Rio Grande do Norte

Trabalhador da pesca lida com precariedade e má remuneração

Condições de trabalho de embarcações pequenas, em geral, são péssimas. Há barcos pesqueiros em operação com mais de 100 anos de atividade. Apenas um fiscal do trabalho vistoria todo o setor aquaviário e portuário potiguar
Texto e fotos: Maurício Reimberg
 14/09/2009

Natal (RN) – À margem dos direitos sociais e trabalhistas, pescadores brasileiros não vêem os ganhos prometidos pelas bilionárias trocas comercias da globalização. Apesar de serem peça-chave no projeto do governo para ampliar a produção nacional de pescado, a maioria dos trabalhadores do setor não possui carteira assinada nem proteção previdenciária adequada, além de enfrentar jornadas excessivas, condições precárias dos barcos e formas controversas de remuneração. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a pesca tem um dos mais altos índices de acidentes fatais.

Na atividade por mais de 40 anos, o pescador Francisco Oliveira nunca teve carteira assinada

“Para o pescador, tudo é difícil”, resume o experiente Francisco Oliveira, que desde os sete anos de idade retira o seu sustento do mar. Aos 54 anos, pai de sete filhos, ele nunca teve carteira assinada e recebe em média R$ 200 por mês. Quando a Repórter Brasil esteve no cais pesqueiro público de Natal (RN), na última semana de agosto, Francisco era mais um a desviar o olhar introspectivo para o mar. Em época de entressafra, o movimento no terminal estava escasso. Barcos não se arriscavam a deixar o cais, e quem chegava de viagem trazia más notícias para proprietários e pescadores, que recebem por produção.

O potiguar Jales Batista Souza, de 39 anos, vivia essa rotina até 2007. Não suportou o dia-a-dia marcado por momentos penosos a bordo e tensa espera em terra firme. Hoje ele é “avulso”. Fica ali na beira do cais. Quando os barcos chegam, Jales se oferece para “tratar” o pescado. Ganha agora metade do que recebia como pescador. Mas não se arrepende da decisão. Foi a saída possível para escapar dos riscos e do sacrifício da vida em alto-mar. “É melhor do que estar lá. No mar, a solidão é muito grande. Você passa pela vida e nem sente. Os meninos (seus seis filhos) cresciam e eu não via nada”, conta.

Jales e outros companheiros costumavam pescar nas redondezas do Arquipélago de São Pedro e São Paulo, a 972 km de Natal, um dos pontos mais distantes do território nacional. Nas imediações desse conjunto de ilhotas rochosas há diversos cardumes de atum, principal peixe capturado pela pesca oceânica na costa do Rio Grande do Norte. Nas viagens, Jales chegava a passar um mês inteiro sobre as águas. Nem o casamento resistiu à distância. “Ela dizia que eu vivia mais no mar do que em casa”.

Jales Souza era pescador e ficava até um mês longe de casa; hoje, ele trabalha como “avulso”

De fato, a solidão sempre esteve associada ao pescador. No entanto, além da característica de isolamento, suscetível às intempéries naturais – como tempestades e mar agitado -, os pescadores se deparam cada vez mais com a pressão econômica vinda do armador e uma sensação de insegurança contínua, motivada pelo perigo iminente e pelos ganhos incertos. Jales fala que, antes da partida, os donos de barco costumam repetir aos seus homens que o investimento na “armação” – equipagem da embarcação – é alto, o óleo diesel tem um custo elevado e “quem não pescar, não ganha”.

A despeito das cobranças por produtividade, as condições a bordo das embarcações geralmente são péssimas. A situação se agrava sobretudo nos barcos de pequeno porte, que possuem até 20 AB (toneladas de arqueação bruta). É o caso do “Sorriso”, atracado em Natal. O espaço interno reduzido do barco serve de cabine de comando, alojamento e cozinha improvisada. Nos beliches de madeira, há apenas esponjas fétidas e gastas, sem lugar para acomodar todos. Não há banheiro a bordo para atender às necessidades fisiológicas e higiênicas da tripulação. A água potável é acondicionada em tambores de plástico que, ao passar dos dias, ficam com o gosto alterado. Ninguém recebe Equipamentos de Proteção Individual (EPIs).

