O bispo Leonardo Ulrich Steiner é um franciscano missionário. Nascido em Santa Catarina, há cinco anos é o titular da Prelazia de São Félix do Araguaia, uma das mais respeitadas do mundo por iniciar o combate ao trabalho escravo no Brasil e pela luta contra a ditadura imposta pelo regime militar, quando várias pessoas da comunidade foram presas ou mortas.
Ele substituiu um verdadeiro ícone da Igreja e da cobrança de justiça, dom Pedro Casaldáliga que, nas palavras do intelectual Antonio Callado, é o "único santo vivo", e para João Pedro Stedile, ideólogo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), "ele é o próprio Che (Guevara) vivo".
Se suceder Casaldáliga já era um desafio, as condições do norte do Mato Grosso exigem que o bispo seja um verdadeiro missionário. E ele está vencendo os dois desafios, tanto que conseguiu, em cinco anos, aumentar de cinco para 18 o número de padres para atender aos pequenos municípios que integram a Prelazia marcada na história pela Guerrilha do Araguaia, na década de 70.
Formado em Teologia, Pedagogia e Filosofia, após a ordenação sacerdotal, Steiner atuou na formação dos seminaristas e religiosos franciscanos durante 18 anos, foi professor nas casas de formação, exerceu a função de Secretário-geral da Pontifícia Universidade Antonianum, em Roma, Itália, onde também foi professor de Filosofia.
"São Felix não é apenas uma cidade. É uma referência, um símbolo do início de uma nova mentalidade e uma tentativa de dar dignidade ao trabalho humano, de defender a pessoa humana’
"Dom Pedro e eu vivemos na mesma casa, partilhamos a mesma mesa, fortalecemo-nos na oração, celebramos a Eucaristia, buscamos viver o Evangelho de Jesus Cristo e servimos à nossa igreja’
O DIÁRIO – Para quem sempre viveu em cidades grandes e bem estruturadas, como Florianópolis, Curitiba e Roma, como foi de uma hora para outra ir parar nos confins do Mato Grosso?
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – Não é só ir para um lugar distante de quase tudo, mas enfrentar uma realidade muito diferente daquela que eu conhecia. A Prelazia de São Félix do Araguaia tem 170 mil quilômetros quadrados. É maior que o meu Estado, Santa Catarina. As cidades são longe umas da outras e há dificuldades para percorrermos todas as paróquias.
O DIÁRIO – Que tipo de dificuldades?
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – As estradas, em sua maioria, não são asfaltadas e há um período do ano que chove todos os dias, o que dificulta a locomoção.
O DIÁRIO – Como o senhor faz para visitar as paróquias?
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – Geralmente viajo de ônibus.
O DIÁRIO – É uma realidade muito diferente daquela que o senhor conhecia, não é mesmo?
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – É uma realidade bastante diferente daquela que temos no Sul. Lá a imigração é muito forte e encontra-se pessoas de todos os lugares, além dos primeiros povos, os indígenas.
O DIÁRIO – Apesar das muitas dificuldades, a Prelazia que o senhor assumiu é a mais respeitada do Brasil, com ação conhecida em todo o mundo.
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – São Felix não é um nome, não é apenas uma cidade, é uma referência, é um símbolo do início de uma nova mentalidade e uma tentativa de dar dignidade ao trabalho humano, de defender a pessoa humana. Há 40 anos ela é uma referência no combate ao trabalho escravo, a partir da carta que dom Pedro Casaldáliga escreveu lembrando o tipo de trabalho que era comum no norte do Mato Grosso.
O DIÁRIO – O trabalho escravo ainda acontece na região?
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – Ainda é uma realidade, mas não privilégio da região. Hoje aparece mais no Pará, pelo que mostram as estatísticas. Graças a essa iniciativa da Igreja católica, nascida em São Félix, o próprio governo tem procurado combater o trabalho escravo.
O DIÁRIO – A área de sua prelazia ficou marcada também pela Guerrilha do Araguaia durante o período mais duro do regime militar. As marcas daquele período ainda são visíveis?
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – Temos ainda vários agentes de pastorais do tempo da ditadura, que foram perseguidos, presos. Muitos já faleceram, outros se mudaram para outras regiões para que os filhos pudessem estudar. Mas ainda há vários que continuam conosco, muito animados e muito próximos à vida da Igreja.
O DIÁRIO – Passada a ditadura e com o combate ao trabalho escravo feito pelo governo, o que mantém a Prelazia de São Félix animada?
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – Outra imagem que São Félix ainda transmite ao Brasil hoje é a defesa dos povos indígenas. Ainda há um conflito bastante grande em relação à terra do povo xavante.
O DIÁRIO – Há outras nações indígenas além dos xavantes?
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – Os outros povos já têm suas terras e estão retomando suas raízes culturais, com cantos e danças, o que dá uma dignidade a esses povos, integrando a realidade brasileira.
O DIÁRIO – Os índios aceitam bem a defesa feita pela Igreja?
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – Eles são parte da Igreja, são todos cristãos e muito presentes. Na semana passada, por exemplo, recebi a visita de um cacique.
O DIÁRIO – A construção da Usina de Belo Monte afetaria sua região?
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – Estamos na divisa com o sul do Pará e a Ilha do Bananal, no Tocantins. Embora a região onde estou seja menos afetada pela construção da usina, também estamos participando dos debates.
O DIÁRIO – Ao ir para São Félix do Araguaia, o senhor aceitou um desafio imposto pela dificuldades da região, mas outro desafio foi substituir dom Pedro Casaldáliga que, por sua luta nos últimos 40 anos, tornou-se um mito, um ícone respeitado em todo o mundo.
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – Eu costumo dizer que não fui substituir dom Pedro. Na Igreja, a gente não substitui, a gente vai para servir e ele serviu àquela igreja durante 35 anos e só renunciou por causa da idade. Sua atuação marcou profundamente a vida da prelazia. No tempo da ditadura militar, salvou muitas pessoas e, pode-se dizer, povos.
O DIÁRIO – A imagem dele ainda está muito presente?
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – Ele está presente pessoalmente. Dom Pedro e eu vivemos na mesma casa, partilhamos a mesma mesa, fortalecemos-nos na oração, celebramos a Eucaristia, buscamos viver o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo e servimos à nossa querida Igreja.
O DIÁRIO – Ela o ajudou na sua chegada?
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – Dom Pedro é uma pessoa muito afável, muito fraterna, um homem de muita oração, de igreja, não houve nenhuma dificuldade de dar continuidade ao trabalho que ele fazia.
O DIÁRIO – Uma das marcas da Prelaz
ia de São Félix foi a força das Comunidades Eclesiais de Base. As CEBs continuam fortes?
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – Toda comunidade precisa ser renovada, precisa aprofundar sua fé. Não é assim que uma vez animada e bem disposta ela permanece para sempre. Ela tem sua caminhada, chegam membros novos, é uma região de muita mobilidade social, e as comunidades mudam muito. Uma de nossas funções é ajudar que as comunidades continuem vivas. Algumas desapareceram devido à migração, outras apareceram. Nós temos cerca de 40 comunidades que não conhecem dom Pedro porque nasceram quando ele já não podia mais visitá-las.
O DIÁRIO – Por que não podia visitá-las?
DOM LEONARDO ULRICH STEINER – Ele tem 82 anos e está bastante fragilizado pelo Mal de Parkinson. Ele tem muita força para continuar servindo à Igreja, mas as condições físicas o limitam.