“O papel do BNDES precisa ser revisto”

 04/04/2010

O mercado de capitais no Brasil nasceu torto e, se depender dos investidores individuais, as empresas continuarão a ter problemas de governança corporativa. O diagnóstico é de Alexandre Di Miceli, uma das vozes acadêmicas mais influentes da atualidade quando se trata das relações das companhias abertas e seus acionistas. Coordenador do Centro de Governança Corporativa da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi) e professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), ele diz que a evolução da governança no País depende sobretudo do papel dos investidores institucionais e do BNDES.

Este poderia, por exemplo, exigir algumas mudanças nas práticas das companhias ao conceder financiamentos. Em entrevista à DINHEIRO, ele também falou sobre o papel da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e as mudanças previstas para o Novo Mercado da Bovespa.

DINHEIRO – Como avalia a evolução da governança corporativa no Brasil?
ALEXANDRE DI MICELI
– Estamos indo no rumo certo, mas não podemos ser ufanistas e achar que estamos bem em relação a este tema. Na década passada, com o fortalecimento do mercado de capitais, a governança corporativa ganhou projeção. Não só para as companhias de capital aberto, mas também para as fechadas. Do ponto de vista do capitalismo, o País começou a ter uma concorrência maior, inclusive por investimentos. Mas nosso modelo de governança começou de forma negativa.

DINHEIRO – Por quê?
DI MICELI – O mercado de capitais surgiu na década de 70 por forte indução do governo. Mesmo hoje, entre as dez ações principais do Ibovespa, a gente tem basicamente empresas que foram estatais, como a Vale; e que ainda são, como a Petrobras e o Banco do Brasil. E temos reminiscências dos primeiros conglomerados que surgiram no Brasil, como Itaú e Gerdau. Como resultado, as empresas passaram a emitir a ação sem direito a voto, os acionistas não se sentiam de fato acionistas. Tudo isso acabou como a raiz dos problemas de governança corporativa que temos hoje. Mas o modelo acionário brasileiro vem passando por mudanças substanciais.

DINHEIRO – Como está a governança em relação a outros países emergentes?
DI MICELI – Existe um estudo anual feito por uma consultoria com sede em Nova York, a GMI. Em 2009, dentre 39 países avaliados, o Brasil ficou em 28º lugar. Teve uma média inferior à dos países emergentes. No mercado internacional, a gente também não vê o Brasil como um paradigma de governança. Não estamos mal, até porque nossos concorrentes não estão muito melhores. Rússia e China não são modelos de governança. Índia já tem uma influência inglesa, mas o fato é que o Brasil não está muito pior do que os outros.

"A BRF é resultado de uma empresa que ficou insolvente e foi socorrida com recursos do banco"

DINHEIRO – As mudanças previstas na regulação do Novo Mercado da Bovespa trarão grandes diferenças?
DI MICELI
– A agenda de mudanças surgiu porque muitas pessoas passaram a ver o Novo Mercado como algo "para inglês ver". Muitas empresas passaram a vê-lo como um check-list. Como não estamos vivendo uma crise, a tendência é de que sejam aprovadas mudanças mínimas e não estruturais. Não são essas mudanças que vão garantir que as empresas tenham boa governança.

DINHEIRO – Quais são as mudanças necessárias?
DI MICELI
– Para mudar o padrão de governança, poderia ser exigido das companhias que tivessem comitês de auditoria compostos em sua maioria por conselheiros independentes. E que tivessem comitês de remuneração compostos exclusivamente por conselheiros. Também poderiam apresentar um relatório anual descrevendo o funcionamento do conselho de administração e dos seus comitês de assessoramento – incluindo número de reuniões, frequência de cada um dos membros, temas debatidos, sugestões apresentadas pelos comitês.

Deveriam elaborar uma política de operações com partes relacionadas que proibisse que conselheiros com interesses conflitantes em tais deliberações votassem. E realizar anualmente uma autoavaliação de seus conselhos, divulgando os principais resultados obtidos e ações corretivas para seus investidores. Além disso, proibir cláusulas estatutárias do tipo "poison pills" ou quaisquer outros mecanismos que fugissem do conceito de uma ação, um voto. E publicar anualmente um comparativo das práticas adotadas com as práticas recomendadas pelo código do IBGC, explicando as discrepâncias.

DINHEIRO – Qual é o papel dos investidores para fomentar a governança?
DI MICELI
– Quem vai comprar ações ou títulos de dívida de uma empresa deve levar a governança em consideração e achar isso importante. Senão, fica bonito no papel, mas não é levado à prática. Para o investidor local, pessoa física, a questão da governança é zero. Ele olha só se o minério vai subir ou cair, se a energia vai subir ou cair e não necessariamente para a empresa na qual está colocando o seu dinheiro. O estrangeiro também tem sua parcela de culpa. No geral, o fluxo de dinheiro segue a seguinte regra: quais são as taxas de juros dos países, como estão os preços das commodities, e se as bolsas estão subindo ou caindo. Entre os fundos de pensão, os pequenos geralmente não se envolvem muito nestas questões. Os grandes, às vezes, estão envolvidos até demais com as empresas.

