Junte o crescimento da economia da Bolívia com a integração continental rumo ao Pacífico. Acrescente a necessidade do Brasil por mais energia também por conta do crescimento econômico. Eis a receita para explorar recursos naturais e realizar obras de infraestrutura na Amazônia boliviana e expandir o agronegócio no leste do vizinho andino.
Estes acontecimentos têm relação com o Brasil e a ocupação econômica da Bolívia foi debatida na semana passada no seminário "Ordenamento Territorial Boliviano: questões agrárias, econômicas e sociais", organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP (Universidade de São Paulo). Os debatedores comentaram como essa conjuntura continental afeta a Bolívia nos âmbitos social e econômico.
A gestão dos recursos naturais versus a autonomia dos povos indígenas é a marca da questão fundiária na Bolívia. Essa disputa é reflexo do aumento do número de obras de infraestrutura no país andino. Na província de Santa Cruz (fronteira com Mato Grosso), há pressão para acelerar a exploração de gás natural. Na chamada Amazônia boliviana (junto a Rondônia e Acre), acontecem as obras do complexo de hidrelétricas do rio Madeira, realizadas em cooperação com o Brasil.
De acordo com a engenheira florestal Suzana Lourenço, mestranda do programa na USP, "grande parte das obras realizadas na região estão localizadas sobre reservas de recursos naturais. É difícil que seja mera coincidência", diz a pesquisadora.
Ela aponta que, como o ímpeto exploratório é forte num país dependente de recursos naturais para exportação, há outros aspectos a serem considerados: "A estrutura governamental boliviana enfraquece o poder do Ministério do Meio Ambiente local em frear as obras. Os empreendimentos podem ser autorizados por outros seis ministérios e o órgão muitas vezes acaba apenas homologando as obras".
Direitos indígenas
Também há uma forte intersecção com a questão das autonomias indígenas. Para Suzana, "o conceito de desenvolvimento sustentável varia entre os vários grupos indígenas locais", sendo que um mesmo recurso ou ecossistema pode ser compartilhado por duas ou mais etnias.
Segundo a jornalista Juliana Dal Piva, autora do livro Em Luta pela Terra sem Mal, que aborda a escravidão dos índios guaranis na região do Chaco boliviano, a ascensão de Evo Morales ao poder deu respaldo institucional a um processo de maior conscientização das populações indígenas.
"Até meados dos anos 1990, poucos jovens guaranis falavam o idioma dos antepassados" conta ela. "Esse é um dos reflexos de um processo sem volta".
Exploração
Em 2009, Juliana esteve na região do Chaco boliviano para reportar as condições de trabalho dos guaranis naquela região. Muitos desses trabalhadores viviam em condições semelhantes à escravidão, explorados pelos produtores agropecuários locais.
"Em muitas fazendas, não há documentos comprovando os pagamentos aos trabalhadores ou mesmo o registro trabalhista dessas pessoas", diz Juliana.
A partir de 2008, o governo começou a regularizar os registros das fazendas e, nesse processo, encontrou indícios de exploração, conta a jornalista. "Junto com a parca documentação existente, os fiscais encontravam cadernetas com as dívidas dos trabalhadores com os fazendeiros. Muitos proprietários, para fugir das denúncias de trabalho escravo, faziam contribuições previdenciárias e de seguro-saúde para os trabalhadores. Mas consideravam como débitos essas obrigações legais para com os camponeses guaranis".
Heloisa Gimenez, pesquisadora na área de Relações Internacionais e também mestranda do Prolam, relaciona a exploração dos recursos bolivianos e a questão de terras a um processo geopolítico maior. Para Heloisa, "há influência do Brasil no agronegócio do país vizinho e as obras de infraestrutura devem ser pensadas no contexto da integração continental e da ascensão da Unasul (União das Nações Sul-Americanas)". De acordo com ela, "para entender a questão fundiária boliviana precisamos analisar como a economia boliviana se desenvolveu nos últimos 50 anos".
Divisão nacional
Cerca de 80% dos recursos obtidos pela Bolívia com a exportação vinham da exploração do minério de estanho. "Em 1952, acontece a Revolução Nacional e no ano seguinte, começa uma reforma agrária. A Bolívia é o único país sul-americano a ter redistribuído suas terras", ressalta Heloisa.
Esse processo "dividiu" a Bolívia: "as terras do oeste do país e do altiplano ficaram com pequenos produtores e com a agricultura de subsistência. Já as terras do leste – principalmente na província de Santa Cruz – foram destinadas ao agronegócio. Por causa dessa opção, as obras de infraestrutura foram feitas nessa região, para facilitar a exportação para o Brasil e a Argentina", explica.
No entanto, o agronegócio boliviano só ganhou impulso nos anos 1980, com a chegada de brasileiros, japoneses e imigrantes do Leste Europeu. A fragilidade da economia boliviana, a pouca disponibilidade de terras agriculturáveis e a necessidade de capital eram as dificuldades encontradas. Segundo Heloisa, "a chegada dos estrangeiros foi crucial para acelerar o desenvolvimento do agronegócio na Bolívia".
Heloisa aponta um dilema a ser resolvido na questão fundiária boliviana: em 2006, o presidente Evo Morales assinou um decreto para reversão da posse da terra em casos de escravidão e não cumprimento do seu uso econômico-social (terra improdutiva). "No entanto, a Bolívia faz uma opção pelo desenvolvimento baseado na exploração de recursos naturais e exportação de produtos agrícolas. Isso só faz aumentar a concentração de terras", diz Heloisa.
A lei agrária boliviana atual limita a propriedade da terra a 5 mil hectares. Mas o decreto não é retroativo, explica a pesquisadora. Segundo Heloisa, isso dificulta o combate à concentração de terras, pois os latifundiários usam "laranjas" para comprar terrenos vizinhos sem caracterizar "latifúndio". "Será difícil para o governo central achar uma solução adequada para essa questão", prevê.