A bordo do “Sorriso”, Edivaldo Oliveira conta que costuma ficar no mar em torno de 15 dias, em viagens de até 72 horas de duração para chegar ao local da pesca. Trabalha em torno de 12 horas por dia, “dependendo da maré”. Há dois meses, estava próximo ao Arquipélago de Fernando de Noronha, junto com outros cinco colegas do “Sorriso”, quando levou um susto após “arriar” (descer) o material de pesca. Na hora de puxar a linha, o fio enroscou e o anzol acertou em cheio o seu pé direito, que continua inchado. “O anzol enganchou no pé bem na hora que o peixe bateu”, lembra Edivaldo. O dono do barco pagou os remédios para tratar a infecção e a dor do ferimento.

Esponjas fétidas e gastas servem como colchões no barco “Sorriso”, que não tem sequer banheiro

Já o pescador Francisco Oliveira não teve a mesma assistência mínima. Ele sofreu várias queimaduras no braço esquerdo quando preparava um peixe numa cozinha improvisada da embarcação. A despeito dos pedidos, o dono do barco nunca forneceu os medicamentos necessários. “Quem comprou foi meu pai”, diz. “Tem alguns donos de barco que consideram a gente, mas a maioria não está nem aí. A gente desembarca e não diz nem bom dia”, critica. “É raro um dono de barco dar remédio”, completa o colega Francisco Luiz de Nascimento.

Há barcos pesqueiros em operação na costa brasileira com mais de cem anos de atividade. Muitas embarcações, jangadas e traineiras apresentam problemas de manutenção e não possuem sequer coletes salva-vidas. Mesmo assim, os barcos seguem mar adentro, buscando peixes cada vez mais longe, lançando redes que costumam ter entre 2 km e 8 km. Segundo estudos da Avaliação do Potencial Sustentável dos Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva (Revizee), 80% dos recursos pesqueiros no Brasil estão sobre-explorados, ou seja, estão sendo capturados acima dos limites sustentáveis para sua sobrevivência permanente.

Nesse cenário, os acidentes se multiplicam. O mais recente envolveu o barco de pesca catarinense Estrela do Mar 4, que naufragou na madrugada do dia 22 de agosto, em Conceição da Barra (ES), litoral norte do Estado. No total, 17 pessoas da empresa de pesca Oceânica Ltda. estavam no barco. Em meio a uma forte tormenta, dez conseguiram subir em um bote e sobreviveram. Quatro corpos foram encontrados e três pescadores continuam desaparecidos. A Capitania dos Portos do Espírito Santo determinou a abertura de inquérito administrativo para apurar as causas e circunstâncias do naufrágio.
 

80% dos recursos pesqueiros no Brasil estão sendo capturados acima dos limites sustentáveis

Informalidade
Segundo o último Recadastramento Nacional dos Pescadores do Brasil, divulgado em dezembro de 2006 pela antiga Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca (Seap) – atual Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) -, há 390,7 mil pescadores registrados no país. O levantamento anterior, que havia ocorrido 40 anos atrás, tinha identificado 500 mil. De acordo com o cadastro, duas de cada cinco pessoas que sobrevivem da pesca artesanal moram na região Nordeste. A OIT estima em 1,24 milhão o número total de pescadores no país.

O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), por sua vez, não calcula números do mercado informal ou índices de desemprego. A pasta compila apenas o número de trabalhadores que entram e saem do mercado formal. Segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), a atividade pesqueira fechou o ano passado com apenas 9.296 empregos formais. A diferença é compreensível: o índice de informalidade do setor é um dos mais altos do país. Segundo estimativas do Ministério Público do Trabalho (MPT), cerca de 90% dos pescadores não possuem carteira de trabalho assinada.

“À exceção da pesca industrial, onde a maioria dos trabalhadores tem carteira assinada, nas embarcações de pessoas físicas o cenário é de grande informalidade. A maioria trabalha sem direitos sociais, totalmente desprotegidos”, explica o auditor fiscal do trabalho Francisco Edivar Carvalho, responsável pela inspeção do trabalho portuário e aquaviário no Rio Grande do Norte, área de franca expansão da pesca oceânica.

Empregados
Atividade ancestral no Brasil, a pesca atualmente possui distinções internas. Existe o trabalhador artesanal, dono do fruto do seu trabalho, e o empregado em embarcações pesqueiras, que podem pertencer a pessoas físicas ou jurídicas. Muitos pescadores ainda se apresentam como “artesanais” para conseguir obter o seguro-defeso, assistência financeira temporária. A duração do “paradeiro”, como os pescadores se referem à proibição da captura, é definida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para reprodução de algumas espécies.