"Quando vimos, a Vivendi já tinha mais de 50% da GVT. O mercado não está preparado para isso"

DINHEIRO – Como assim?
DI MICELI
– A gente tem uma situação muito diferente no Brasil, que é a participação de fundos em controles das empresas, principalmente nas que foram privatizadas. Não há evidências ainda claras de que a participação de grandes fundos de pensão acelerou a melhoria das questões de governança nas empresas. Não é que seja negativa, mas também não se mostrou positiva. E, por fim, ainda tem a questão de um grande investidor chamado BNDES. É um investidor tanto de ações, via BNDESpar, quanto de dívida e financiamento das empresas. Ele pode ter um papel duplo na governança. Pode ser muito positivo.

DINHEIRO – De que maneira?
DI MICELI
– Imagina se o BNDES coloca como critério para a concessão de empréstimos ou para a compra de ações que a empresa tenha certos padrões ou que ela evolua de x para y na governança? Se fizer isso, as empresas terão que mudar. Por outro lado, ele pode ser uma torneira aberta, dar dinheiro a
7%, 8% ao ano e sem cobrar nada de governança. Para quê a empresa vai querer melhorar? O papel do BNDES é muito importante e precisa ser revisto.

DINHEIRO – Por quê?
DI MICELI
– Coincidentemente ou não, de outubro de 2008 a setembro de 2009, as três maiores operações do banco na área industrial foram com BRF Brasil Foods, AmBev e Cosan. A BRF é resultado de uma empresa que ficou insolvente por questões de governança e foi premiada com recursos do banco. Em dezembro, os controladores da AmBev tiveram que pagar uma multa milionária de R$ 20 milhões por abuso do poder de controle em relação aos minoritários. E a Cosan, no início de 2006, fez uma reestruturação mal recebida pelo mercado. Recentemente, foi acusada de trabalho escravo.

DINHEIRO – Empresas mais pulverizadas na bolsa tendem a ter melhor governança?
DI MICELI
– Também estão sujeitas a problemas. Em uma situação dispersa, quem tem poder são os executivos. Neste caso, a gente tem que ter mecanismos para que estes executivos não dominem toda a agenda e tomem as decisões que quiserem, em detrimento dos interesses dos acionistas. Em geral, a pulverização é bem-vinda, mas é uma estrutura mais complexa. O caso recente da GVT, que não possuía um controlador com mais de 50% das ações, é um exemplo. Quando vimos, a Vivendi já tinha mais de 50% da empresa. O mercado não está preparado para isso. Como fazer com que as diretorias ajam como um órgão coeso nos interesses dos acionistas e, não, nos dos grupos? As companhias com capital pulverizado não terão governança perfeita, mas geralmente são empresas mais novas, menores, estão no Novo Mercado. É excelente que estejam aí, pois mostram que o mercado está se sofisticando.

DINHEIRO – Como o sr. vê a atuação da Comissão de Valores Mobiliários?
DI MICELI
– A CVM melhorou muito de 2005 para cá. Vem aumentando o número de processos, diminuindo os prazos de julgamento, melhorando a regulação. Mas está longe de ser perfeita e de ser considerada uma autarquia de forte proteção ao investidor. Não é culpa só da CVM, mas do sistema como um todo. Em última instância (os acusados de irregularidades), podem recorrer ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, o conselhinho. E demora 10, 20 anos para o julgamento final. Assim, há uma certa ausência da devida punição em relação a diversos assuntos.

DINHEIRO – Como avalia o crescimento do número de termos de compromisso da CVM, que faz acordo financeiro e arquiva o processo?
DI MICELI
– Essa questão é complexa. Por um lado, permite à CVM uma solução rápida e vantajosa do ponto de vista financeiro para a entidade. Além disso, evita que o caso vá para o conselhinho, o que poderia arrastar a decisão durante muitos anos e perder o caráter exemplar da punição aos réus. É uma boa opção em um mercado com muitos casos acontecendo simultaneamente, no qual o regulador se vê com limitações de recursos humanos e com a possibilidade de lentidão extrema em razão do conselhinho.

Por outro lado, em alguns casos é importante que o réu não possa simplesmente pagar uma multa e estar livre de outras punições, como forma de sinalizar ao mercado a possibilidade permanente de punições mais severas. Se os termos de compromissos fossem utilizados sistematicamente para resolver todos os casos, os agentes de mercado poderiam chegar a pensar no extremo: "Ok, vou realizar esta ilegalidade, pois, se der errado, precisarei apenas pagar uma multa e ponto final". Isto obviamente não pode acontecer. Trata-se de uma situação a ser aplicada caso a caso.

Juliana Schincariol 
04/04/2010

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