Operação coordenada pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Minas Gerais (SRTE/MG) libertou 131 pessoas escravizadas em lavouras de feijão na Fazenda São Miguel e na Fazenda Gado Bravo, localizadas respectivamente em Unaí (MG) e Buriti (MG).
O município de Unaí (MG) se tornou célebre justamente por causa do episódio da chacina de três auditores fiscais – Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva – e um motorista – Ailton Pereira de Oliveira – que estavam a serviço do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Eles foram assassinados numa emboscada durante fiscalização de rotina que realizavam no dia 28 de janeiro de 2004. A data foi convertida oficialmente no Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.
No conjunto da operação, foram fiscalizadas duas frentes de trabalho (Pivô 21, da Fazenda Gado Bravo e Pivô 9, da Fazenda Sâo Miguel), ambas direcionadas ao cultivo de feijão. A Gado Bravo está registrada em nome da Agropecuária Gado Bravo Ltda., que tem como sócios os irmãos Marino e Camila Stefani Colpo; já a São Miguel pertence a Marino Stefani Colpo. A família também possui a Fazenda Três Governadores. Juntas, as três propriedades somam 12 mil hectares e produzem milho, trigo, soja e feijão.
Empregados dormiam em barracas de lona sem condições de higiene ou conforto (Foto:SRTE/MG) |
Nenhum dos libertados tinha a Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) assinada. A jornada da capina e colheita do feijão começava as 4h30 e se estendia até às 14h30, sem que fosse respeitado o intervalo para repouso e alimentação. Segundo depoimentos, a labuta se estendia aos domingos, em descumprimento ao descanso semanal.
O pagamento feito pelo “gato”, que subtraía boa parte dos recursos que vinha dos proprietários, era por produção, sem qualquer recibo. Havia um sistema de endividamento dos empregados por meio de uma cantina em que alimentos, produtos de higiene e outros gêneros eram “vendidos” a preços mais altos que os praticados pelo mercado.
O transporte de trabalhadores era completamente irregular e o manuseio de agrotóxicos (armazenamento, sinalização e estrutura exigidas), inadequado. Ao todo, foram lavrados 35 autos de infração na São Miguel e 33 na Gado Bravo; quatro autos de interdição (dois ônibus, um caminhão e um alojamento) também foram emitidos ao longo da operação.
As vítimas foram aliciadas nos municípios de Arinos (MG) e Buriti (MG) pelo intermediário (“gato”) José de Oliveira Silva, conhecido como “Zezão”, que veiculou anúncios sonoros em carros de som.
“Zezão” dispunha da colaboração de familiares para manter sua atividade. Seu filho atuava diretamente como motorista do ônibus que conduzia as pessoas até às frentes de trabalho, um irmão controlava a produção, e uma irmã e outro irmão mantinham a cantina próxima à fazenda, na qual empregadas e empregados acumulavam dívidas.
“O ´gato´ estava presente na fiscalização desde o começo. Mas no desenrolar da ação, chegou um responsável pelos recursos humanos do grupo e outra pessoa ligada diretamente ao patriarca da família [Neri Carlos Colpo, pai de Marino e Camila]”, explica Valéria Guerra, auditora fiscal da SRTE/MG que participou da ação. Com apoio da Polícia Rodoviária Federal (PRF), a fiscalização ocorreu entre 20 de setembro e 1º de outubro de 2010.
Sete adolescentes foram encontrados em plena atividade na Fazenda Gado Bravo (Foto: SRTE/MG) |
Trabalho infantil
Na frente de trabalho Pivô 21 (ao todo, são 22), da Fazenda Gado Bravo, foram libertados 78 trabalhadores – sendo 16 mulheres e sete adolescentes com idades entre 13 e 17 anos. Não havia acesso à água potável durante a jornada de trabalho. A água levada pelo grupo em garrafas não era apropriada para consumo. Os lavradores eram obrigados a utilizar o mato como banheiro, pois não havia instalações sanitárias à disposição.
Os empregadores da propriedade de 4,3 mil hectares não forneciam equipamentos de proteção individual (EPIs). Houve inclusive embaraço à fiscalização. O “gato” tentou fugir e orientou os trabalhadores para que também fugissem dos agentes públicos. Parte deles adentrou a mata e só saiu para se apresentar depois de muita insistência da equipe de fiscalização. “Zezão” também tentou enganar os auditores declarando que não havia mais pessoas nas frentes; ficou constatado posteriormente, porém, que ele mesmo fizera o transporte de mais trabalhadores.
Não havia alojamento na fazenda. As trabalhadoras e trabalhadores retornavam diariamente para suas casas e eram transportados por ônibus irregulares. “Os dois ônibus, que pertenciam ao aliciador, não atendiam a qualquer requisito de segurança, colocando em risco os passageiros, por isso foram interditados”, explica a auditora Valéria, da SRTE/MG.
