Fazendo do passado passado

 23/11/2009

CINCO DIAS separam duas datas. A primeira, 15 de novembro, celebra a proclamação da República. A segunda, 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, homenageia Zumbi dos Palmares. Os cinco dias, porém, representam o atraso de um século.

O fim oficial da escravatura veio com a Lei Áurea, em 13 de maio de 1889. E apesar do esforço abolicionista, a resistência escravocrata era tanta que, além da demora em dar fim à infâmia, não foram tomadas medidas complementares para garantir aos novos cidadãos, os ex-escravos, direitos fundamentais, como moradia, terra ou qualquer tipo de indenização. Foram abandonados à própria sorte, sem nenhuma proteção do Estado. A maioria passou da condição de escravo para a da semiescravidão.

Os grilhões já não eram tão visíveis, mas estavam lá, no estigma deixado pela escravidão, numa estrutura social que aviltou a dignidade dos negros, roubando seus direitos mais elementares. Os libertos eram filhos daqueles que foram feitos brasileiros sem querer, trazidos como rebanho, marcados a ferro, condenados ao trabalho pesado.

A cidadania não veio tampouco com a mudança da Monarquia para a República, um ano e meio depois. Pois a maior parte do pensamento hegemônico ainda não enxergava aquele enorme contingente populacional como integrante legítimo do país. Nem os ex-escravos, aliás, se viam de forma diferente. Eram cidadãos de segunda classe, para dizer o mínimo. Aprisionados pela pobreza, pelo analfabetismo, pelas marcas do passado recente. Com eles, mesmo sem se dar conta, sofria o país, que se construía sobre um alicerce tão mal resolvido, tão injusto, tão limitador. E que até hoje mantém, pela repetição, a marca da injustiça.

Vozes, vidas, dores esquecidas e caladas, história. Os 120 anos de República foram também os anos do cativeiro insepulto, da luta pela verdadeira liberdade. Continua a batalha para reparar o que não foi feito naquela época. Muitos apostaram que o tempo sanaria todas as dores ou as diluiria.

Contudo, o simples passar do tempo não cura. Tais violências, como disse Hannah Arendt, em "A Condição Humana", por serem tão irreversivelmente traumáticas para os indivíduos e para as sociedades, são, citando a expressão de Kant, "ofensas de mal radical".

O povo brasileiro tem atravessado seu próprio deserto. Agora, ainda no esforço para tirar da pobreza enorme parcela da população, o Brasil se ama mais, se conhece mais, se entende melhor. Começa a ver-se como índio, branco, negro, amarelo, caboclo. Tem sido um caminho árduo, demorado. Mas já é um bom começo para comemorar as duas datas.

Artigo – Marina Silva
23/11/2009

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