Trabalho

Para evitar fraude, ponto eletrônico terá comprovante impresso

Exigência faz parte de portaria do governo federal com conjunto de normas que regulamentam o registro eletrônico da jornada de trabalho. Sistema é utilizado por milhares de empresas e por milhões de empregados todos os dias
Por Bianca Pyl e Maurício Hashizume
 31/08/2009

Toda vez que bater o ponto no sistema eletrônico, o trabalhador terá de receber um comprovante impresso com o horário em que iniciou ou encerrou a sua jornada de trabalho. A mudança faz parte da regulamentação definida pelo governo federal para o sistema de ponto eletrônico, que faz parte do cotidiano de milhares de empresas e de milhões de empregados do país.

A utilização da tecnologia foi regulamentada pela Portaria 1.510, publicada no último dia 21 de agosto pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A portaria estabelece o prazo de um ano para a adoção do Registrador Eletrônico de Ponto (REP) que, entre outras exigências, deverá dispor de "mecanismo impressor em bobina de papel, integrado e de uso exclusivo do equipamento, que permita impressões com durabilidade mínima de cinco anos".

Para o procurador Geraldo Emediato de Souza, do Ministério Público do Trabalho (MPT) de Minas Gerais, a previsão do comprovante físico para os empregados é a "principal medida" da portaria. "O trabalhador, quando submetido ao registro eletrônico de jornada, não detém o controle [sobre o tempo real que está sendo contabilizado]. Considerando que os programas permitem a manipulação dos registros, nada garante que a jornada registrada seja efetivamente controlada e seja verdadeira. Com a emissão do recibo, o trabalhador vai ter o controle individual desta jornada de trabalho", explica.

Além da prova impressa de entrada e saída, o auditor fiscal do trabalho José Tadeu de Medeiros Lima, também de Minas Gerais, destaca que o novo registrador deve ter a capacidade de arquivar permanentemente todos as marcações digitais de pontos dos funcionários. Segundo ele, isso evitará que a gestão fraudulenta de dados do REP, que precisará ser submetido a avaliações técnicas para obter autorização de uso pelas empresas brasileiras.

De modo geral, a portaria do MTE define as normas do Sistema de Registro Eletrônico de Ponto (SREP), um conjunto de equipamentos e programas informatizados destinados a impedir fraudes no registro da jornada. A partir da publicação, está proibida a utilização de programas que: permitam restrições de horário à marcação do ponto; processem a marcação automática (tomando horários predeterminados como parâmetros); exijam autorização prévia para marcação de sobrejornada; e tenham qualquer dispositivo que permita a alteração dos dados registrados pelo empregado.

Procedimentos como esses já eram irregulares, coloca José Tadeu. A portaria, emenda ele, veio a especificar melhor o que não pode ser feito com relação ao ponto eletrônico, autorizado desde 1987. "Infelizmente, o sistema [eletrônico] vinha sendo utilizado pelos maus empregadores como eficiente instrumento de fraudes aos direitos trabalhistas e de insegurança jurídica nas relações de emprego", pontua José Tadeu, que atua em Juiz de Fora (MG) e fez parte do grupo de trabalho que ajudou a elaborar a portaria.

O universo de afetados pela portaria, apesar de impreciso, é imenso. "Em uma investigação preliminar, sem instauração de procedimento, mas apenas para verificar a abrangência desta lesão trabalhista, foram verificados 26 programas atualmente comercializados no Brasil. Cada um desses programas possui mais de cinco mil usuários, isto é, mais de cinco mil empresas compradoras. Não é possível mensurar exatamente esse número. Mas considerando que são milhares de empresas com milhares de empregados, imaginamos que esse universo seja muito grande", acrescenta Geraldo.

Fraudes
O MTE e o MPT têm recebido muitas denúncias relacionadas a fraudes nos sistemas de ponto eletrônico utilizados por grandes empresas como magazines varejistas e redes de supermercados. São denúncias formuladas por trabalhadores e sindicatos, que revelam fraudes nos sistemas, em especial com a finalidade de reduzir as horas extras laboradas.

Foram encontrados programas de controle de ponto eletrônico que permitem que o empregador, por meio de senhas, tenha acesso posterior às marcações dos empregados e possa inclusive fazer alterar horários de entrada e de saída, além dos intervalos para repouso e alimentação. Fraudes desse tipo são de difícil identificação. "Essa conduta impede a verificação de todas as normas legais de proteção aos empregados, relativas à jornada e à remuneração ou compensação das horas trabalhadas, sem contar as graves conseqüências que o excesso de jornada de trabalho pode provocar na saúde e segurança dos trabalhadores", aponta o auditor fiscal José Tadeu.

