação de sistema inviolável de registro dos horários de trabalho, a fiscalização dos riscos a que estão submetidos os trabalhadores em condição insalubre. O Bertin deverá ainda garantir que somente os médicos da empresa prescrevam medicamentos aos trabalhadores, não recusar atestados médicos assinados por médico particular e, nas rescisões contratuais, aguardar perícia para verificação da incapacidade e o nexo causal (relação que comprova se a doença ou acidente ocorreu em virtude das atividades relacionadas à ocupação do trabalhador).

Para cada cláusula, o TAC estabelece multas que variam de R$ 500 a R$ 5 mil por cada item descumprido e prevê a destinação dos valores em favor das áreas assistenciais da saúde em Naviraí (MS). O acordo ainda não engloba outras necessidades de ajustes referentes à ergonomia verificadas pelo procurador Odracir Juares Hecht e por integrantes do Fórum de Saúde e Segurança no Trabalho de Mato Grosso do Sul (FSST-MS), que estiveram frigorífico e curtume Bertin no dia 8 de julho deste ano.

Em nota, o Bertin declara que o TAC reafirma o compromisso do grupo "com a legalidade e a garantia de todos os direitos trabalhistas de seus colaboradores" e "prevê que a empresa estabeleça parâmetros com relação a alguns aspectos subjetivos na legislação trabalhista vigente". Dos 25,5 mil funcionários do Bertin, mais de 2 mil trabalham na unidade de Naviraí. Uma das maiores do setor com um total de vendas de R$ 1,2 bilhão em 2007, a companhia mantém outra unidade em testes operacionais na capital Campo Grande.

Recentemente, o Bertin obteve dois volumosos financiamentos: conseguiu um financiamento de US$ 90 milhões da International Finance Corporation (IFC), braço do Banco Mundial responsável por empréstimos ao setor privado, e recebeu outros R$ 2,5 bilhões para ampliar a capacidade de suas fábricas e consolidar o plano de internacionalização da principal fonte de empréstimos para o fomento da indústria nacional – o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

O Marfrig é citado no estudo "Conexões Sustentáveis São Paulo – Amazônia: Quem se beneficia com a destruição da Amazônia?" por causa de ligações comerciais que teve com pecuaristas da região amazônica que constam da "lista suja" do trabalho escravo, relação mantida pelo MTE com o nome dos infratores e das propriedades flagradas utilizando mão-de-obra escrava.

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