Especial – Sul 2

RS, PR e SC recebem 43% dos R$ 13 bi para produção familiar

Repórter Brasil conferiu experiências de agricultura familiar no Sul do país e encontrou cultivos de sementes crioulas no PR, iniciantes no pinhão-manso no RS e pressões de grandes agroindústrias sobre pequenos produtores em SC
Antônio Biondi
 29/10/2008

Leia a matéria de abertura do Especial – Região Sul:
Crises mundiais reforçam papel central da agricultura familiar

A tradição e a força da agricultura familiar na Região Sul do país estão refletidas em números. Segundo projeções do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), os produtores de pequena escala dos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina devem ficar com cerca de 43% (R$ 5,6 bilhões) dos R$ 13 bilhões reservados para suprir a safra 2008/2009.

Um quinto (R$ 2,6 bilhões) será destinado aos produtores de pequena escala do Rio Grande do Sul, que respondem por 55% do Produto Interno Bruto (PIB) do setor do agronegócio estadual e a nada menos que 27% do PIB gaúcho. O MDA aferiu ainda um crescimento exponencial de 429% nas operações de crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) nos meses de julho a setembro deste ano (os três primeiros meses do programa), em comparação com o mesmo período do ano anterior. Em 2008, já são 14.238 contratos, ante 2.690 em 2007.

Os estados do Paraná e de Santa Catarina receberão mais R$ 1,5 bilhão cada dos R$ 13 bilhões disponibilizados pelo cofre federal. No Paraná, a agricultura familiar responde por 40% do PIB do agronegócio paranaense e por 18% do PIB estadual. Já os pequenos produtores catarinenses são responsáveis por 41% do PIB do agronegócio e por 23% do PIB estaduais.

Paraná
Entre as inúmeras iniciativas dos produtores familiares, a dedicação para a garantia de sementes crioulas do milho merece destaque. No lote de Anísio Francisco da Rosa, que faz parte do no Assentamento Rondon III, no município de Bituruna (PR), cinco famílias participaram de um longo processo para preservar sementes naturais, livres de alterações genéticas, que representam tradições agrícolas seculares e são pilares das culturas tradicionais no Brasil e em outras partes do mundo.

Anísio exibe produto: famílias apostam no cultivo de milho sem contaminação (Foto: Antônio Biondi)

No lote da família de Anísio, foram plantadas cinco variedades (Asteca, Cravinho, Caiano, Carioca e Palha Roxa) de sementes. O trabalho exigiu dez anos para encontrar a melhor variedade crioula, chamada de milho Amarelo Precoce: cinco anos para chegar à semente definitiva, e mais cinco para garantir seu isolamento. "Se houver contaminação, são dez anos de trabalho que estão em jogo", afirma Fábio Lima Santos, integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que mantém atuação no local.

Na área de pouco mais de meio hectare cultivada com 15 kg de sementes crioulas estão sendo geradas 25 mil plantas e 30 mil espigas. A produção pode resultar até em três toneladas de milho. Uma pequena parte delas é enviada à Universidade Estadual de Londrina (UEL) e à organização Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (ASPTA), para distribuição e constituição de bancos de sementes. Outra porção é vendida em feiras e destinada a novos plantios e uma parcela de 2 a 2,5 mil kg é moída para servir de ração.

O plantio é totalmente livre de veneno e adubo químico: usa apenas esterco de carneiro e urina de vaca, além de calcário. Produzindo a própria semente e valendo-se de técnicas alternativas de plantio, os produtores conseguem uma economia significativa. E como não precisam adquirir sementes, essa economia aumenta. "Deus me livre de eu ter que comprar semente!", diz Anísio. Nas feiras regionais, variedades crioulas são compartilhadas. Em 2004, eram 102 tipos, só de milho. No ano passado, 138.

