Realidade do trabalho escravo em MT é exposta na ONU

 05/07/2010

A relatora especial sobre Formas Contemporâneas de Escravidão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Gulnara Shahinian, foi recebida no Centro Burnier Fé e Justiça, onde ouviu, em reunião fechada, os demais movimentos sociais signatários do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo (Foete). Ela quis saber, longe do poder governamental e político, qual é a realidade crua da questão em Mato Grosso, sem maquiagens ou eufemismos, e quais os entraves para modificá-la. Gulnara viaja o mundo para vistoriar focos de escravidão contemporânea. Ela deu sugestões de saídas que viu dar certo em outras localidades.

Ao lado de uma secretária africana, que ajudou a anotar dados, e de duas tradutoras, demonstrou paciência e respeito para ouvir. Do lado de fora, quatro seguranças fizeram a guarda da comitiva internacional. Um representante da Organização Internacional do Trabalho (OIT) acompanhou a reunião.

"Meu mandato atende aos artigos 126 e 156 das convenções internacionais e foca essencialmente na escravidão doméstica e infantil, no trabalho forçado, nos casamentos forçados, em formas hereditárias de escravidão, ou seja, meu mandato se destina a tratar da vida das pessoas que ainda vivem na escravidão," explicou ela, de forma bem clara.
No Brasil, Gulnara já esteve em São Paulo, em Brasília, no Pará, em Mato Grosso e em seguida foi para o Maranhão. Ao final destas vistorias, fará um relatório anual sobre tudo o que viu. A intenção é que esse relatório oriente governos e sociedades para uma mudança de postura.

A visita dela ao Brasil foi a convite do Governo Federal. A relatora disse que, normalmente, pede que os governos a convidem, mas nesse caso ela foi convidada espontaneamente, o que denota, na opinião dela, uma intenção em não mascarar os fatos. Ela garantiu que não recebe salário e que ninguém tem influência sobre o que faz.
Dito isso, ela abriu a fala aos movimentos sociais presentes, que expuseram suas bandeiras com relação a esta causa.

Inácio Werner, do Centro Burnier Fé e Justiça, explicou que até 2003 não havia um trabalho específico de erradicação do trabalho escravo em Mato Grosso. Sendo assim, essa iniciativa é, historicamente, recente. "Até que em uma fiscalização no interior do Estado, a Polícia Federal, que fazia a segurança da Operação, trocou tiros com a Polícia Militar, que fazia a segurança da fazenda. Isso gerou uma crise institucional que repercutiu muito mal internacionalmente. Imaginem duas polícias trocando tiros…O momento foi propício à criação do Foete e o governador Blairo Maggi, que até então negava publicamente o fato de haver trabalho escravo em Mato Grosso, resolveu chamar os movimentos sociais para conversar o que culminou com a criação da Coetrae (Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo). E por que essa luta é importante aqui? Desde 1995, Mato Grosso tem mantido o posto de segundo lugar em resgate de trabalhadores em situação de escravidão entre todos os estados brasileiros, só perde para o Pará".

A professora Marli disse que a Central Única dos Trabalhadores (CUT) está na luta para desfazer os equívocos do mundo do trabalho. O professor Gilmar Soares, presidente do Sintep, afirmou que os professores substitutos de Mato Grosso recebem somente por 20 horas semanais e as outras 10 horas que gasta no preparo das atividades que vai dar em sala de aula não. Sendo assim, também trabalham sem receber, o que denota que o trabalho escravo se apresenta de várias formas, todas elas graves.

Ivanildes Ferreira, representando o gabinete do deputado federal Carlos Abicalil (PT-MT), contou que nasceu no Médio Norte e desde criança sabe que existe trabalho escravo em Mato Grosso, na Amazônia, no Cerrado, no Pantanal.

O pastor Teobaldo Witter destacou que estão reativando o Centro Estadual de Direitos Humanos Henrique Trindade e disse que o homem que dá nome ao Centro foi assassinado e virou símbolo de uma época de muita violência. O Judiciário, segundo Witter, não julgou o caso e a Corte Interamericana de Direitos Humanos foi acionada para punir os criminosos, coisa que o estado brasileiro não fez. Como Henrique Trindade, hoje 20 pessoas estão ameaçadas de morte em Mato Grosso.

Adriana Werneck, do Fórum Mato-Grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad), apontou latifundiários e desmatadores como protagonistas na contratação de força escrava. E reforçou que dentro de um modelo sustentável de desenvolvimento não há espaço para esta prática que só interessa ao lucro excessivo do capitalismo.
O professor Vitale Neto, da UFMT, lembrou que o que vivemos ainda hoje ainda é resultado de 400 anos de tradição escravocrata. Disse que a carta do então arcebispo de São Félix do Araguaia, dom Pedro Casaldáliga, em 1970, veio quebrar com a naturalização desse traço, propondo outra postura.

Gilberto Vieira, do Cimi, afirmou que trazer a questão indígena para dentro do Foete é fundamental, porque eles vivem em reservas cercadas pelo latifúndio, pelos plantadores de soja e algodão, lembrando ainda que MT é estado campeão em uso de agrotóxicos.
Genadir Vieira, da coordenação estadual do MST, lembrou que os sem terra são, muitas vezes, esses escravos dos quais todos estavam falando. São pessoas sem trabalho na cidade ou no campo e que, para sobreviver, caem nessas conversas dos chamados "gatos" ou aliciadores. Ele disse também que as vítimas têm medo de denunciar e esse medo tem origem na força da pistolagem.

Rosa Maria Werner, do Centro de Estudos Bíblicos (Cebi), disse que sua presença ali representa a defesa da vida com dignidade. Glória Maria, do Fórum de Articulação das Mulheres, indicou que "a próxima ação que temos que abraçar, assim como trabalho escravo, é a violência doméstica e a violência sexual contra mulheres e crianças".Eliana Vitalino, da Pastoral do Migrante, informou que em 30 anos de atuação da casa que recebe egressos do trabalho escravo já recebeu 205 mil e 22 pessoas. "Cuiabá foi, por muitos anos, corredor de ocupação da Amazônia", explicou. A casa precisa no entanto de reparos e melhor estrutura.

A relatora disse que é muito importante educar a sociedade contra o trabalho escravo e para um comportamento de respeito aos direitos humanos. Ela disse que todos nós, nos nossos espaços, devemos instruir trabalhadores para os direitos que têm; orientar para o uso da defensoria e outros instrumentos jurídicos; e até mesmo atitudes mais simples, como ajudar a completar um formulário de denúncia.

Uma das reclamações que ouviu dos militantes foi sobre a falta de recursos para manter a luta contra o trabalho escravo, já que o Fundo de Erradicação do Trabalho Escravo (Fete) foi criado, mas ainda não está funcionando e também não será possível esperar que saia dele
remuneração, por exemplo, para pagar recursos humanos. Sendo assim, muitos são voluntários, ou seja, trabalham sem remuneração.

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM