Construção

Precariedade trabalhista mancha propaganda de condomínio

Fiscalização flagra condição precária em obras de apartamentos residenciais do Primeacqua/Primetown, em Campinas (SP). Empreendimento é aposta do grupo do ex-governador Orestes Quércia. Construtora Enplan nega problemas
Por Rodrigo Rocha e Maurício Hashizume
 01/03/2010

A propaganda do Primetown/Primeacqua, em Campinas (SP), realça um empreendimento imobiliário diferenciado que abriga um condomínio de apartamentos conjugado com um futuro conjunto comercial, rodeado por áreas verdes, repleto de estruturas de lazer e equipado com itens "ecológicos". Localizada no Jardim Von Zuben, próximo ao município vizinho de Valinhos (SP), o complexo é uma aposta das Organizações Sol Panamby, grupo empresarial do ex-governador de São Paulo (1987-1991), Orestes Quércia, um dos principais expoentes do PMDB paulista.

Imagem mostra "perspectiva artística" de como será o condomínio Primeacqua (Divulgação)

O Primeacqua faz parte do Primetown, classificado pelos responsáveis como "urbanville" – "bairro" formado por condomínios residenciais, ao lado de construções amplas voltadas à locação para comércio e serviços. De acordo com anúncios publicitários, o "bairro" ocupa mais de 500 mil m². Serão 60 mil m² dedicados ao lazer: lagos, ciclovias, três piscinas (todas aquecidas), uma praia, um bar "molhado", brinquedoteca, espaço mulher, espaço criança e salões de festas (infantil e adulto).

Levando-se em conta o valor de R$ 2,6 mil por m² utilizado pelos promotores do empreendimento, o preço do menor apartamento (61 m², com dois quartos) alcança mais ou menos R$ 160 mil. Seguindo a mesma proporção, o imóvel de três quartos (76 m²) chega a ser vendido por algo em torno de R$ 200 mil. Todos têm terraço com churrasqueira e duas vagas na garagem.

Os 128 apartamentos desta primeira fase estão sendo vendidos desde agosto de 2008 e têm previsão de entrega para junho de 2010. Só o conjunto comercial do Primetown deverá consumir R$ 200 milhões. A divulgação da obra enfatiza a utilização de materiais escolhidos em função da preocupação ambiental e medidas para evitar o desperdício de água.

Um outro aspecto relevante relacionado ao Primeacqua não deve, contudo, ter sido apresentado aos potenciais compradores dos apartamentos. Fiscalização da Gerência Regional do Trabalho e Emprego em Campinas (SP) flagrou cerca 20 trabalhadores da construção civil com salários atrasados e alojados em instalações precárias, no último dia 19 de janeiro. Contratados pela construtora Enplan, eles chegavam a trabalhar mais de 10 horas por dia para levantar os primeiros apartamentos do condomínio. 

Trabalhadores da obra não recebiam salários regulares desde novembro de 2009 (Divulgação)

Do total de 90 pessoas que trabalhavam na obra, 20 estavam em situação irregular, conta o auditor fiscal Mario Roberto Matallo, que fez parte da equipe de fiscalização. De acordo com o gerente do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em Campinas (SP), Sebastião Jesus da Silva, os empregados não recebiam salários completos. Desde quando foram contratados em novembro do ano passado, eles recebiam apenas pequenos adiantamentos (leia abaixo a posição da empresa Enplan, que contesta informações e depoimentos prestados pela fiscalização e pelo sindicato competentes**).

No canteiro de obras, auditores se depararam com diversos casos de falta de proteção contra quedas que resultavam em "risco grave e iminente à vida do trabalhador". Um dos operadores de retroescavadeira em atividade na obra sequer havia recebido treinamento para o serviço*.

"Eram terceirizados, [submetidos à intermediação por aliciamento irregular do tipo] ´gato´ mesmo. E o empreiteiro não repassou parte do salário", completa o auditor Mario Matallo, que atuou na fiscalização.

A denúncia à gerência do MTE foi feita pelo Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Campinas e Região. "Quem entrou em contato com a gente foi um vizinho da obra, a pedido dos trabalhadores", relata Francisco Aparecido da Silva, diretor do sindicato que acompanhou os auditores fiscais.

Segundo Francisco, o grupo que vivia em situação irregular não era de Campinas, mas de Peruíbe (SP), cidade do litoral paulista. Eles estavam divididos em dois alojamentos: o principal, com apenas dois quartos e um único banheiro, era alugado e comportava 14 pessoas.