Outros sistemas propiciam ao empregador configurar o sistema para a marcação de ponto somente em horários pré-determinados. Com isso, o empregado fica impedido de registrar o horário real de entrada e saída. "É possível desbloquear o sistema ao teclar determinada letra do teclado, o que é feito geralmente quando da chegada de fiscais na empresa para realizar ação fiscal", discorre José Tadeu. Há programas que até apresentam mensagem ("horas extras não autorizadas") quando o empregado tenta marcar o ponto fora da hora estipulada e registram automaticamente a jornada contratual.

Alguns fabricantes desenvolvem sistemas que geram batidas automáticas, mesmo sem que o ponto seja batido. Esses sistemas fazem a marcação automática do horário com minutos a mais ou a menos (17h04 e 16h58, para jornadas que terminam às 17h, por exemplo), de forma aleatória, para parecer mais "real" e não configurar o chamado "ponto britânico".

Além do desconhecimento técnico da fiscalização trabalhista, a inexistência da regulamentação específica deixava outras brechas. No campo da Justiça, houve caso em que o magistrado chegou a questionar a necessidade de perícia nos sistemas eletrônicos sob a justificativa de violação de privacidade. De acordo com José Tadeu, "a grande maioria" dos processos sobre horas extras não contabilizadas, porém, "termina com a desconsideração das marcações" eletrônicas por conta da inconsistência dos dados.

José Tadeu conta que muitos programas não manipulam diretamente os registros de forma fraudulenta, mas permitem que o empregador assim o faça. Até por isso, o ministro Carlos Lupi chegou a citar o combate à "concorrência desleal" como uma dos efeitos da recém-publicada norma.

Grandes redes
Casos de trabalhadores de grandes empresas que se dizem vítimas de fraudes do ponto eletrônico foram parar com Ileana Mousinho, procuradora do trabalho de Natal (RN). "Um juiz do Estado, ao julgar muitas ações individuais de trabalhadores contra uma rede de supermercado
s, decidiu fazer uma auditoria pessoalmente e verificou que o log [para auditoria do software] estava desligado, o que é um forte indício de fraudes. Se a empresa desliga justamente o sistema que marca todas as alterações que são feitas é porque você não quer mostrar quais alterações está fazendo", indica Ileana.

A mesma rede de supermercado confessou ao juiz que alterava "para o bem" as marcações. "Uma gerente, que está movendo ação contra esta empresa, confessou que ela alterava o sistema, por ordem dos superiores, ela afirmou ser comum as alterações", conta a procuradora. Segundo ela, o sistema das grandes empresas é centralizado, sinal de que as fraudes podem ocorrer em filiais. "Nós chamamos o sistema de ´Folha 2´ (em analogia ao Caixa 2)".

A nova regulamentação impõe regras a empresas especializadas. Antes da portaria, várias faziam anúncios das "vantagens" sem nenhum constrangimento. Uma das fabricantes enumerava perguntas para demonstrar os benefícios do produto: "O funcionário pode contestar a marcação do ponto? Não, uma vez que o funcionário assinou o espelho do cartão não mais poderá contestar a validade de suas marcações", prometia. "É possível alterar a marcação feita pelo funcionário? Sim, é possível. Existe uma função destinada ao administrador do ponto que através de uma senha faz as correções e abonos necessários em todas as marcações efetuadas por seus funcionários".

Outra destacava a marcação de ponto somente em horários pré-determinados como um ponto forte do seu produto e tinha até manual de como fazer as alterações. "Basta ter a senha de acesso para adicionar ou modificar horário e até excluir marcações". Havia fabricantes que preferiam recorrer à questão das ações trabalhistas para chamar atenção no mercado. "Custa menos que uma ação trabalhista, geralmente movida pela falta de controle efetivo de seu funcionário. O sistema permite o desconto de horas extras de forma total ou parcial", advertia a empresa, sem receio de punições.

Segundo o auditor fiscal José Tadeu, a portaria dos pontos eletrônicos visa dar garantias tanto ao empregador como ao trabalhador. "Antes, a garantia era só para o empregador. Com a portaria, haverá bilateralidade".

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