Para Francisco Edivar, donos e armadores do barco têm que assinar carteira e cumprir lei trabalhista

Em razão desse benefício temporário, parte dos pescadores não tem interesse em estabelecer vínculo formal com a empresa, direito que faz falta numa situação de acidente, por exemplo. A brecha é aproveitada até por armadores. Empresários que muitas vezes têm diversos barcos e empregam outros pescadores também se dizem artesanais. “Quando há uma relação de emprego, independentemente do nome que se dê, o trabalhador é empregado. O explorador da mão-de-obra, o dono ou armador do barco, tem que cumprir com a legislação, assinar a carteira e pagar pelo menos um salário mínimo por mês”, ressalta Francisco Edivar.

Diante do alto índice de informalidade, a estratégia adotada pelo MPT tem sido reunir trabalhadores de pesca por regiões e promover Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) com os donos de barcos para viabilizar o registro dos trabalhadores. No entanto, o trabalho tem limitações. “É preciso intensificar a fiscalização por parte do MTE. O número de fiscais ainda é insuficiente e são poucos auditores especializados”, explica Eduardo Parmeggiani, da Coordenadoria Nacional do Trabalho Aquaviário e Portuário (Conatpa) do MPT.

Criada em setembro de 2003 por decisão da Procuradoria Geral do Trabalho, a própria Conatpa apenas recentemente vem dando maior atenção à atividade. Segundo Eduardo, nos últimos dois anos, o trabalho aquaviário, incluindo navegação e pesca, tem aparecido com mais freqüência na agenda da entidade. Ao todo, o MPT possui hoje cerca de 80 promotores que trabalham diretamente nessa área. Antes, o órgão concentrava esforços na parte portuária, principalmente no tema da escalação dos trabalhos avulsos.

Parceria
Além de enfrentar divisões internas e a ausência completa de garantias trabalhistas, a categoria vê uma polêmica forma de remuneração virar uma prática disseminada em todo o território nacional. Na pesca, o chamado “contrato de parceria”, repartição desigual dos recursos no qual o trabalhador recebe de acordo com a produção, é apontado como o principal meio utilizado pelos proprietários para deixar de formalizar vínculo de emprego com os pescadores. O pagamento é feito pelo armador de pesca após converter em dinheiro o pescado capturado nas viagens.

Tambores servem para armazenar água; com o passar dos dias, gosto acaba se alterando

A proporção adotada geralmente é de 80% para o dono do barco e 20% repartido entre os pescadores em cotas. Por exemplo, o patrão de pesca (comandante ou mestre da embarcação) pode ficar com 10% e o restante é dividido entre os demais de acordo com a função desempenhada a bordo. Na prática, a cota individual de cada pescador, em determinado mês, dificilmente atinge o salário mínimo.

Segundo o auditor fiscal do trabalho Francisco, a parceria pode ser utilizada apenas como forma de repartição do produto da pesca quando há relação de emprego, desde que o trabalhador tenha todos os direitos garantidos pela legislação. “A parceria é altamente danosa para o pescador. Ele não tem direito social nenhum”, critica. “Isso é comum no Brasil todo. Eles utilizam a parceria como forma de burlar a legislação”.

Apesar do passivo trabalhista, diversos donos de barco e armadores de pesca recebem subvenção econômica do óleo diesel. O benefício reduz em 30% o valor total do combustível, considerado o principal custo nas embarcações. Desse modo, as administrações estaduais e federais abrem mão de alguns impostos, barateando o preço. “Em muitas embarcações que recebem a subvenção econômica, os trabalhadores estão totalmente desassistidos”, lamenta Francisco. Para ele, os governos deveriam condicionar a subvenção ao cumprimento das normas do trabalho.

O empresário pernambucano Alceu Alves Couto, dono de cinco barcos atracados no cais pesqueiro de Natal, argumenta que os recursos são fundamentais para a sobrevivência do negócio. “No total, 35% do custo das embarcações vêm do óleo diesel. Com a subvenção estadual e federal, essa fatia cai para 25%”, explica. Mesmo assim, os armadores reclamam que falta dinheiro para reformar embarcações antigas, causa de inúmeros acidentes. “Gasto R$ 100 mil por barco”, explica.

Empresário Alceu Alves Couto é exceção: assina a carteira de 45 pescadores que trabalham para ele

Durante a vistoria da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Rio Grande do Norte (SRTE/RN) no cais pesqueiro de Natal, o empresário Alceu, que assina a carteira dos seus 45 pescadores, foi o único proprietário encontrado pela fiscalização. Os donos de barco raramente aparecem por ali.