"As condições de higiene eram precárias. Havia muito lixo espalhado e nem sinal de faxina. Além disso, cinco ou seis pessoas estavam dormindo no chão", completa o diretor sindical Francisco. Não havia endividamento por parte dos empregados e a alimentação era fornecida regularmente.

Vista "artística" do terraço com churrasqueira do apartamento de três dormitórios (Divulgação)

Os colchões em que dormiam, contudo, estavam em mau estado de conservação, de acordo com o auditor fiscal Mario, do MTE, que confirmou ter encontrado péssimas condições durante a ação.

O segundo alojamento comportava seis operários. A madeira que revestia a moradia improvisada era, nas palavras de Francisco, de "péssima qualidade".

Para completar, os locais que abrigavam os migrantes eram frequentemente alagados nos dias de chuva, que não foram poucos desde os últimos meses de 2009 até o início de 2010. O flagrante das condições irregulares de alojamento por parte justamente de uma empresa de construção civil (que deve conhecer e seguir as normas) chamou a atenção do gerente Sebastião.

Por conta das diversas irregularidades, a obra foi interditada. Foram emitidos autos de infração – como o que se refere ao descumprimento do Artigo 59 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), por prorrogação de jornada, pois os operários trabalhavam mais de 10 horas por dia.

As obras, complementa Mario Mattallo, foram liberadas dois dias depois, com a regularização do conjunto de irregularidades, inclusiv
e a falta de pagamento. Ele declara que, quando chegou ao local, as reformas dos alojamentos já estavam em curso. "Os responsáveis estavam desmanchando o que estava mal feito. Com relação aos alagamentos, eles construíram uma barreira e uma vala para diminuir os problemas com as chuvas", pondera.

Alojamentos improvisados dos trabalhadores estavam em condições precárias (Divulgação)

Dos 20 operários encontrados pelos auditores fiscais do trabalho, porém, apenas cinco ou seis continuam na obra, segundo informações do diretor do sindicato. Os outros retornaram para Peruíbe (SP).

Empresas
As Organizações Sol Panamby atuam em diversos segmentos como agronegócio, administração comercial e comunicação social.

O local escolhido para o Primetown já foi ocupado anteriormente pelo Shopping Jaraguá, da própria Sol Panamby. Inaugurado em 1998, o complexo tinha 50 lojas, agência bancária, praça de alimentação e duas salas de cinema.

A Enplan Empreendimentos Imobiliários, por sua vez, já atuou na urbanização da orla de Peruíbe (SP) e executou obras de infra-estrutura no Porto de Santos (SP) e projetos para a Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A (Embraer).

A Sol Panamby declarou que não se pronunciaria sobre o caso, pois os trabalhadores eram da Enplan e não eram contratados pelo grupo.

Enplan**
Mais de duas semanas depois do primeiro contato telefônico (quando a representante da Enplan que atendeu à reportagem afirmou categoricamente que não havia pessoas responsáveis da empresa que pudessem responder aos questionamentos acerca da fiscalização) e depois da publicação desta matéria na Repórter Brasil, a construtora Enplan, por meio de sua assessoria de imprensa, encaminhou nota de esclarecimento** sobre o caso.

De acordo com a Enplan, a "série de equívocos (…) tem origem na demissão de um funcionário terceirizado, contratado pela Construtora Dregger, (…) que presta serviços para a citada obra [Primeacqua]" . "Por não aceitar seu desligamento, que tem razões exclusivamente relacionadas ao desempenho profissional, e antes mesmo de se reportar à direção da obra, o funcionário procurou o Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Campinas e Região", segue a nota. Segundo a versão da construtora, o sindicato então acionou o MTE para averiguar as denúncias e a Enplan, por sua vez, "colocou o canteiro de obras à disposição da fiscalização".

"Como pode ser confirmado pela fiscalização, e ao contrário do que menciona a reportagem publicada pelo site [Repórter Brasil], a Enplan esclarece que apenas onze funcionários, de um total de 90 pessoas que trabalham na obra, são contratados pela Construtora Dregger", afirma a nota da Enplan. A reportagem esclarece que não cita especificamente os terceirizados pela Dregger e que o número de 20 trabalhadores em condições precárias foi apresentado pelos próprios auditores fiscais do trabalho envolvidos.

A Enplan afirma ainda que mantém contratos formais com seus parceiros empreiteiros "que garantem, em primeiro lugar, os direitos dos trabalhadores empregados na obra". "Assim sendo, uma vez que o pagamento dos funcionários é efetuado quinzenalmente, e sempre de acordo com o período de início do trabalho de cada um, a Enplan identificou um atraso nos vencimentos de cinco destes onze funcionários contratados pela Dregger. Diante disso, assumiu a responsabilidade pelo pagamento devido, antes que o atraso completasse uma semana", completa a empresa. A nota confirma a existência de atraso nos salários. A ausência de pagamento regular e a distribuição irregular de vales de adiantamento foram confirmadas, mais uma vez, pela fiscalização trabalhista competente.

"Nesta obra, embora tenha sido oferecido pela Enplan o uso de suas próprias acomodações, a Dregger optou por alojar os trabalhadores terceirizados em um imóvel alugado, nas vizinhanças", atesta o comunicado. "Ainda assim, a Enplan fez uma vistoria prévia, a fim de atestar que o local oferecia condições ideais. Dez funcionários ocupam um espaço composto por três quartos, dois banheiros, cozinha, sala de estar, varanda e área de serviço. Portanto, uma área que até mesmo supera os valores mínimos de homem x metro quadrado que determinam as normas trabalhistas", completa a empresa. A estutura disponível e as condições encontradas não conferem com o relato das fontes que estiveram no ato da fiscalização e foram ouvidas pela Repórter Brasil

Sobre os alagamentos, a Enplan afirma que "vem orientando os encarregados pelo canteiro para que tomem providências em relação à proteção das obras e dos alojamentos dos funcionários, o que foi verificado pela própria fiscalização – e que contraria as acusações levantadas pela reportagem". O próprio gerente regional do trabalho reiterou, contudo, a ocorrência dos problemas.

"Em relação as condições de segurança, a única autuação sofrida pela Enplan foi relativa à três das 128 sacadas que, no momento da fiscalização, encontravam-se sem o guarda-corpos, retirado para a instalação da proteção definitiva. Ainda assim, as normas de segurança neste tipo de operação foram respeitadas, bloqueando-se o acesso de outros funcionários, que não fossem aqueles diretamente incumbidos da tarefa", justifica-se a Enplan. O relatório da fiscalização é claro quanto ao "risco grave e iminente à vida do trabalhador" existente nas obras, que foram inclusive interditadas por dois dias. Em adição, cita a autuação por jornada que extrapola as 10 horas diárias.

A Enplan destaca também que a fiscalização trabalhista "foi acompanhada pela imprensa, com o comparecimento de equipes de rádio e televisão, que não identificaram no local qualquer indício que confirmasse as denúncias" e que "embora tenha publicado a notícia, o site Repórter Brasil não enviou ao canteiro de obras nenhum jornalista, e a Enplan não foi procurada em momento algum pelos jornalistas do site".

Primeiramente, a reportagem reitera que entrou em contato com a empresa e ouviu expressamente que nenhum responsável poderia responder sobre o caso. Segundo, a Repórter
Brasil
, de fato, não enviou jornalista ao local quando da fiscalização, mas as informações básicas podem ser conferidas em consulta ao site da rede de televisão EPTV, afiliada à Rede Globo, publicado sob o título: "Fiscais encontram trabalhadores em situação precária"

A matéria da EPTV.com, de 20/01, confirma que: auditores fiscais do trabalho "encontraram 13 homens trabalhando sem receber salário há três meses, em uma obra no Jardim Von Zuben, em Campinas, nesta terça-feira (19)"; que a fiscalização "descobriu também que 36 pedreiros e auxiliares trabalham em regime de terceirização, o que é proibido por lei; que o sindicato "denunciou ainda que o alojamento onde vivem estas pessoas não está em condições ideais para esta finalidade; e que os operários "disseram que quando chove o alojamento fica inundado e que não existe nem papel higiênico".

*Informações foram acrescentadas na tarde desta terça-feira (2)
**Posicionamento da Enplan foi incluído na noite desta quinta-feira (4)

Noticias relacionadas:
Ministério Público do Trabalho organiza inspeções em obras
Trabalhadores são escravizados na construção de pedágio
Libertações no Sul e Sudeste aumentam com mais fiscalização
Fiscalização flagra escravos em escavações para rede da Claro
Trabalho escravo é encontrado em obra ligada à usina do Madeira

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM