Resgatados do trabalho escravo são preparados para o mercado

 11/08/2009

Após meses submetidos a condições subumanas, trabalhadores começam cursos e já sonham com empregos dignos .

Moradia em barracos de tábua, ausência de banheiro e água potável, alimentação precária e total falta de equipamentos de segurança ou atendimento médico de primeiros-socorros. Durante 8 meses, esta foi a rotina de trabalho de Carlito da Silva Leite, 22, na empresa Bioauto MT Agroindustrial Ltda, em Nova Mutum (264 km ao norte de Cuiabá), voltada à produção de agrocombustível. Ele conta que a lida começava às 5h30 e só terminava 17h30. Por dia, recebia R$ 30, e lazer não existia.

Morador do município, desde os 10 anos de idade, teve que deixar a casa para trabalhar, para carpir terrenos. Agarrou todas as oportunidades que apareciam, mas sem qualificação profissional só lhe restavam serviços braçais, mesmo tendo estudado até o ensino médio. Foi através de um colega que conheceu a Bioauto.

A proposta parecia interessante, porque pelo menos lá não precisaria pagar aluguel, como acontecia quando trabalhava na empresa anterior, na construção civil. O mesmo colega já trabalhava no local e deu boas referências.

Ele conta que não foram raras as vezes que um companheiro de trabalho feriu-se no pé com instrumentos como enxadas. "Tinha gente que sofria mais, mas eu já estava acostumado com trabalho pesado, né, desde criança".

O amor de Lidiane Domingas da Silva Valverde, 19, e Jorge Augusto de Souza, 22, começou em meio a grandes dificuldades, em dezembro do ano passado. Ele estava há 3 meses sem receber quando ela foi contratada para trabalhar no mesmo lugar, a fazenda Lagoa Azul, em Rosário Oeste (128 km a norte da capital) e se conheceram.

Jorge conta que no alojamento da plantação de madeiras dormia em redes, não havia água potável e o salário de R$ 600, pagos até então, começaram a não ser depositados. Depois de 3 meses sem pagamentos, um grupo de 60 pessoas foi resgatado pelo Grupo Móvel de Fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Mato Grosso (SRTE). O resgate foi feito em dezembro, no mesmo mês que Lidiane foi contratada.

Ela conta que não sabia das condições de trabalho dos companheiros e que o único salário que recebeu foi o do primeiro mês. Segundo ela, o mesmo rio onde os trabalhadores tomavam banho era de onde retiravam água para preparar a comida e matar a sede. Em março deste ano, após se machucar no pé, deixou o emprego. "Eu já queria sair de lá, então foi a oportunidade que eu precisava".

Os 3 fazem parte do grupo de 18 pessoas acostumados à atividade braçal que iniciaram ontem uma nova rotina. Gente que carrega no olhar e na pele a marca de uma vida inteira sofrida. Lidiane é a única mulher da turma.

O termo de cooperação técnica entre a Secretaria de Trabalho, Emprego, Cidadania e Assistência Social (Setecs), a Superintendência Regional do Trabalho, a Procuradoria Regional do Trabalho e Senai foi assinado ontem.

Pela manhã, eles vão participar de aulas de ensino fundamental de 7ª e 8ª séries. À tarde, receberão aulas de eletricista de manutenção industrial. A maioria deles é mato-grossense ou adotou o Estado para viver, em razão da falta de oportunidades no estado de origem, quase sempre do nordeste do país.

Por serem do interior do estado, ficarão alojados na Pastoral dos Imigrantes e durante 11 meses receberão um salário mínimo, carteira assinada e a garantia da reinserção no mercado de trabalho, desta vez decente.

Após o curso, Lidiane, Jorge e Carlito, acreditam que as portas do mercado estarão abertas e já adiantam que, seja qual for o município onde houver oferta, vão aceitar.

Conforme o superintendente regional do Trabalho, Valdiney Arruda, a qualificação profissional para egressos do trabalho escravo é um projeto inédito no mundo. Os alunos foram selecionados a partir de um cadastro que apontou que, sem a qualificação que lhes possibilite um emprego melhor, embora conheçam a realidade do trabalho braçal, muitos acabam sendo submetidos novamente a esta situação degradante. Foram resgatados em situações diferentes em empresas de municípios como Jangada, Mirassol D"Oeste, Poconé, Pontal do Araguaia e Rosário Oeste.

O perfil destes trabalhadores, conta, é de pessoas que tem o trabalho como único meio de sobrevivência. Por serem de municípios com índices de desenvolvimento humano baixo, sem mercado promissor, eles se aventuram em cidades onde ofereçam qualquer oportunidade.

"Eles não são pessoas acomodadas, vão atrás do trabalho e para isso se submetem a estas condições. Por isso, é importante o oferecer esta oportunidade, para que possam evitar esta mão-de-obra que leva ao trabalho degradante", afirma Arruda.

Segundo o superintendente, um levantamento feito a partir dos dados do seguro-desemprego apontou que 45% dos trabalhadores resgatados no último ano em Mato Grosso são moradores do Estado.

Paralelamente a isto, a mesma pesquisa mostra que a migração em busca de oportunidade está fazendo com que quem larga família e tudo o que tem nos estados do nordeste, por exemplo, não volta mais. Cerca de 75% dos trabalhadores estão nesta situação. Só 25% estão voltando.

Eles não querem voltar para lá, porque o mercado do nordeste não absorve a mão-de-obra deles e eles sabem. Se voltassem, teriam que ficar rodeando em busca de emprego e acabariam voltando ao trabalho escravo".

Além do curso de capacitação oferecido em Cuiabá, outros 14 trabalhadores iniciam esta semana um curso de operador de máquinas agrícolas, no município de Querência (945 km a nordeste de Cuiabá).

Eles são egressos de colheita de latex, em uma fazenda de Pontal do Araguaia. Já em Barra do Garças, 10 mulheres e 1 homem vão aprender corte e costura industrial. Lá, conforme o superintendente, além da capacitação, os trabalhadores serão estimulados ao empreendedorismo.

Para o desembargador Edson Bueno, do Tribunal Regional do Trabalho, trata-se de um avanço muito grande com relação ao histórico do trabalho escravo. Ele lembra que há 13 anos, quando foi feito um resgate no município de Querência, os trabalhadores ficaram sem destino ao deixarem a fazenda.

"A prefeitura se recusava a pagar alojamento, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal não tinham condições de abrigá-los. Nós sabíamos que era preciso encontrar algo mais do que o resgate, um amparo, para que eles não retornassem àquela situação".

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