Rio Grande do Norte
Devido à sua localização geográfica estratégica, o Rio Grande do Norte tem atraído empresas estrangeiras interessadas na exploração da pesca comercial oceânica, que exige um maior aparato tecnológico. Diante da demanda crescente, uma parceria entre o governo estadual e federal permitirá a construção do Terminal Pesqueiro de Natal (TPN), à margem do Rio Potengi. O objetivo é transformá-lo num pólo de pesca na América Latina. Natal ainda possui outro trunfo: tem o porto sul-americano mais próximo da Europa.

Os barcos ancorados na capital do estado navegam em busca de peixes como o atum, espécie migratória encontrada em águas profundas, dourado, cavala, meca, cação e dentão. Há barcos que conseguem trazer até 70 toneladas de pescado. O atum encontrado na costa potiguar é exportado para os Estados Unidos e o Japão, além de ser consumido em centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro. A frota atuneira baseada em Natal é responsável por 40% da produção nacional do pescado.

Nessa área de crescimento acelerado da atividade pesqueira, há apenas um auditor fiscal do trabalho para vistoriar o setor aquaviário e portuário em todo o estado, numa faixa litorânea com extensão de 400 km, dividida em 25 municípios costeiros. Francisco Edivar Carvalho sai às ruas geralmente sozinho, munido de um bloco de anotações e de uma pequena câmera digital. Assim ele verifica in loco os problemas relacionados às condições de trabalho ao visitar embarcações atracadas no cais ou fundeadas próximo às praias.

Apenas um único auditor fiscal vistoria o setor aquaviário e portuário do Rio Grande do Norte

Desde 2004, Francisco se dedica ao setor. As dificuldades começam logo na tentativa de acesso às embarcações. “Se você tem uma denúncia de trabalho escravo numa fazenda, você sabe que a propriedade está lá. É só planejar a forma como chegar, que vai flagrar o pessoal trabalhando. Já neste caso, tem o impeditivo de localizar a embarcação, que é móvel”, explica. Ao todo, existem 80 comunidades pesqueiras no Rio Grande do Norte e uma frota de 3.537 barcos à vela e motorizados, reunindo mais de oito mil pescadores.

O fiscal do trabalho conta que o setor praticamente nunca foi fiscalizado e as pessoas ainda se “surpreendem” com a ação do Estado. “Já passei por situações de ameaças. Um proprietário já chegou a dizer que eu não iria entrar no barco dele, que se eu entrasse poderia fazer uma besteira. São coisas veladas e pontuais”.

A atividade sempre esteve associada a um modo de vida nas comunidades potiguares de pescadores artesanais. No entanto, cada vez mais o pescador mantém uma relação subordinada de emprego com o armador ou o dono do barco. “No geral, está havendo uma redução da quantidade de pescadores. Muitos filhos não querem seguir aquele ofício. Alguns seguem por falta de opção mesmo. Ele quer sair daquela atividade porque viu o sofrimento do pai e da família”, explica Francisco Edivar.

Vácuo de poder
A trajetória da fiscalização aquaviária (pescadores, marítimos, hidroviários e mergulhadores) e portuária está ligada aos solavancos que acometeram o Estado brasileiro pós-ditadura militar. Na onda da tese do “Estado mínimo”, o governo do ex-presidente Fernando Collor (1990-1992) extinguiu a Delegacia do Trabalho Marítimo – que atuava no âmbito do MTE.

A medida gerou um “vácuo de poder” na área portuária e aquaviária. A lacuna na fiscalização durou até aproximadamente 1995, quando a Lei de Modernização dos Portos reativou as vistorias portuárias. Na época, foi criado o Grupo Executivo para Modernização dos Portos (Gempo), órgão importante para a efetiva implantação da lei. Em 1996, o MTE também iniciou as atividades do seu grupo de fiscalização setorial.

Ministério pretende “conscientizar” donos de barco para combater “cultura do não-registro”

Desde janeiro de 2006, a pasta tem uma Coordenação Nacional de Inspeção do Trabalho Portuário e Aquaviário, que atua na Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT). Além disso, o governo mantém um grupo móvel voltado especificamente para a fiscalização portuária e aquaviária. A equipe, que realiza em média três grandes operações por ano, pode solicitar o apoio da Polícia Federal e da Marinha do Brasil, caso seja necessário. O foco principal de atuação é o Nordeste – o grupo deve visitar Natal até o final deste ano.