Na região, diversas entidades instruem os produtores a não plantar variedades de milho transgênico. Para Anísio, se não fosse esse trabalho, haveria risco de outros agricultores usarem as sementes modificadas. A ASPTA é uma das pioneiras no trabalho de resgate das sementes crioulas. O trabalho da organização no Paraná – que começou em 1993 nos municípios de Irati, Bituruna e Rebouças – é norteado por cinco verbos fundamentais: resgatar, avaliar, multiplicar, conservar e trocar. Com a assistência da ASPTA, o produtor faz experiências e promove a seleção das sementes.

André, da ASPTA, destaca as vantagens do uso de sementes do tipo crioulas (Foto: Antônio Biondi)

Os atrativos desse tipo de semente para os pequenos produtores são inúmeros: garantem autonomia ao produtor, podem ser replantadas e mantém produtividade estável. Além disso, protegem o agricultor do controle dos preços exercido pelas empresas de sementes. Apesar de todo o trabalho, a ASPTA teme que o que vem ocorrendo com a soja se repita no caso do milho. "Hoje, já é muito difícil de encontrar soja convencional pura", atesta André Emílio Jantara, assessor-técnico da entidade.

Além do plantio do milho, o lote de seu Anísio é pródigo na diversidade da produção e no auto-sustento. "Abatemos um ou dois bois por ano. Na realidade, consumimos mais a carne de porco, com o abate de uns vinte animais por ano. E alguns carneirinhos", conta. "Só vamos ao mercado para comprar café, açúcar, sal e algumas frutas".

Fábio Lima Santos, do MST, explica que a renda dessa forma de produção é "a família vivendo bem". Ele estima que cerca de 70% das famílias do Assentamento Rondon III trabalham como seu Anísio. "Os outros 30% vendem as coisas para comprar no supermercado. Pega o dinheiro da venda na cooperativa e vai deixar no mercado".

Rio Grande do Sul
Em Cerro Grande (RS), o agricultor familiar Gélio Suptiz pode ser considerado como um produtor exemplar que mistura a tradição da pequena produção local com novidades que podem ajudar a ampliar sua renda. Além do gado e de vacas leiteiras, Gélio também cria frango caipira. A propriedade tem também plantio de milho, que é usado na base da cozinha familiar e também na alimentação dos animais. Parte da palha do milho também é utilizada como adubo, assim como as palhas da soja e do feijão, o "talo" do fumo, as cascas da fruta, os restos da mandioca e o esterco animal.

Gélio planto
u mudas de pinhão-manso, que pode produzir biodiesel ou adubo (Foto: Antônio Biondi)

A nova empreitada da família é um pequeno pomar, com tangerina, limão e outras frutas, a maioria para consumo próprio. No final de 2007, incentivado pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Gélio plantou algumas mudas de pinhão-manso. O cultivo poderá ser utilizado no futuro para a produção de biodiesel. As tortas da planta também podem servir de adubo. Entusiasmado com o crescimento da planta, o produtor familiar não sabe exatamente o tamanho que o pé poderia atingir e tampouco conhecia o formato do fruto do pinhão-manso.

As possibilidades ligadas à produção de biodiesel a partir do pinhão-manso embalam projetos semelhantes em outras regiões do país – confira a íntegra do estudo "O Brasil dos Agrocombustíveis – Palmáceas, Algodão, Milho e Pinhão-Manso – 2008" (em pdf). Os pontos comuns das diferentes iniciativas são a cautela com que os pequenos produtores começam a lidar com a cultura e a  desinformação que ainda grassa entre boa parte deles.

Na região, o MPA conta também com um projeto de produção de etanol, a partir de nove microdestilarias. O álcool dessas unidades será beneficiado segundo as especificações do governo federal em uma usina do movimento na cidade de Frederico Westphalen (RS), com capacidade para 5 mil litros de álcool por dia. Na propriedade de Gélio, alguns pés de eucalipto podem colaborar no projeto. Em cerca de três ou quatro anos, o agricultor calcula que possa cortar a madeira para vender, para contribuir com o projeto elaborado pelo MPA ou para outros potenciais compradores.

