Espírito Santo

Trabalhador rural é submetido a 20 anos de escravidão

Outros 5 trabalhadores também foram libertados graças à denúncia do filho de um deles à Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Espírito Santo. Ninguém recebia salário. Dono fornecia álcool para "prender" grupo
Por Bianca Pyl
 24/03/2009

Um agricultor de 55 anos permaneceu duas décadas de sua vida em condições análogas à escravidão. Ele trabalhava sem descanso semanal, sem receber salários, em troca de comida e bebida alcoólica. Outros cinco trabalhadores viviam na mesma situação – alguns há quatro, cinco e sete anos. Eles foram libertados da Fazenda Jerusalém, no município de Alegre (ES), pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Espírito Santo (SRTE/ES), em ação conjunta com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Polícia Federal (PF). A fazenda pertence a Peris Vieira Gouveia.

A fiscalização foi motivada pela denúncia do filho de um dos libertados. O grupo de empregados era composto por negros, uma pessoa com deficiência visual parcial e um homossexual – grupos que já sofrem preconceitos e discriminação na sociedade. "Visivelmente são pessoas excluídas da sociedade. Ali encontraram um espaço de exploração perversa, mas onde podiam, ao menos, comer", relata Afonso Celso Passos Gonçalves, auditor fiscal do trabalho que coordenou a ação na propriedade capixaba.

Os trabalhadores eram dependentes de álcool, que era fornecido pelo empregador, principalmente nos finais de semana. O auditor fiscal descreve que a fiscalização chegou por volta das 6h da manhã de segunda-feira (16), e constatou que os empregados ainda estavam dormindo. Afonso lembra que isso "não é muito comum para quem desenvolve atividades rurais".

"O proprietário se aproveitava da dependência dos empregados para mantê-los no trabalho. Isso ficou evidente", completa. O dono de um mercado próximo à Fazenda Jerusalém relatou aos fiscais que Peris Vieira comprava muitas garrafas de cachaça com freqüência.

O fazendeiro foi preso em flagrante pelo delegado da PF de Cachoeiro do Itapemirim (ES), pelo crime de redução de vítimas à condição análoga à de escravos, previsto no Art. 149 do Código Penal. Ele continua preso, segundo informações da PFl e da 2ª Vara Federal do Espírito Santo.

O salário era uma mera promessa. A fiscalização encontrou mais de dez cadernos com anotações das dívidas dos empregados, que nunca receberam um pagamento pelo trabalho realizado. Os funcionários dormiam no chão de um barraco. No local, não havia sanitários ou instalações elétricas. A água utilizada pelos empregados não era potável. Os fogões a lenha ficavam no mesmo ambiente onde dormiam. Eles não tinham Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e realizavam as atividades descalços e sem camisa. Os trabalhadores eram responsáveis por capinar, plantar e colher o café, além de cuidar de 30 cabeças de gado.

O proprietário disse que mantinha uma relação de amizade com os empregados e apresentou contratos de parceria com assinaturas reconhecidas em cartório. Oa auditor fiscal adverte, porém, que esses documentos não têm valor legal. "Era só um papel, que ele pensou ser uma garantia. Os trabalhadores disseram que o contrato nunca foi cumprido", conta Afonso Celso. Apesar das negativas, os fiscais estimam que os trabalhadores podem ter sofrido maus tratos (físicos e psicológicos) do empregador.

Os trabalhadores não receberam as verbas rescisórias porque Peris Vieira disse não ter condições de efetuar o pagamento. O procurador do Trabalho Djailson Matos Rocha entrou com as medidas para bloquear os bens do fazendeiro. "Na hora da fiscalização, o proprietário não apresentou condições para pagar os empregados. Então, entrei com uma liminar para bloquear as contas bancárias, além de requerer o arresto dos bens do fazendeiro", conta o procurador. Peris possui outras sete propriedades rurais.

A SRTE/ES está providenciando Carteiras de Trabalho e da Previdência Social (CPTS) aos libertados. Alguns não tinham sequer registro de nascimento.

A Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Espírito Santo pediu, na semana passada, as certidões da Fazenda Jerusalém ao Cartório de Imóveis de Alegre (ES). Também solicitou o encaminhamento da documentação relativa à fiscalização ao MPT, para que seja anexado ao processo administrativo. 

Segundo informações do Incra, estão sendo feitos levantamentos administrativos para efeito de vistoria no imóvel a fim de iniciar um processo para a desapropriação da Fazenda Jerusalém pelo não cumprimento da função social da terra. De acordo com o procurador Djailson, que enviou a documentação para o Incra, a prioridade é assentar os libertados.

Após a fiscalização, o procurador do Trabalho encaminhou as vítimas para a Secretaria de Ação Social, do município de Alegre (ES). Porém, a prefeitura entregou uma quantia em dinheiro aos trabalhadores para que voltassem a seus lares. No entanto, os libertados acabaram gastando o dinheiro com bebidas e permaneceram na cidade. Quando a SRTE/ES precisou falar com o grupo para providenciar os documentos que faltavam para dar entrada no Seguro Desemprego, descobriu a situação. A Secretaria de Ação Social foi novamente acionada para que encontrasse os trabalhadores.

A Repórter Brasil entrou em contato com a Secretaria de Ação Social, que informou já ter providenciado uma casa, além de ter destacado assistentes sociais para atender as vítimas. A secretaria se comprometeu a encaminhá-los para tratamento da dependência de álcool.

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