No entanto, uma ação governamental mais ampla e efetiva esbarra na falta de pessoal, estrutura e articulação interna. São apenas 32 auditores – divididos em 14 estados – que têm a difícil missão de fiscalizar toda a costa brasileira, além da parte lacustre e fluvial, num trabalho altamente especializado.

Rinaldo Gonçalves de Almeida, subcoordenador nacional de Inspeção do Trabalho Portuário e Aquaviário do MTE, admite que a fiscalização poderia ser feito de forma “mais efetiva” se houvesse mais auditores. “A gente não dá conta de fazer tudo com a qualidade necessária”, afirma. “Essa é uma preocupação nossa. Nosso esforço é no sentido de ampliar esse quadro. O grupo é muito restrito. Além disso, setores da atividade aquaviária, como a pesca oceânica, não param de crescer”.

A despeito das limitações, Rinaldo acredita que o tema é prioridade dentro do MTE. Ele garante que os auditores recebem formação específica e diz que o governo está trabalhando para aprimorar as medidas. “Estamos criando ferramentas de apoio e protocolos para harmonizar a inspeção no Brasil inteiro”, promete. O objetivo, segundo ele, é de que os auditores sigam padrões semelhantes na hora de avaliar as condições a bordo.

O representante do MTE explica ainda que o esforço no momento é de realizar um trabalho de “conscientização” para combater a “cultura do não-registro”. “A pesca tem uma cultura muitas vezes avessa à regulamentação”, diz. Ele classifica o trabalho pesqueiro como “extremante penoso” e degradante. “A gente se depara com situação onde as condições de trabalho são muito ruins. Há uma discussão de que alguns desses casos até poderia ser enquadrado dentro do contexto de trabalho análogo ao de escravo”, afirma.

Para o procurador Eduardo, o trabalho na pesca está sendo feito em condições degradantes e insalubres. “Há péssimas condições de meio ambiente de trabalho a bordo, com barcos muito mal conservados, principalmente nas embarcações menores, com acomodação de péssima qualidade, muitas delas sem banheiro e com cozinhas mal conservadas”, analisa.

Em geral, dono do barco fica com 80% do obtido; 20% restantes são repartidos (Foto:SRTE/RN)

OIT
O Brasil está em processo de ratificação da convenção 188 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que pretende consolidar a legislação mundial trabalhista da pesca. O objetivo da medida é garantir aos trabalhadores melhorias na segurança e saúde nas embarcações e em terra – reduzindo o número de acidentes -, melhorar a situação contratual, estabelecer tempo de descanso que equivalha à jornada de trabalho e enquadrar os trabalhadores marítimos na cobertura da Previdência Social.

A Convenção da OIT sobre o Trabalho na Pesca e o seu complemento, a Recomendação 199, foram aprovadas em 2007, na 96ª Conferência Internacional do Trabalho, realizada em Genebra. A nova Convenção, que exclui apenas a pesca de subsistência e a recreativa, entrará em vigor 12 meses depois que 10 diferentes governos de países (dos quais pelo menos oito devem ter litoral) completem o processo de ratificação. O documento precisa ser aprovado pelos Parlamentos dos países signatários.

A norma deverá ser aplicada de forma gradativa. A expectativa é gerar consultas nacionais em diversos países, com a finalidade de revisar e estabelecer leis e regulamentações . “No Brasil, a nossa regulamentação já contempla o que a convenção estabelece como mínimo de trabalho decente para a pesca”, afirma Rinaldo Gonçalves de Almeida, do MTE. Ele menciona a Norma Regulamentadora 30, que trata da atividade aquaviária. No ano passado, o Brasil ratificou ainda a Convenção 178 da OIT, que obriga os países signatários a ter uma estrutura específica voltada à fiscalização aquaviária.

Em agosto deste ano, a OIT promoveu no Rio de Janeiro uma reunião regional de governos de países das Américas, trabalhadores e empregadores para discutir o trabalho no setor de pesca e a Convenção 188. Segundo dados da entidade divulgados por ocasião do encontro, na América Latina e no Caribe existem cerca de dois milhões de pessoas empregadas em embarcações dedicadas à pesca e cerca de 500 mil trabalham na aqüicultura. Em todo o mundo, há cerca de 43 milhões de pescadores, a maior parte deles na Ásia.