Santa Catarina

Pressão de empresas sobre pequenos produtores
preocupa sindicalista de SC (Foto Antônio Biondi) 

O estado é marcado pela pujança de centros agroindustriais como Chapecó, no Oeste catarinense, e também pela dificuldade de integração entre os pequenos e as grandes empresas do setor. Sadia, Aurora e Perdigão, entre outras empresas, têm a região como um de seus eixos de produção.

Edgar Kramer, presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar em Chapecó e Região (Sintraf) explica os desafios enfrentados pelos pequenos produtores, e as saídas que estão sendo buscadas.

Repórter Brasil – Como está a situação dos agricultores familiares?
Edgar – A população rural na cidade vem caindo. As pessoas perdem o emprego na agroindústria, por não atenderem às exigências de qualificação de mão-de-obra. Com isso, o jovem está vindo para a cidade. As novas famílias também. Nenhuma menina de 15, 16 anos, fica mais na zona rural. Os piás [rapazes] ainda ficam. E os que vão para a cidade muitas vezes acabam no crime, no desemprego, nas favelas. Comunidades carentes, como Vila Rica e São Pedro, estão crescendo bastante.

Essa avaliação aponta para um cenário negativo, não?
A agricultura vive de perspectivas, e hoje você planta e não sabe se vai colher. O cenário para a agricultura familiar é de completa insegurança. E as parcerias de venda só beneficiam os grandes, ao passo que os pequenos entram com toda estrutura física e de trabalho. Em relação ao meio ambiente, o pequeno produtor tem que fazer TACs [Termos de Ajustamento de Conduta] com o Ministério Público, pressionado pelas empresas, para seguir as leis, mas as grandes indústrias não fazem nada.

Ouvi um programa no rádio em que as empresas divulgam os horários em que retirarão animais de cada produtor…
O pequeno produtor está com dificuldades de atender à demanda das empresas. Ele chega a fornecer animais 10 vezes em um mesmo ano e tem dificuldades até de fazer a higienização, de atender às exigências sanitárias. Muitos pequenos produtores fecharam seus aviários nos últimos anos, por ter que investir em higiene, ração, essas coisas, mais do que conseguiam com as vendas. Para você ter uma idéia, por 12 mil frangos, que é um lote a ser entregue, o agricultor recebe R$ 1,8 mil brutos. Neste cenário, o agricultor diz que está mais preso do que o pessoal da cidade.

Mas, sem as empresas, os pequenos estão criando alternativas?
Sim, parte dos agricultores está buscando outros caminhos. Existem as alternativas das agroindústrias familiares ou comunitárias. Em Chapecó, existem seis ou sete abatedouros familiares. As famílias tanto industrializam os produtos quanto comercializam para outras indústrias os animais já abatidos.

São cooperativas com proposta distinta à de outras da região?
Temos aqui, por exemplo, a Cooperalfa, que é uma grande cooperativa, ligada à Aurora, em que o interesse é o lucro. Por outro lado, temos, ligadas ao sindicato, duas cooperativas – a Cooperfamiliar, de produção, e a Cooperafle, de leite -, em que todos trabalhadores recebem o mesmo valor por seus produtos, independentemente da quantidade que produz.

No caso da Cooperalfa, os técnicos estão voltados a vender produtos, a gerar lucros para a cooperativa. Já os técnicos das cooperativas familiares trabalham para agregar valor à produção e gerar renda para as famílias.

Matéria atualizada às 19h09 do dia 12/11/2008 

Leia a matéria de abertura do Especial – Região Sul:
Crises mundiais reforçam papel central da agricultura familiar

Leia o relatório "O Brasil dos Agrocombustíveis – Palmáceas, Algodão, Milho e Pinhão-Manso – 2008 (na íntegra, em pdf)"segundo de uma série de documentos sobre o tema

Clique aqui e confira o site do Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis

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