A comida vinha em marmitas de alumínio, sem local adequado para o armazenamento dos alimentos. As vítimas comiam no próprio campo, às vezes debaixo de alguma árvore.
“Todos os dados foram encaminhados aos setores de combate ao trabalho infantil dentro da SRTE/MG e também ao Conselho Tutelar”, completa a auditora. As verbas rescisórias pagas aos adolescentes, cuja situação foi priorizada na fiscalização, superaram R$ 22 mil. Os salários atrasados, somados às rescisões, foram pagos e totalizaram quase R$ 223 mil. Guias do Seguro Desemprego do Trabalhador Resgatado foram emitidas.
Dívidas
Na frente de trabalho Pivô 9, da Fazenda São Miguel (com 3,4 mil hectares), a fiscalização encontrou outras 54 pessoas mantidas em regime de escravidão, incluindo uma mulher e um adolescente de 16 anos. Entre o grupo, 19 dormiam em barracas construídas por eles de forma improvisada com toras de madeira e lona plástica, no ponto específico designado como “Campininha”, situado ao redor da casa de Adelino de Oliveira, irmão do “gato”.
Os alojados mantinham dívidas porque compravam rapadura, sabão, fumo, cigarro, isqueiro e garrafa de água na cantina da irmã e do irmão de “Zezão”. A fiscalização apreendeu as cadernetas com as anotações das dívidas. Até ferramentas e EPIs eram descontados dos salários. Alguns recebiam parte do pagamento em bebida alcoólica.
Alojados dormiam em espumas e eram submetidos a sistema de endividamento (Foto: SRTE/MG) |
As vítimas tomavam banho em um rio, após percorrer um longo trajeto pela mata. Os empregados dormiam em espumas, colocados direto no chão de terra. Não havia roupas de cama ou armários.
Os salários devidos soaram mais de R$ 82 mil. O adolescente recebeu pouco mais de R$ 1,2 mil. Os ônibus utilizados pelos trabalhadores da Gado Bravo eram os mesmo usados na São Miguel.
José Noredi dos Santos, gerente das fazendas, confirmou em depoimento que acompanhava diariamente a empreitada. “Ele é empregado de confiança da família. Ia a campo ver como estava o trabalho, tinha todo o conhecimento das condições análogas à escravidão”, relata Valéria.
De acordo com a fiscalização, o grupo tem capacidade econômica e possui maquinário moderno. “A equipe encontrou uma grande variedade de agrotóxicos com armazenamento completamente irregular, em galpão semi-aberto, e em depósitos que não respeitam os requisitos legais”, conta a auditora fiscal. “Não vimos nenhum trabalhador aplicando agrotóxicos, mas o empregador foi autuado pelo modo como armazenou o produto”.
A Repórter Brasil entrou em contato com a Agropecuária Gado Bravo, mas até o fechamento desta matéria, a empresa não deu retorno.
“É válido ressaltar que se trata de uma importante região produtora de grãos. Mas, infelizmente, tem como característica a existência de diversos empregadores que não cumprem a legislação trabalhista”, comenta um membro do MTE que pede anonimato. “É uma região que merece ser objeto do trabalho do Estado para assegurar os direitos dos trabalhadores e para combater o trabalho escravo, que não é incomum na região”.
Recursos
Há cerca de um mês, a Quinta Turma do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) rejeitou, por unanimidade, recursos especiais apresentados por dois acusados de envolvimento na Chacina de Unaí. Com a decisão, o processo principal, que tramita no Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF-1), poderá ser levado ao Tribunal do Júri, em Belo Horizonte (MG).
Os recursos foram apresentados pelo empresário Alberto de Castro e pelo cerealista Hugo Alves Pimenta que, assim como os irmãos Norberto e Antério Mânica, foram denunciados como mandantes do assassinato dos auditores que inspecionavam propriedades na região.
No total, nove pessoas foram indiciadas pelo crime. Cinco delas, mais vinculadas à execução da chacina, estão presas; outras quatro (José Alberto, Hugo, Norberto e Antério) aguardam o julgamento em liberdade. Um dos maiores produtores de feijão do país, Antério Mânica concilia a atividade de produtor rural com o posto de prefeito do município de Unaí (MG).
*Colaborou Bárbara Vidal
Notícias relacionadas:
Acusados da Chacina de Unaí ainda não foram julgados
Combate à escravidão é reforçado por semana e data especiais
Categoria repudia comenda a acusado pela Chacina de Unaí
Justiça cogita fechamento da Vara do Trabalho em Unaí
Justiça nega recursos de réus da “Chacina de Unaí”