Promessa
Com diversos planos para transformar a atividade pesqueira num dos ramos mais produtivos da economia, o Estado brasileiro possui uma atuação contraditória neste setor. Enquanto o governo fortalece a estrutura e o orçamento do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) – elevando o status da antiga secretaria -, as políticas públicas para a área não conseguem romper a “invisibilidade” histórica a qual estão submetidos os pescadores nem alterar a sua realidade social. Neste ano, o valor previsto para ser repassado ao órgão liderado pelo catarinense Altemir Gregolin (PT) é de quase R$ 500 milhões.

Na opinião de fiscal do trabalho, nova Lei da Pesca tem “falha” de não tratar de condições de trabalho

Em discurso no lançamento da nova Lei da Pesca, em junho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva distribuiu acenos aos empresários do setor, mas lembrou que é preciso dar “dignidade” ao pescador e sua família. “Nós precisamos triplicar, quadruplicar a pesca neste país”, disse. “Não é possível que um país como o Chile ou como o Peru, que são menores do ponto de vista da costa marítima, pesque três, quatro vezes mais do que o Brasil”.

Na cerimônia realizada em Itajaí (SC), que possui o maior porto pesqueiro do país, Lula disse que é preciso “cuidar melhor” do trabalhador que atua na pesca. “Nós queremos dar ao pescador a cidadania que outras categorias profissionais já conquistaram”. O presidente afirmou que as empresas de beneficiamento, transformação e industrialização de pescado poderão se beneficiar das linhas de crédito, desde que comprem a matéria-prima dos pescadores ou de suas cooperativas.

A nova Lei da Pesca e Aquicultura passa a considerar pescadores e aquicultores como produtores rurais com direito a créditos mais baratos para financiar a produção. A matéria tramitou durante 14 anos no Congresso Nacional até ser sancionado pelo presidente Lula, no dia 26 de junho.

No entanto, a legislação é alvo de críticas. Segundo Francisco, o texto não traz nada a respeito das condições de vida e trabalho a bordo das embarcações de pesca. “Essa é uma falha. Não trouxe nenhuma segurança jurídica para o armador de pesca e o pescador no que diz respeito às normas de proteção ao trabalho”, lamenta o fiscal do trabalho Francisco. Segundo ele, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e as Normas Regulamentadoras (NRs) compõem o ordenamento de proteção trabalhista, mas seria importante que o tema aparecesse também na Lei na Pesca, já que as fiscalizações têm flagrado condições degradantes. Para ele, a legislação foi “omissa”.

“Quando falo que a lei foi omissa, é porque ela trouxe a possibilidade de contratar pescador mediante parceria. Só que não pode utilizar parceria onde há uma relação de emprego. Você está desvirtuando. Ela poderia ter disciplinada essa parceria, como ocorre com os trabalhadores portuários avulsos, por exemplo”, afirma Francisco Edivar.

Lula declarou que é preciso “cuidar melhor” do pescador e de sua família (Ricardo Stuckert/PR)

Eduardo discorda e elogia a medida. “Houve definição bem clara da lei. Nas embarcações superiores a 20 de arqueação bruta, a parceria é possível só quando o dono do barco parte com os pescadores. Se ele não participa, não pode”.

Entre 30 de setembro e 2 de outubro, o governo irá realizar a 3ª Conferência Nacional de Aquicultura e Pesca em Brasília (DF), coordenada pelo MPA. A discussão será em torno da “consolidação” de uma política de Estado para o desenvolvimento sustentável do setor. Atualmente os brasileiros consomem sete quilos de peixe por ano. A meta da administração federal é elevar esse índice para nove quilos em 2010. A atividade pesqueira nacional movimenta 1,1 milhão de toneladas anuais. O MPA pretende elevar a produção anual para 1,5 milhão de toneladas em 2011, num incremento de 40%.

Além de fomentar a produção pesqueira e aquícola, o Ministério tem um papel importante a desempenhar em relação às condições de trabalho no setor. A pasta também é a responsável pela concessão da licença de pesca das embarcações. “Para você explorar essa atividade, a permissão tinha que ser condicionada ao cumprimento da legislação trabalhista. Se descumprir, perde a licença”, sugere o auditor fiscal do trabalho Francisco.

A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa do MPA e enviou uma série de questões para o ministro Altemir Gregolin no dia 1º de setembro. A partir das perguntas enviadas, foi prometida uma posição oficial da pasta sobre aspectos relacionados às condições de trabalho na atividade pesqueira. Não houve retorno até o fechamento desta reportagem.

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